Pesquisa apresenta o que está em jogo no cenário atual de profundas alterações nos marcos legais da regularização fundiária. A regularização fundiária é um direito para aqueles que se enquadrem em determinadas categorias e que vivem em áreas não regularizadas (sem títulos), na condição de posseiros, mas a pesquisa mostra que esta não é única forma de destinação de terras públicas. O artigo aponta algumas das principais iniciativas recentes relacionadas ao debate fundiário, a fim de compreendermos para onde a regularização fundiária está progressivamente apontando.
A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, respeitando a função social da propriedade rural, o direito à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. No meio rural, ela tem sido defendida como o melhor instrumento para garantir a segurança territorial de proprietários (as) e agricultores (as) e projetada como a estratégia mais eficiente para conter a grilagem de terras e o desmatamento. Contudo, as recentes flexibilizações nos instrumentos de regulação fundiária, a desregulamentação e o desmonte do arcabouço jurídico que dava sustentação ao cumprimento da função social e ambiental da terra vêm reforçando uma lógica de privatização e de mercantilização da terra.
A Constituição Federal de 1988 estabelece os marcos legais que orientam a gestão fundiária e os direitos territoriais no Brasil. Ela instituiu o direito à propriedade desde que esta cumpra uma função social, relacionando a regularização fundiária com o bem-estar social e o direito ao meio ambiente. Cabe ao Estado brasileiro desapropriar por interesse social imóveis que não cumpram a função social destinando-os à reforma agrária, da mesma forma que é garantida a propriedade às pessoas que não são proprietários, mas que ocupam o imóvel rural de até cinquenta hectares por mais de cinco anos ininterruptos (usucapião). A função social da propriedade, de acordo com artigo da CF de 1988, atesta que a mesma deve cumprir simultaneamente, funções econômicas, ambientais e trabalhistas.
No entanto, ao longo das últimas décadas, o marco legal da regularização fundiária no Brasil vem sendo palco de grandes disputas. Apesar das funções estabelecidas pela Constituição, há no país uma maior flexibilização dos critérios e dos instrumentos de regulação da função social da terra. O distanciamento da sua principal função foi intensificado nos últimos dois governos federais, mas ao longo da história brasileira, a dificuldade na separação das terras públicas das terras privadas, a sobreposição de títulos e cadastros e a não comunicação entre diferentes bases de dados formou o chamado “caos fundiário”. O cenário favoreceu uma ocupação desordenada e desregulada do território nacional o que, tendo em vista o contexto de existência de quantidades significativas de terras públicas sobre as quais o Estado não tem conhecimento ou sobre as quais tem pouco controle, favorece a tradicional grilagem de terra.
O desmonte da regularização
Nos últimos anos, testemunhamos um processo crescente de desregulamentação e desmonte do arcabouço jurídico que dava sustentação ao cumprimento da função social e ambiental da terra, resultando em um emaranhado de medidas provisórias, projetos de lei, instruções e decretos que alteram pouco a pouco a forma como a terra é percebida em nossa sociedade. A pesquisa ''A solução é a regularização fundiária?'' resgata as principais mudanças realizadas nos marcos legais da regularização ambiental e fundiária, com destaque para o Código Florestal de 2012, para o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para o Programa Terra Legal e outras mudanças jurídicas que ocorreram nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Sob forte debate envolvendo o setor do agronegócio, pesquisadores, parlamentares, ONGs, políticos e movimentos sociais, o Código Florestal de 2012 foi aprovado com a justificativa de modernizar a legislação ambiental conciliando a conservação das florestas com a produtividade agrícola - sobretudo, com a expansão do agronegócio e do setor mineral – onde o aumento da produtividade se conjugaria com a maior eficiência ambiental.
O Novo Código estabeleceu parâmetros menos exigentes e mais flexíveis sobre o passivo ambiental. Definiu como áreas consolidadas aquelas desmatadas até 22 de julho de 2008, alterou a forma de cálculo das faixas marginais de proteção em cursos de água e dispensou a averbação da Reserva Legal (RL) na matrícula do imóvel. Na prática, o Novo Código Florestal diminuiu o grau de proteção ambiental exigido pelo Estado brasileiro aos imóveis rurais, reduzindo sob certas condicionantes as áreas que por obrigação deveriam ser recompostas e convertendo multas em serviços ambientais.
Outra mudança que prejudicou a função social do uso da terra foi a criação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público eletrônico, criado em 2012 por Lei Federal no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente (SINIMA), obrigatório para todos os imóveis rurais. Ele condensa as informações ambientais das propriedades e posses rurais numa base de dados com fins de monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento. O CAR, pela facilidade e “modernidade” que tanto propagandeia, vem sendo projetado como a identidade do imóvel rural, não raro, sendo utilizado como fonte de informações para a implementação e o planejamento de políticas públicas. A inscrição no CAR é obrigatória e tem natureza autodeclaratória: ou seja, é o próprio proprietário rural que, ao fazer o seu cadastro (ou contratar alguém que o faça), declara os dados ambientais da propriedade. Uma vez feita a inscrição, o cadastro é automaticamente ativado, permitindo que o produtor tenha acesso a benefícios previstos no Código Florestal e a outras políticas públicas que o têm como condicionante como o crédito rural e políticas de regularização fundiária. É nessa “facilidade” em se fazer, obter e ativar o CAR, sem a contrapartida de fiscalizações ou conferências de documentos, que residem as suas principais fragilidades.
Muitos estados brasileiros vêm usando o CAR e seu sistema de registros como documentos de comprovação de posse e como facilitador em processos de regularização fundiária. Ademais, num contexto como o brasileiro, de construção e reprodução do “caos fundiário”, caracterizado por uma base fundiária complexa e confusa, o CAR sobrepõe-se a esse mosaico de registros e cadastros. Há o risco de tornar o CAR um impulsionador da grilagem de terras (isso foi constatado, por exemplo, na Operação Rios Voadores conduzida pela Polícia Federal, Ministério Público Federal, Receita Federal e Ibama em junho de 2016). O CAR ativo tem sido usado crescentemente como uma certificação que atesta a responsabilidade ambiental da propriedade (sendo reconhecido e exigido, por exemplo, por empresas no momento da compra de produtos agropecuários, em particular, aqueles destinados aos mercados internacionais).
Do Programa Terra Legal a PL 510
O Programa Terra Legal, criado em 2009, pela Lei 11.952/2009 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário foi um dos mais ambiciosos programas de regularização fundiária do país, assumindo o desafio de regularizar cerca de 67 milhões de hectares de terras (8% de todo o território nacional) de posses mansas e pacíficas dentro de áreas públicas federais na Amazônia Legal. O Terra Legal transferiu do INCRA, anteriormente responsável pela regularização fundiária na Amazônia, para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) as competências para coordenar, normatizar e supervisionar o processo de regularização fundiária de áreas rurais e áreas urbanas na Amazônia Legal.
Em 2014, o Tribunal de Contas das União (TCU) realizou uma auditoria de conformidade no Programa Terra Legal Amazônia (de 2009 a 2014), constatando inúmeras irregularidades, o baixo rendimento operacional e a insuficiência de controles. O Programa Terra Legal procurou acelerar a regularização fundiária na Amazônia Legal, mas ficou aquém das suas metas originais. Mantendo-se o ritmo de titulações observado pelo Programa entre 2009 e 2014 seriam necessárias mais quatro décadas para se atingir as metas propostas.
Os critérios que o Programa Terra Legal estabelecia, ao menos no papel, ainda associavam a regularização à efetiva ocupação da terra (mesmo com a flexibilização das vistorias para checagem da ocupação). A MP 759 de 2016 e a Lei 13.465 de 2017, que vieram depois do Terra Legal, aceleraram e amplificaram esse processo, culminando na desvinculação progressiva dos objetivos da regularização fundiária das funções sociais (em particular social e ambiental), ampliando as dimensões das terras a serem regularizadas e anistiando as necessidades de recuperação ambiental.
A Lei foi proposta pelo então presidente da República Michel Temer e dispunha sobre regularização fundiária rural e urbana, instituindo mecanismos para melhor eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União, dispondo sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e permitindo a regularização fundiária de áreas contínuas de até 2.500 ha na Amazônia Legal. Suas regras permitiam também que ocupantes de terras até julho de 2008 demandassem regularização fundiária (antes era 2004). Tanto a MP 759 quanto a Lei 13.465 foram objeto de Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, em especial a ADI 5771/2017, movida por um conjunto de 60 organizações e redes da sociedade civil encaminhada pelo Procurador-geral da República Rodrigo Janot.
Dois anos depois, em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, foi apresentada a MP 910/19 que pretendia ampliar a transferência de terras públicas da União para privados até o limite de 2.500 hectares. Os imóveis rurais são classificados com relação ao tamanho em módulo fiscal, que varia entre cinco e cento e dez hectares, dependendo da região. Pequena propriedade tem uma área de até quatro módulos fiscais, médias propriedades têm áreas de quatro a quinze módulos fiscais e grandes possuem área superior a quinze módulos fiscais. A nova legislação previa um procedimento facilitado e autodeclaratório dos procedimentos, dispensando a realização de vistorias presenciais para áreas de até 15 módulos fiscais (na lei anterior essa dispensa era para áreas de até 4 módulos).
A MP 910/19 caducou, mas seu conteúdo foi em parte transferido para o Projeto de Lei 2.633/20 que, no entanto, reduziu para 6 módulos fiscais a aplicação do procedimento facilitado autodeclaratório e sem vistoria (Deputado Zé Silva, do Solidariedade/MG). Adicionalmente, no dia 22 de fevereiro de 2021, o Senador Irajá de Abreu (PSD/MG) protocolou um novo projeto de lei (PL 510/2021) que embora vá na mesma direção do anterior, alterou o marco temporal, flexibilizou os requisitos para a regularização, estendeu o procedimento simplificado para imóveis de até 2.500 hectares no país (em ocupações até 2012) e enfraqueceu as salvaguardas ambientais. Ambos aplicam as regras da regularização fundiária para todo o país, além de facilitarem os procedimentos de regularização.
O PL 510, devido às flexibilizações que institui, não apenas anistia as invasões que ocorreram (ampliando os prazos para ocupações mais recentes), mas incentiva novas invasões de terras públicas, sob a expectativa de que as mesmas logo serão regularizadas dando origem a um ciclo perverso de destruição ambiental e criminalidade. Estima-se que o PL 510 anistiará a ocupação criminosa de 5.737 parcelas de 2012 a 2018 e também invasões futuras, o que pode chegar a 2,4 milhões de hectares. O PL 510 aumenta o risco e as possibilidades de fraude ao permitir que todo o processo seja conduzido sem vistorias.
De um modo geral, as recentes mudanças nos marcos legais de regularização fundiária procuraram ampliar as faixas de área passíveis de regularização, ao mesmo tempo em que reduziram progressivamente os critérios de enquadramento dos beneficiários, restringiram os procedimentos de demanda a autodeclarações e extinguiram as possibilidades de vistoria in loco e de análise documental. As mudanças nos instrumentos da regularização fundiária implicam que a destinação das terras públicas e o orçamento público progressivamente se concentre em políticas de regularização em favor de particulares (incluindo empresas).
Esse modelo de regularização fundiária pode ter como consequência a privatização das terras públicas e a distribuição desigual de terras. Além disso, pode resultar também no aquecimento dos mercado fundiários e no fomento a atividades especulativas, no afrouxamento das políticas de combate ao desmatamento, na descontinuidade das políticas de redemocratização do acesso à terra (reforma agrária), na menor diversificação dos sistemas produtivos, bem como no aumento da violência no meio rural, em particular no confronto com indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.
O estudo ''A solução é a regularização fundiária?'' defende que a discussão em torno da regularização fundiária está inserida em uma disputa política sobre qual o fim daremos para imensas áreas de terras públicas, patrimônio do povo brasileiro.
Este artigo faz parte do Webdossiê "Disputas e desafios do modelo agrário brasileiro: quando novos instrumentos reforçam velhas desigualdades" e baseia-se na publicação "A solução é a regularização fundiária? Privatização da terra, digitalização de registros e o papel do estado".