Migração Ambiental – a realidade brasileira

A Fundação Heinrich Böll conversou com a Erika Pires Ramos sobre migração ambiental, especialmente no contexto brasileiro. Erika é fundadora e pesquisadora da RESAMA, a Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais. A Rede é uma articulação independente de pesquisadores que busca introduzir o tema das migrações ambientais nas agendas públicas da região, com o objetivo de alcançar o reconhecimento e a proteção integral das pessoas afetadas no contexto de desastres e mudança climática.

Sistema Cantareira, São Paulo
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Sistema Cantareira em São Paulo

Böll Brasil: Para começar: o que quer dizer migração ambiental?

Erika Pires Ramos: Migração ambiental ocorre quando pessoas impactadas por grandes eventos e grandes mudanças ambientais precisam sair dos seus territórios ou locais de origem ou residência, em razão de um evento súbito ou de um processo de degradação ambiental progressiva. Elas podem se mover de forma temporária ou permanente, internamente ou cruzando uma fronteira internacional em razão de grandes alterações no ambiente que impactem significativamente sua existência e seus modos de vida.

Böll Brasil: As mudanças climáticas são consideradas uma das causas principais de migração ambiental. Já existem impactos considerados provenientes das mudanças climáticas que no Brasil possam ter alguma relação com a migração?

Erika Pires Ramos: A mudança climática, de fato, pode ser considerada o principal gatilho dessa mobilidade, da migração, do deslocamento forçado e da relocação. Mas é importante salientar que não é o único. Causas não relacionadas ao clima como terremotos e erupções vulcânicas, grandes contaminações e até a criação de áreas protegidas também podem gerar deslocamento humano. Porém, os eventos relacionados à mudança climática são os que mais afetam a população brasileira, agravando a ocorrência de desastres e produzindo deslocamentos. É importante enfatizar que a migração ambiental não é um fenômeno do futuro. Já é realidade no Brasil, na nossa região - a América do Sul - e no mundo de uma forma geral. No primeiro semestre de 2019, segundo o Internal Displacement Monitoring Centre - IDMC, o Brasil contabilizou mais de 200 000 novos deslocamentos internos devido a desastres ambientais, ocupando o sexto lugar do ranking dos países com os números mais altos de novos deslocamentos. As causas principais foram as fortes chuvas e inundações. Pensando nas regiões brasileiras, pode-se considerar dois grandes grupos de eventos: o primeiro relacionado a secas, estiagens prolongadas e processos de desertificação - que afetam mais fortemente a região nordeste - e o segundo de inundações, alagamentos e deslizamentos de terra que afetam várias regiões.  No Brasil, a seca é o evento de maior impacto sobre as pessoas e cujos fluxos migratórios são conhecidos, como é o caso da migração de nordestinos para o sudeste brasileiro. As previsões para o futuro são de agravamento desse cenário devido à crise climática. Não apenas no nordeste do Brasil. O agravamento dos extremos climáticos na Amazônia também já é identificado, e as previsões da ciência dão conhecimento disso, do fenômeno de chuvas anormais e das secas prolongadas que impactam severamente o modo de ser, viver e existir das comunidades que habitam essa região.  Afetam, por exemplo, as atividades de subsistência, pesca, extrativismo, seu sistema de transporte e o acesso aos serviços de educação e saúde. Na região sudeste, em São Paulo, a estiagem prolongada entre 2014-2016 afetou gravemente o Sistema Cantareira, gerando crise no abastecimento e racionamento de água com os reservatórios operando no nível mínimo e com o volume morto, que é a água de pior qualidade.  Esta diversidade de causas e impactos sobre as pessoas está registrada no documentário “O Amanhã é Hoje”, que reúne histórias de brasileiros afetados pela mudança climática em diversas regiões do país.

Böll Brasil: Migração desde sempre foi uma estratégia humana de adaptação. A migração ambiental também poderia ser vista como possível maneira de gestão de problemas ambientais?

Erika Pires Ramos: Sim. Quando se fala da migração como estratégia de adaptação há que considerar distintos cenários e que existem limites à adaptação. Em primeiro lugar, a migração deve ser uma estratégia e não a única; em segundo lugar, a adaptação no próprio território deve ser priorizada quando viável porque pode atenuar os impactos emocionais de quem precisa se deslocar, muitas vezes invisibilizados e mais dolorosos. No entanto, nem sempre a adaptação no local é possível. Existem situações em que não existe a possibilidade permanecer ou retornar ao local de origem, quando os processos de degradação ambiental não forem reversíveis, não houver possibilidade de recuperar ou restaurar a área afetada, como ocorre em contextos de desertificação, elevação do nível do mar e impacto de grandes ressacas que podem tornar o ambiente inabitável, improdutivo ou provocar o desaparecimento físico de uma base territorial local ou de um país. Nesse sentido, não é apenas a comunidade diretamente impactada que precisa se adaptar. Todo um sistema normativo, político e social deve estar capacitado para responder a esses cenários. Por isso a revisão das políticas públicas ambientais deve considerar a mobilidade humana para que essa estratégia seja utilizada de forma segura e apoiada pelo poder público. É necessário considerar os aportes do conhecimento técnico-científico e as percepções e os aportes tradicionais das comunidades afetadas e de acolhida, bem como as necessidades e demandas de cada ator através da ampla participação dos atores envolvidos nos processos de tomada de decisão.

Böll Brasil: Algum caso concreto te marcou na sua vida profissional?

Erika Pires Ramos: Dois momentos importantes relacionados à migração ambiental marcaram a minha vida profissional. O primeiro deles foi o terremoto no Haiti em 2010 e o intenso fluxo migratório haitiano para o Brasil. Colaborei como voluntária com a Missão Paz em 2014, em São Paulo, quando os haitianos vieram do Norte para o Sudeste do Brasil. Tocou-me muito o agradecimento de um haitiano pelo simples fato de tê-lo chamado pelo nome porque, segundo ele, fazia tempo que ele não escutava o próprio nome desde que tinha saído do Haiti. E aí se percebe que o impacto dos desastres nas pessoas vai muito além do material. A migração haitiana foi e é bastante importante para o Brasil porque contribuiu para repensar a legislação migratória e estabelecer uma política migratória alicerçada numa perspectiva de direitos humanos, graças à atuação forte e contundente da sociedade civil durante o processo legislativo. Tive a oportunidade de participar das reuniões e audiências públicas para garantir que a questão ambiental estivesse presente na legislação e hoje consta a previsão de visto de acolhida humanitária em contextos de calamidades de grandes proporções e desastre ambiental, ainda pendente de regulamentação. Segundo o Observatório das Migrações Internacionais - OBMIGRA, no relatório anual sobre migração e refúgio publicado em 2019, foram registrados mais de 100 mil haitianos entre 2011-2018. Por outro lado, é preciso olhar para quem se desloca internamente por fatores ambientais. Nesse sentido, o caso da Comunidade Caiçara Nova Enseada - antiga Comunidade da Enseada da Baleia - da Ilha do Cardoso, que teve que se relocar em razão do impacto das ressacas no seu território, é bastante emblemático (relatado no e-book refugiados ambientais).  Através de observações e previsões de uma liderança mais antiga a comunidade acompanhava a diminuição progressiva do seu território em razão de processos erosivos desde os anos 80. A percepção e o conhecimento tradicional foi fundamental para que a comunidade realizasse a relocação antes do desaparecimento completo do seu território. O impacto emocional sobre a comunidade ainda é enorme, na relação de pertencimento com seu território e toda uma história ali construída. A sensação de perda de uma história de vida que ficou no lugar e não se recupera. A comunidade teve que se adaptar rapidamente, criar estratégias para manter sua subsistência e modos de vida tradicionais vivos e a união da comunidade para que as famílias se relocassem conjuntamente.  A comunidade teve que construir sua própria rede de apoio diante da falta de assistência do poder público. Nesse processo de deslocamento e relocação autogestionado, a liderança das mulheres foi fundamental no fortalecimento e reconstrução da dinâmica comunitária.

Böll Brasil: Você é a fundadora da Rede Sul-americana de Migrações Ambientais. O que levou você a fundar essa rede?

Erika Pires Ramos: Eu me dedico à temática das migrações ambientais desde 2005, quando quase nada sobre o tema era escrito em português e preparava um projeto de tese de doutorado.  Ingressei formalmente na USP em 2008 e defendi a tese em 2011. Em 2010, fui convidada para um evento pioneiro na temática na região organizado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) com apoio do Sistema ONU no Uruguai. E naquela oportunidade ficou evidente a necessidade de um espaço para debater esse tema ainda inexplorado na região e de uma abordagem integral centrada nas pessoas. Ou bem se trabalhava somente a agenda de clima, ou a de migração, ou com desastres, ou alguma outra agenda relacionada, mas sem esse olhar integral. Os temas eram vistos de forma totalmente fragmentada. Com essa perspectiva de um olhar integral e centrado nas pessoas é que nasce a Rede Sul-americana para as Migrações Ambientais, a RESAMA, para conectar pesquisadores dos distintos países da região e, de forma colaborativa e independente, produzir e compartilhar conhecimento e experiências e contribuir ativamente nos processos de tomada de decisão e formulação de políticas e estratégias de reconhecimento e proteção dos migrantes ambientais.

Böll Brasil: Qual é o trabalho realizado pela Rede e qual é o foco?

Erika Pires Ramos: O nosso foco é dar visibilidade às pessoas, grupos e comunidades nesses contextos de risco e deslocamento por fatores ambientais e buscar o reconhecimento e proteção dos seus direitos em todas as fases do desastre e do deslocamento. A mobilidade humana relacionada à questão ambiental é ampla, abrange a migração voluntária, o deslocamento forçado, a relocação planejada. Mas é preciso estar atento também às populações imóveis ou imobilizadas, que decidem permanecer ou estão impedidas de se mover pelas circunstâncias do evento ou outros fatores. É fundamental que o tema da migração ambiental esteja presente em distintas agendas - ambiental, climática, de redução de risco de desastres, direitos humanos, sustentabilidade. Nessa perspectiva, a RESAMA atua em distintas frentes - pesquisa, capacitação e incidência nos espaços de participação pública - promovendo a integração entre distintas agendas e abordagens, demonstrando que a temática deve ser tratada de forma transversal não apenas no âmbito global, mas especialmente no nível regional, nacional e local.

Böll Brasil: A flexibilização e as mudanças na política da legislação ambiental brasileira são capazes de aumentar o número de migrantes ambientais?

Erika Pires Ramos: Sem dúvida. A flexibilização da legislação e das políticas ambientais fragiliza a proteção ambiental e, consequentemente, a ocorrência de desastres e de deslocamentos pode aumentar sim. A diminuição de áreas - que possuem funções ambientais essenciais na prevenção e na contenção dos impactos de eventos extremos, como é o caso das Áreas de Preservação Permanente- coloca em risco a população, as atividades econômicas, a infraestrutura e os serviços de uma forma geral. A vegetação de margens de rio, de morros e encostas, por exemplo, retém a força da chuva, evitando e mitigando os impactos de tempestades, como as inundações e deslizamentos. Cada bioma tem uma função ambiental própria, e quando se enfraquece a proteção, os serviços ambientais diminuem. O impacto mais direto incide sobre os povos indígenas - aliados históricos na conservação e no combate aos efeitos da mudança climática - e as comunidades tradicionais, como os ribeirinhos, caiçaras, quilombolas que possuem uma relação vital com seus territórios originários e sobre a população mais pobre e com menor capacidade de resposta.. Importante ter em mente que os desastres não são naturais e não possuem uma única causa, mas são um resultado histórico da interação entre ameaças (naturais e/ou provocadas pelo homem) e distintos  contextos de vulnerabilidade que contam com a interferência da ação ou omissão humana, gerando perdas significativas: humanas, materiais, ambientais, culturais. Nesse contexto, a flexibilização da legislação e a falta de políticas capazes de combater os efeitos adversos da mudança climática afeta a todos, mas principalmente os que possuem menos recursos e que menos contribuem para a crise climática. Por isso o enfrentamento da degradação ambiental e da crise climática é estratégico, já que seus impactos - inclusive sobre a mobilidade humana - não se limitam às fronteiras nacionais.

Para mais informações sobre a RESAMA: contato.resama@gmail.com; https://resama.org; facebook; twitter

Em 2012, o Conselho Nacional de Imigração - CNIg adotou a Resolução Normativa nº 97, concedendo visto permanente por razões humanitárias aos haitianos que vieram ao Brasil devido ao terremoto de 2010. Com a publicação da Nova Lei de Migração (Lei n. 13.445/2017), o visto humanitário foi institucionalizado, porém de forma temporária. É importante salientar que enquanto essa lei protege imigrantes internacionais, ainda não há uma legislação brasileira que reconheça e proteja as pessoas deslocadas internamente devido a fatores ambientais no Brasil.