A pesquisa ‘‘Financeirização da Agricultura e da Terra no Brasil: dinâmicas em curso e disputas em jogo’’, realizada pelo Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap) e Fundação Heinrich Böll, reflete o avanço do modelo de desenvolvimento econômico defendido pelo neoliberalismo para a agricultura, apresenta alguns mecanismos que o mercado financeiro aplica no setor agrícola, que impactam de forma direta ou indireta a vida no campo e na cidade e detalha como a expansão da financeirização na agricultura não ocorreu de maneira consensual, mas marcada por conflitos.
O setor financeiro tem ocupado um espaço cada vez mais importante na cadeia de produção agrícola. Processos de financeirização estão presentes desde a compra de terras, passando pela indústria de insumos e defensivos agrícolas (mais conhecidos como agrotóxicos e/ou venenos) até a comercialização de infraestruturas de escoamento dos produtos. Contudo, a complexidade da atuação do mercado financeiro torna difícil perceber o impacto dessa aproximação para a sociedade. A pesquisa ‘‘Financeirização da Agricultura e da Terra no Brasil: dinâmicas em curso e disputas em jogo’’, realizada pelo Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap) e Fundação Heinrich Böll, detalha os diversos efeitos que a financeirização provoca para a sustentabilidade social e ecológica e para a segurança alimentar no país.
Os setores agrícola e financeiro estão conectados há muito tempo e de diferentes formas: empréstimos para a produção agrícola, suporte de preços, seguro agrícola, hipoteca e venda antecipada e outras. Mas o formato e a intensidade da conexão se alteraram profundamente ao longo dos anos. No Brasil, as finanças se aproximam de maneira mais significativa da agricultura a partir da década de 1990, quando o Estado retira parte do apoio ao financiamento do setor. Neste período, é criado um sistema para captação de crédito agrícola ofertado por atores privados.
No contexto global, um conjunto de atores – bancos, corretoras de investimento, empresas de securitização, fundações universitárias, diferentes fundos e corporações ligadas a outros ramos da economia – que historicamente não se interessavam pelo setor agroalimentar, passaram a fazer investimentos vultosos no campo, muitas vezes articulados com empresas agrícolas nacionais e grandes produtores rurais. Com o aumento do preço da terra e das commodities nos anos 2000, combinado com o crescimento da demanda global alimentar, estoques esgotados, falta de instrumentos de regulação e menor risco nesses mercados, os investidores institucionais viram uma oportunidade para diversificar seus negócios, reduzir o risco e ampliar os seus retornos. Nesse sentido, as commodities, a terra e a agricultura entram no radar pelas excelentes perspectivas de ganho especulativo para o capital financeiro, sobretudo depois das perdas decorrentes da crise imobiliária, da queda nos valores das ações de Wall Street e da intensa desvalorização do dólar (HERREROS, BARROS e BENTES, 2010).
Na prática, isso significa que os recursos naturais estão cada vez mais submetidos aos interesses de agentes, mercados e instituições financeiras e consolida a entrada desse segmento na tendência global de massiva inserção das empresas transnacionais, aumento dos investimentos estrangeiros, da concentração fundiária e de riquezas, desnacionalização das empresas, além da centralização de capital e a abertura de megaprojetos privados (ou concessões públicas) nos setores extrativos, de infraestrutura e de logística. Essa série de mudanças foi significativa para o Brasil e impulsionou o avanço do agronegócio e da sua expansão territorial.
O agronegócio no Brasil
A acumulação de riquezas para o mercado financeiro a partir da agricultura não é adquirida necessariamente por meio de atividades diretamente produtivas. É possível entender as finanças como um setor extrativo propriamente dito, ainda que se refira a uma extração a partir de relações que não são estritamente materiais, isto é, relações exclusivamente financeiras que, muitas vezes, não extrapolam as contas bancárias.
Como exemplo, temos que algumas das empresas do agro são produtoras tradicionais de cultivos alimentares e seu principal negócio é o cultivo de commodities, outros desses atores têm adotado estratégias mais ativas e possuem braços imobiliários, cujo interesse principal é a especulação a partir da renda da terra. Essas empresas têm parte de suas atividades centradas na compra, venda e arrendamento de terras. Isso significa que compram terras a preços baixos, fazem investimentos produtivos, mantêm um sistema de arrendamento (ou não) e, posteriormente, vendem por preços altos, realizando os maiores lucros possíveis, em outras palavras, trabalham com a especulação dos seus ativos fundiários.
É possível perceber que assim como a produção de commodities é uma das formas de uso da terra e de seus recursos, o jogo acionário também o é. O controle de títulos e as promessas futuras de extração, produção e comercialização baseados em jogos de informações, divulgadas especialmente a partir de relatórios ao departamento financeiro das corporações, é utilizado como forma de adquirir renda através das bolsas de valores e de instrumentos financeiros como os fundos de hedge, fundos de private equity e fundos mútuos, por exemplo.
No Brasil, as empresas do agronegócio estão presentes em grande parte dos principais polos de produção e comercialização de commodities alimentares (FREDERICO, 2013), o que lhes confere uma capacidade estratégica de controle dos territórios onde se instalam. Passam a deter parte significativa da circulação de capital, tecnologia, informação e normas que os grandes produtores necessitam seguir para escoar sua produção. Ou seja, criam um circuito oligopolizado na oferta de insumos e se tornam uma das principais compradoras dos produtos agrícolas.
Uma parte importante dessa dinâmica se viabiliza através de um sistema de crédito e compra antecipada, no qual o agricultor firma o seu compromisso de pagamento junto às obrigações de consumir o pacote de serviços (dinheiro, fertilizantes, agrotóxicos, assistência técnica, análise de solo e outros) e entregar diretamente a produção ou parte importante à financiadora que, por conseguinte, é quem define o preço pago pelo produto. Além disso, a antecipação dos recursos de custeio da safra é dada mediante garantias que podem ser oferecidas via o penhor da propriedade e da produção agrícola, ou através da emissão de promissórias, o que abre a possibilidade de acesso aos imóveis rurais sem ser através de compra direta (WESZ, 2014; ALVES, 2012).
Essa realidade opera um tipo de subordinação e dependência dos produtores rurais a essas empresas, uma vez que são esses atores que definem a área plantada, as orientações técnicas quanto à produção, ao padrão de classificação de qualidade, ao preço a ser pago por estes, às mudanças organizacionais e produtivas, aos novos investimentos ou fechamento de unidades processadoras de grãos e etc.
Segundo o Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea), em 2020, o sistema financeiro - com recursos originados de Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), recursos próprios dos bancos, recursos em moeda estrangeira e outros - tem se tornado mais atrativo ao produtor rural que o financiamento público, seja pela não limitação de recursos por CPF ou pelo menor tempo para aprovação do crédito.
Em paralelo, avançam no país leis e políticas de incentivo ao mercado. Em cerca de um ano e meio, já foram sancionadas duas leis - a Lei do Agro (Lei 13.986/2020) e Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro) (Lei 14.130/2021) - que intensificam a ingerência do mercado de capitais no agro brasileiro e garantem uma maior “segurança jurídica” aos investidores, corroborando a narrativa governamental de criar uma captação não convencional de financiamento e crédito fora dos bancos públicos estatais e créditos cobertos pelo governo.
Esse movimento tem sido realizado por meio de estratégias financeiras e tem exacerbado a concentração e centralização de poder nas mãos de um grupo restrito de grandes corporações globais, oferecendo-lhes melhores condições de barganha nas negociações em torno das barreiras comerciais, do uso dos recursos naturais e intervenção na formação dos preços internacionais.
Parte desse processo pode ser caracterizado, segundo alguns autores, como um modelo de produção conhecido como neoextrativismo (SVAMPA, 2013, 2019; GUDYNAS, 2012). Representa, por essência, o avanço da extração dos recursos naturais para comercialização em paralelo à depredação ambiental.
O que está em jogo?
As finanças têm exportado para o agro o seu modelo de governança.
Esse modelo impacta de forma direta ou indireta a vida no campo e na cidade: na dinâmica de produção e comercialização dos alimentos e nas relações com os territórios, que são, cada vez mais, negociados em mercados que os tratam como ativos abstratos e distantes de suas materialidades, função social e ambiental.
A pesquisa destaca as implicações da financeirização sobre o abastecimento e o consumo alimentar. Os investimentos do capital financeiro são direcionados para ativos fundiários e para a produção de uma gama muito restrita de commodities agropecuárias, que podem ser destinadas tanto para alimentação humana quanto para a alimentação animal, produção de combustível e/ou insumo industrial. Porém, enquanto para um pequeno número de investidores financeiros interessa tanto o aumento dos preços quanto a volatilidade deste mercado, para que possam se beneficiar em suas “apostas” especulativas, para a maioria da população mundial, a financeirização desregulada tem gerado graves crises de segurança e soberania alimentar (NIEDERLE e WESZ Jr., 2018)
Nesse sentido, um dos efeitos mais evidentes dos investimentos financeiros neste mercado refere-se ao preço dos alimentos, cujo aumento bem acima da inflação média (três vezes maior) reflete a alta dos preços das terras motivadas pela especulação fundiária e uma maior demanda internacional por commodities facilitada por um câmbio desvalorizado (FLEXOR e LEITE, 2017; FLEXOR, KATO e LEITE, 2021). Por um lado, a volatilidade no preço dos alimentos é altamente prejudicial aos consumidores, pois pode reduzir seu poder de compra rapidamente, o que se torna ainda mais preocupante em um contexto de intensificação da fome no Brasil. Por outro lado, afeta também diretamente alguns segmentos de produtores rurais, sobretudo os agricultores familiares que não têm acesso a determinados instrumentos do mercado financeiro, como o mercado de futuro, e a determinados mercados internacionais, e se veem desamparados quando o preço de venda de sua produção cai repentinamente.
Além disso, é importante lembrar que a relação de propriedade passa por um processo de terceirização, que dificulta ou impede a responsabilização formal de executivos e, principalmente, acionistas pelos danos e conflitos socioambientais que seus investimentos causam nos territórios que expropriam e onde se instalam.
Para garantir seus lucros, as empresas e acionistas estão transferindo para toda população os custos socioambientais das suas atividades. Em contrapartida, é a população local que precisa arcar com os danos provocados pelas queimadas. São, principalmente, as/os pequenas/os agricultoras/es e povos e comunidades tradicionais que têm sua saúde posta em risco pela contaminação de rios com agrotóxicos, o que demonstra como racismo e injustiça ambiental vêm estruturando esse processo.
Ações e soluções
A pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap) e Fundação Heinrich Böll defende que, desde a década de 1990, movimentos sociais se posicionam de forma crítica ao modelo de desenvolvimento defendido pelo neoliberalismo para a agricultura. Estes movimentos revelam que a expansão do capitalismo neoliberal, que está intrinsecamente relacionado à expansão das finanças, não ocorreu de maneira consensual, mas marcada por conflitos.
Recentemente, algumas organizações da sociedade civil, com amplo potencial crítico e transformador, têm se organizado e mobilizado local, nacional e globalmente contra essas apropriações, inclusive as financeiras. Diante de suas consequências, cresceu a demanda por uma governança das apropriações de terra por parte da sociedade civil global, de organizações multilaterais, camponeses e ainda outros. Sobretudo no início do novo século, a terra começou a ganhar mais destaque no âmbito transnacional e foi incluída na agenda de governança global de diversas organizações, que criaram iniciativas de regulação global dos investimentos em larga escala em terra e outros recursos.
Ainda segundo a pesquisa, faltam mecanismos, regras e tratados que permitam a responsabilização do mercado financeiro pelos danos e impactos socioambientais que vêm provocando nos territórios. Apesar de existirem discussões relativas a tratados vinculativos sobre direitos humanos e empresas, um longo caminho ainda precisa ser trilhado para que os donos do capital, ou seja, os acionistas, possam ser responsabilizados junto com as companhias que controlam.
Este artigo faz parte do Webdossiê "Disputas e desafios do modelo agrário brasileiro: quando novos instrumentos reforçam velhas desigualdades" e baseia-se na publicação "Financeirização da Agricultura e da Terra no Brasil: Dinâmicas em curso e disputas em jogo".