Quando as cinzas de queimadas da floresta amazônica fizeram o dia virar noite em São Paulo, um alerta acendeu em todo o país e na mídia internacional. Não era mais possível ignorar o aumento exponencial de queimadas na maior floresta tropical do mundo, capaz de viajar milhares de quilômetros até o centro financeiro do país.
Ali, a política ambiental do governo Bolsonaro, refletida na figura do ministro Ricardo Salles, ficou escancarada. O legado deixado por Michel Temer foi muito agravado pela trupe do PSL, Novo, DEM, MBL e companhia limitada.
Nesse caso, os números não mentem. Ao contrário da maioria das declarações da equipe de governo. De janeiro a agosto de 2019, o aumento no número de focos de queimadas no Brasil foi de 82% em relação ao mesmo período de 2018. O mês de agosto foi o pior dos últimos nove anos: mais de 30 mil pontos registrados somente na Amazônia, o triplo do registrado para o mesmo mês em 2018.
Nada disso é por acaso. O governo ainda tentou colocar a culpa em “uma seca mais severa” que o normal, mas essa possibilidade foi prontamente desmentida por uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Os pesquisadores foram categóricos em afirmar que o aumento das queimadas está ligado ao desmatamento e que há mais umidade na Amazônia em 2019 do que nos últimos três anos.
A tal “austeridade” também explica boa parte do problema. O Decreto 9.741/2019 cortou R$ 187 milhões - cerca de 20% - do orçamento do Ministério do Meio Ambiente, que tem o total previsto de R$ 2,8 bilhões, sendo R$ 1,7 bilhão só para pagamento de pessoal e encargos sociais.
Os cortes demonstram o tamanho do desastre: a ação de Prevenção e Controle de Incêndios Florestais nas Áreas Federais Prioritárias perdeu 38% do orçamento. A construção da sede do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais – Prevfogo foi limada em 50% da verba. O eixo de Fiscalização Ambiental e Prevenção e Combate a Incêndios Florestais perdeu 20% do orçamento.
Levantamento do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) constatou também uma queda brusca nos valores pagos com monitoramento de queimadas em 2019 em relação a 2018.
Nos sete primeiros meses de 2019, os gastos do governo com a ação caíram 67% em relação aos sete primeiros meses de 2018, para R$ 415.622. Para 2020, 38% do valor previsto ainda depende de negociação com o Congresso.
O monitoramento das queimadas é feito por sistemas de satélite do Inpe, que identificam os incêndios na região amazônica e informam a localização dos focos de queimadas para a fiscalização.
Provando o seu caráter anticientífico, Bolsonaro atacou o ex-presidente do INPE, Ricardo Galvão, um dos cientistas mais respeitados do mundo em sua área, crise que levou ao pedido de demissão de Galvão. Entre outras críticas duras, o cientista disse que Ricardo Salles “tem uma visão capitalista destruidora” e a equipe do governo “é muito despreparada”. Quase um elogio perto do histórico dos envolvidos.
Cortes se acumulam em várias ações
Voltando ao MMA, outros programas perderam até 95% do orçamento, caso das “Iniciativas para Implementação da Política Nacional sobre Mudança do Clima”. O desprezo em sediar a COP, que caiu no colo do Chile, dá a medida de quanto Bolsonaro e Ricardo Salles se preocupam com a crise climática. Os recursos para o licenciamento ambiental federal também foram reduzidos em 43%.
Não perca o bonde.
A área de controle e fiscalização do Ibama perdeu R$ 24,8 milhões (24%) do orçamento do programa. É o setor que combate desmatamento ilegal, pesca predatória e garimpos clandestinos. Diante da desautorização pública do governo para as ações de fiscalização do Ibama, chegando a “proibir” que os fiscais façam o seu trabalho, não é de espantar que garimpeiros se achem no direito de cobrar o presidente em defender os seus interesses.
As constantes trocas de direção, os cargos entregues para militares sem qualquer experiência na área ambiental e a troca de servidores de seus locais de origem totalmente à revelia e sem embasamento técnico se tornaram uma constante no MMA, no Ibama e no ICMBio.
No Instituto Chico Mendes, entidade que leva o nome dessa figura histórica da luta ambiental brasileira que para o ministro Salles “não tem muita importância”, os funcionários do órgão emitiram uma carta pública pedindo “o fim da política de assédio e intimidação de servidores, as remoções de cunho punitivo, o cerceamento à livre manifestação, além de críticas e insultos às instituições e servidores por parte do alto escalão do governo federal".
Como previsto, desmatamento volta a crescer sem controle
A Amazônia perdeu em agosto deste ano 1.698 quilômetros quadrados de cobertura vegetal, área 222% maior do que a desmatada no mesmo mês de 2018, que foi de 526 quilômetros quadrados, segundo dados divulgados no início de setembro pelo Deter, levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, feito pelo Inpe.
Em comparação aos mesmos períodos de 2018, os meses de junho e julho apresentaram, respectivamente, crescimento de 90% e 278% no desmate.
Com os saltos, a área desflorestada da Amazônia nos oito primeiros meses de 2019 chegou a 6.404 quilômetros quadrados, número 92% superior ao registrado no mesmo período do ano anterior (3.337 quilômetros quadrados).
Os ataques de Bolsonaro ao INPE e à ciência e as suas declarações que fazem grileiros, garimpeiros, pistoleiros e bandidos de toda sorte passar a tocar o terror na Amazônia se refletem, como provado, em consequências imediatas.
Chama a atenção a precisão das previsões feitas.
Estimativas realizadas por pesquisadores do INPE em outubro passado, logo depois da eleição de Bolsonaro, mostravam que o desmatamento na Amazônia poderia subir para 25,600 km2/ano. Um aumento de 268% em relação a 2017, que já foi ruim, com 6.947 km2 desmatados, chegando a níveis semelhantes aos registrados no início dos anos 2000, mas com a pressão crescente da demanda por commodities como soja e carne.
Em uma década, isso seria o equivalente a área do Reino Unido inteira em desmatamento. Mais: 18% desse impacto ocorreria dentro de áreas protegidas, como reservas indígenas e parques nacionais. A taxa prevista seria cerca de 8 vezes maior do que a meta proposta pelo governo, em 2009, de chegar a 3,5 mil km2 em 2020.
Se o ritmo identificado de janeiro a agosto de 2019 for mantido, Bolsonaro pode chegar bem perto dessas previsões dos cientistas já no primeiro ano de mandato. Um recorde de eficiência para o mal.
Nova lei do licenciamento deve “liberar geral”
Resultado de um longo processo de discussão, a relatoria da “Lei Geral do Licenciamento Ambiental” (Lei 3.729/2004) finalmente caiu nas mãos de Kim Kataguiri (DEM-SP), a cara do “Movimento Brasil Livre”, o MBL, fartamente financiado pelos irmãos Koch, que dedicaram boa parte de suas vidas a destruir o meio ambiente e criar essa onda global de negacionistas da crise climática que inevitavelmente levará todos nós a um buraco irreversível.
Pois bem. Após prometer que o texto final seria “equilibrado”, Kataguiri “surpreendeu” técnicos, juristas e especialistas que participaram de audiências públicas e ofereceram, a pedido do deputado do DEM/MBL, subsídios para a melhoria do projeto. No fim, foram todos ignorados.
Em nota, organizações ambientalistas, indigenistas e ligadas a comunidades tradicionais e a lutas sociais afirmaram que Kataguiri “deu uma guinada de 180 graus, rompeu acordos anteriormente firmados e apresentou, de última hora, um substitutivo que torna o licenciamento exceção, em vez de regra, comprometendo a qualidade socioambiental e a segurança jurídica das obras e atividades econômicas com potencial de impactos e danos para a sociedade”.
Entre as inúmeras brechas constam: a dispensa de licenciamento para atividades agropecuárias - o texto diz que a validade da inscrição no cadastro ambiental rural já é considerada licença ambiental -; a extinção da responsabilidade de instituições financeiras por dano ambiental; a restrição da aplicação do estudo de impacto ambiental; fragilidades na apresentação das formas de participação pública; a exclusão de impactos classificados como “indiretos” do licenciamento ambiental e excesso de mecanismos de priorização de projetos para licenciamento ambiental, entre outros.
Associações de servidores consideram que o projeto transformará o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), instrumento protegido pela Constituição Federal, em algo raríssimo. O licenciamento estará reduzido a mera formalidade e o projeto ignora os interesses das comunidades indígenas e quilombolas, além de também ignorar áreas protegidas como Reservas Extrativistas e Florestas Nacionais e Estaduais.
Em suma, o projeto, que pode ser aprovado a qualquer momento depois de 15 anos, pode liberar geral um processo que hoje já é frágil, mal executado e que coleciona violações de toda sorte Brasil afora, tanto em grandes projetos quanto em outros que não chamam tanta atenção assim. Caminho aberto para a sanha destrutiva da trupe que elegeu Bolsonaro.
Time formado para a destruição interna e para transformar o Brasil em pária internacional
Muitos se perguntam por que Bolsonaro não cumpriu a sua promessa de simplesmente extinguir o Ministério do Meio Ambiente, como era a sua pretensão inicial. A resposta é que, ao invés de se indispor diretamente tanto dentro do Brasil quanto principalmente com a comunidade internacional, Bolsonaro resolveu corroer por dentro as instituições, nomeando verdadeiros inimigos daquilo que supostamente deveriam proteger.
E, claro, também foi uma tentativa de adiar as possíveis sanções internacionais e a quebra de acordos comerciais muito interessantes para o Brasil e que afetam diretamente a sua base de apoio ruralista. Mexeu no bolso, mexeu com todos. A crise provocada pela explosão das queimadas na Amazônia e alguns boicotes internacionais que o Brasil já vem sofrendo mostram, no entanto, que não demorou muito para que o estrago proposto se concretizasse.
Afinal, com Ricardo Salles no MMA, um ex-secretário de meio ambiente condenado e com direitos políticos cassados por favorecer mineradoras em SP, fundador do movimento “Endireita Brasil” e que tentou novamente – e fracassou - se eleger deputado federal prometendo literalmente “meter bala” em movimentos sociais, nada surpreende.
Completam o time Nabhan Garcia, secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, o responsável demarcações de terras e a reforma agrária. Presidente da “União Democrática Ruralista”, Nabhan foi acusado pela CPMI da Terra por formar milícias para assassinar trabalhadores sem-terra. A UDR tem uma longa história de violência organizada no campo.
Por fim, Tereza Cristina (DEM/MS), líder da Frente Parlamentar da Agropecuária e “Musa do Veneno”, segundo os próprios ruralistas, é a ministra da Agricultura. Cristina recebeu doações de executivos diretamente ligados aos agrotóxicos na sua campanha de reeleição para o Legislativo.
Filha de uma família de proprietários rurais e políticos, seu tataravô é o fluminense Quintino Bocaiuva, primeiro ministro das Relações Exteriores e da Agricultura da República, Tereza Cristina é um puro suco – envenenado – de Brasil.
Também foi presidente da comissão especial da Câmara dos Deputados que aprovou o Projeto de Lei 6299 que facilita a liberação dos agrotóxicos e deixa tudo nas mãos do ministério agora comandado por Cristina. Licenças para o uso de novos venenos agora são aprovadas sem passar pelos testes que analisam o impacto no meio ambiente e na saúde da população.
Com o terreno preparado, o governo Bolsonaro já liberou 290 novos agrotóxicos em 2019 até o momento. 41% deles são considerados extremamente ou altamente tóxicos e 32% são proibidos na União Europeia.
O Brasil já é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, tem as leis mais permissivas em relação à contaminação e ainda oferece subsídios bilionários para o setor.
Será um longo caminho caso o Brasil deseje parar a destruição acelerada dos seus biomas únicos, como a Amazônia e o Cerrado, fundamentais não só para o país, mas para o planeta, e ser um país respeitado internacionalmente de novo.
A única certeza até lá é que está ruim. E vai piorar.