Políticas públicas de fortalecimento agricultura familiar sob ataque

O artigo busca reconstituir os processos de fragilização, desconstrução e reconfiguração das políticas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar em suas múltiplas dimensões. As tensões e conflitos que potencializaram esse processo de desconstrução já estavam presentes desde as fases de construção, mas foi a partir do Governo Temer, intensificando-se no Governo Bolsonaro, que o desmonte ganhou impulso. Políticas de austeridade, restrições orçamentárias e extinção das estruturas de governança que possibilitavam um acompanhamento permanente dessas políticas aparecem como dos elementos centrais no processo de desmantelamento.

Desmonte de políticas públicas

A desestruturação das políticas públicas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar  foram intensificadas na última década no Brasil. Foram quase 30 anos de desenvolvimento e estruturação das políticas e apenas seis anos para o desmonte de quase todas elas. O artigo é um resumo da pesquisa, ‘‘A desestruturação das políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar: mudanças institucionais, estratégias de desmonte e novas configurações’’, realizada pelo Observatório de Políticas Pública para a Agricultura e pela Fundação Heinrich Böll. O estudo busca reconstituir os processos de fragilização, desconstrução e reconfiguração das políticas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar em suas múltiplas dimensões.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até aproximadamente 2016, o Brasil vivia o auge das políticas públicas voltadas para a agricultura alimentar. Em 28 anos, o país  caminhou do reconhecimento da necessidade de participação social na formulação, execução e acompanhamento das políticas públicas até a construção e diversificação das políticas para este setor. Para os pesquisadores Catia Grisa e Sérgio Schneider (2015), o desenvolvimento dessas políticas ocorreram em três etapas, identificadas pelos autores como “gerações de políticas públicas”, que apesar de serem datadas, também se entrelaçam no tempo.

A primeira geração, iniciada em 1988, foi pautada por ideias relacionadas às políticas agrícolas e agrárias.  A partir desse período, deu-se início, pelo Estado brasileiro, ao reconhecimento oficial da agricultura familiar como uma categoria social que demanda a elaboração de políticas públicas diferenciadas. Na prática, isso significou a instituição de novos espaços de participação social e a formulação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1995.

A partir de 1990, inicia a segunda geração de política pública para a agricultura com a construção de um referencial mais social e assistencial. É possível destacar, a substituição do Programa Comunidade Solidária (focalizado em segmentos específicos da população rural e urbana), criado em 1995, pelo Programa Fome Zero, já no ano de 2003. Promoveu-se, também, reforço à implantação da linha de financiamento Pronaf infraestrutura, à extensão dos programas de transferência de renda para as populações rurais – com a criação do Programa Bolsa Família e a criação de novos instrumentos, como o Programa Um Milhão de Cisternas, o Programa de Habitação Rural (PNHR), entre outras ações, desenvolvidas em 2003, no primeiro ano do primeiro mandato do governo Lula.

Finalmente, a terceira geração de políticas teve como objeto a construção de mercados para a segurança alimentar e a sustentabilidade ambiental, ganhando impulso a partir dos anos 2000. A partir desse período, registram-se mudanças importantes nas ideias que orientaram a construção de políticas para a agricultura familiar, principalmente relacionadas a intensificação do debate em torno da segurança alimentar e nutricional e dos processos de mobilização social protagonizados por seus diferentes atores (GRISA e SCHNEIDER, 2015). Como parte dessas dinâmicas, diversas instituições participativas de caráter consultivo foram retomadas e adensadas, passando a influenciar, direta ou indiretamente, os sistemas de políticas públicas relacionados à agricultura e ao espaço rural brasileiro, entre elas, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

Neste período, destaca-se também a criação do do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); a implantação do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), em 2004; as compras da agricultura familiar pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), reformulado através da Lei n.º 11.947, de 2009; a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) para Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM Bio); e, finalmente, a ampliação de mercados institucionais dinamizados através do PAA, em 2012, com a criação da modalidade de compra institucional (GRISA e SCHNEIDER, 2015).

Processos de desmonte

Os processos de deterioração dessas e outras políticas para a agricultura familiar estão ou estiveram associados a uma redução, decréscimo, diminuição ou completa remoção dos arranjos de política existentes, envolvendo, portanto, padrões específicos de transformação política e institucional. Mesmo reconhecendo que a trajetória de desmonte ganhou impulso a partir do Governo Temer, intensificando-se no Governo Bolsonaro, é importante relembrar as tensões e conflitos que potencializaram esse processo de desconstrução presentes em momentos anteriores.

Para que esse percurso possa ser mais bem compreendido, foi proposto na pesquisa  ‘‘A desestruturação das políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar’’ a análise de movimentos de interrupção ou desmonte de um conjunto significativo de instrumentos de políticas públicas a partir de um referencial que a literatura internacional denominou recentemente de “policy dismantling”. É importante destacar que a emergência do policy dismantling como um objeto de reflexão ganhou força, nos anos 1990, com o enfraquecimento do Estado de Bem-Estar Social (em particular no continente europeu) e, sobretudo, com o aprofundamento das políticas de austeridade que foram implementadas em diferentes partes do mundo nos anos 2000, alcançando uma maior intensidade com a crise de 2008.

Quando buscamos compreender o início do processo de desmonte das políticas para a agricultura familiar no Brasil, é importante lembrar o papel desempenhado pela política macroeconômica de austeridade fiscal, seja por seu efeito de restrição orçamentária, que interfere na continuidade das políticas, seja por seu papel de justificativa, que autoriza o governo a cortar, reduzir ou mesmo extinguir políticas. Contudo, apesar do contexto, o desmantelamento das políticas não pode ser visto, simplesmente, como um resultado imediato das políticas de austeridade fiscal. As restrições orçamentárias são, sem dúvida, um dos elementos centrais no processo, mas a extinção das estruturas de governança que possibilitavam um acompanhamento permanente dessas políticas pelos diferentes segmentos ligados à agricultura familiar em nível federal são um componente-chave das estratégias de desmonte.

Conflitos e tensões relacionadas à construção de políticas voltadas para agricultura ocorreram desde o início do processo de implementação dos projetos. Apesar dos inúmeros avanços proporcionados pelos espaços de participação, mencionados anteriormente, analistas e atores sociais acreditavam que as instituições participativas eram insuficientes. Para eles, as contradições existentes entre governo e a sociedade civil limitavam a eficácia desses dispositivos. Chamava-se atenção, em especial, para a debilidade muitas vezes constatada no que diz respeito aos seus mecanismos de transparência (DAGNINO e TEIXEIRA, 2014).

Um outro conflito presente foi disparado por interesses do agronegócio, que acionou  estratégias que visavam alterar mecanismos jurídicos e marcos legais criados durante o período de expansão das políticas para a agricultura familiar. Multiplicavam-se nesse cenário discursos, práticas e articulações de interesses em torno da alteração de marcos regulatórios e instrumentos de política pública consolidados desde a Constituição de 1988, como ocorreu com a propostas de revisão do Código Florestal, implicando em uma redução das áreas destinadas à Proteção Permanente e Reserva Legal nos imóveis rurais.

Esse movimento se fortaleceu nos anos 2000, quando os discursos associados às agroestratégias ganharam força no espaço legislativo sob a forma de frentes parlamentares conservadoras, já bastante organizadas em torno da defesa de uma única agricultura representada pelo agronegócio para o Brasil. Essas ações adquiriram impulso em 2015, quando a “nova” política econômica anunciada para o país assumiu um caráter marcadamente neoliberal, como ficou claro pela imposição de restrições orçamentárias a partir daquele momento.

Acirramento no pós-impeachment

Apesar das políticas de austeridade e cortes orçamentário já serem iniciadas no governo Dilma, foi a partir de 2016, no governo interino de Michel Temer que as tensões, conflitos e rupturas institucionais se intensificaram.  O “movimento” em torno das mudanças nas políticas de proteção social, ambiental e para a agricultura familiar identificou uma brecha importante para sua expansão no processo do impeachment. O desmonte, que apenas se esboçava nos discursos inflamados e práticas pró-agronegócio, ganhou corpo a partir de então.

O conjunto de restrições orçamentárias foi se adensando ao longo de 2016. Como resultado disso, os debates em torno da Proposta de Emenda Complementar, a PEC 55, que resultou no estabelecimento de um “teto” de gastos, ganharam fôlego. No final daquele ano, em dezembro de 2016, a austeridade fiscal havia sido constitucionalizada por meio da Emenda Constitucional, consolidando, assim, um quadro restritivo permanente para a continuidade das políticas públicas, de um modo geral, e para a agricultura familiar em particular.

Nesse contexto, eventos mais diretamente associados ao desmonte, como a extinção do  Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ganham sentido. Criado em 1999, esse ministério foi extinto em 2016, quando suas competências foram transferidas para o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) por meio de medida provisória assinada pelo então presidente Temer. Em seguida, no dia 27 de maio de 2016, essas mesmas competências, então atribuídas ao MDS, foram centralizadas na Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD) da Casa Civil. Logo após, funcionários e equipes que há bastante tempo estavam envolvidos com a formulação e implementação de políticas públicas para a agricultura familiar foram exonerados.

Somam-se a isso: o cancelamento das transferências de recursos para determinados programas como, por exemplo, o PAA; a revogação de chamadas públicas para contratação de serviços relacionados à implementação da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), a partir daquele ano; o cancelamento da aquisição de equipamentos e infraestruturas via Programa Territórios da Cidadania (PTC); a redução drástica do orçamento destinado à regularização de terras quilombolas; a emissão da portaria de cancelamento de contratos do Minha Casa, Minha Vida Rural.

A partir de 2016, registra-se também  a promulgação de novos decretos presidenciais que acabaram por dar outra direção a essas institucionalidades participativas. Já em maio de 2016, o Decreto 4854, de 8 de outubro de 2003, que instituiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) foi revogado pelo Decreto  8.735. Esse foi o destino de outros espaços de participação social e monitoramento da sociedade civil, em diversos campos.

Nos anos seguintes, com o Governo Jair Bolsonaro, a situação se agrava drasticamente. Em estudo recentemente divulgado pelo Núcleo de Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), cerca de 75% dos Comitês e Conselhos Nacionais, que reuniram representantes da sociedade para discutir políticas públicas, foram esvaziados durante o período.

Em primeiro lugar, a extinção de conselhos federais não afetou necessariamente os conselhos estaduais e municipais a eles vinculados. Muitos estados e municípios mantiveram seus conselhos locais, ainda que de forma muito desigual e não efetivamente articulados. O que explica, em parte, a continuidade dessas institucionalidades é a necessidade de aprovação e controle social por parte dos conselhos locais (estaduais e municipais) para a liberação de recursos relacionados à execução de políticas federais voltadas à agricultura familiar, como o PAA e o PNAE.

Em contrapartida,  é possível observar neste mesmo período a legitimação e o reconhecimento das instituições participativas ligadas ao agronegócio.

Como o Conselho do Agronegócio (Consagro), com o regimento aprovado em 2018, e o  Conselho Nacional de Política Agrícola (CNPA), com o regimento aprovado em 2019. Estes espaços são integrados, em sua maioria, por organizações sociais compostas por elites agrárias e agrícolas, sendo que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) é, praticamente, a única organização da sociedade civil com assento no CNPA que defende a agricultura familiar, tendo como referência as propostas que haviam sido elaboradas nos espaços de participação social existentes no período anterior, hoje extintos ou que não estão mais em funcionamento.

O caso PAA

PAA é a sigla para Programa de Aquisição de Alimentos, um programa criado em 2003, com o objetivo de apoiar a comercialização dos produtos da agricultura familiar e combater a insegurança alimentar. O programa permitia a aquisição de alimentos diretamente de agricultores familiares para distribuição a programas sociais e pessoas atendidas pelas políticas de alimentação e nutrição. Além de distribuir produtos alimentícios para pessoas em situação de insegurança alimentar, este instrumento de ação governamental contribuía, também, para a formação de estoques estratégicos e a implementação de ações de combate à fome e promoção da segurança alimentar e nutricional.

Entre 2003 e 2012, ocorreram as fases de estruturação, de expansão e fortalecimento do programa. Em 2012, o PAA atingiu o seu maior orçamento (cerca 840 milhões de reais) e público beneficiário (185.979 agricultores familiares).  A partir de 2013, no entanto, uma nova fase foi estabelecida, caracterizada pela  redução da intensidade e densidade do programa, em um cenário de queda internacional do preço das commodities, desaquecimento da economia nacional e emergência de contestações políticas, o que levou ao surgimento e ampliação de coalizões críticas aos paradigmas de políticas públicas que orientavam, naquele momento, as ações governamentais.

A partir de 2016, com as rupturas políticas e institucionais em curso, embora a  insegurança alimentar tenha aumentado no país, houve um agravamento da redução dos recursos destinados ao programa, o que podemos caracterizar como um  desmantelamento por inefetividade. Os gestores públicos preferiram não assumir os custos políticos de extinguir um programa reconhecido internacionalmente, mas foram reduzindo sua intensidade. Em 2019, o PAA executou o menor orçamento desde 2004 (praticamente desde seu início, em 2003). Em 2020, a Lei Orçamentária inicialmente havia estabelecido 150 milhões de reais para o programa, contudo o orçamento extraordinário da Covid permitiu suplementação orçamentária de R$ 500 milhões. Ainda que pudesse sinalizar uma retomada do programa em um contexto de agravamento da insegurança alimentar, a Lei Orçamentária de 2021 voltou a reduzir esses valores, estabelecendo um orçamento de R$ 371 milhões.

O momento emergencial fez com que mais de 800 organizações da sociedade civil apresentassem ao Governo Federal uma proposta para o fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O governo respondeu à pressão social e liberou R$ 500 milhões para o PAA emergencial.

A terceira fase do programa culminou no seu fim com a revogação do PAA pela Medida Provisória no 1.061/2021, convertida na Lei 14.284, de 29 de dezembro de  2021, que substituiu o Programa Bolsa Família pelo Auxílio Brasil e criou o Programa Alimenta Brasil no lugar do PAA.  A MP traz alterações expressivas, como a necessidade de nova regulamentação para todos os instrumentos previstos no Programa Alimenta Brasil (vulnerabilizando as dinâmicas das políticas em curso), a vinculação do Auxílio Inclusão  Produtiva Rural ao programa e a extinção da modalidade PAA Sementes, ainda  que mantida a compra de sementes e mudas no PAA modalidade Compra Institucional. Ainda há uma série de questões que precisam ser esclarecidas, o que mostra o enfraquecimento dessa política nesse cenário recente de desmantelamento  de políticas públicas.

A trajetórias de desmonte e os exemplos de políticas públicas para a agricultura apresentadas na pesquisa permitem não somente uma melhor reflexão sobre o tema, mas, sobretudo, estimula o desenho  de novas formas de ação que possam se contrapor ao enfraquecimento dos programas governamentais anteriormente voltados aos segmentos diferenciados  da agricultura brasileira, ampliando seu alcance e fortalecendo sua ancoragem política e institucional.


Este artigo faz parte do Webdossiê "Disputas e desafios do modelo agrário brasileiro: quando novos instrumentos reforçam velhas desigualdades" e baseia-se na publicação "A Desestruturação das políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar: mudanças institucionais, estratégias de desmonte e novas configurações".