Sobretudo nos últimos 10 anos, assistimos à intensificação de um movimento no circuito das artes brasileiras e internacionais, onde em diversos museus há espaços para exposições de artistas e de curadores que apresentam a “tal” da arte indígena contemporânea. Mas o que queremos dizer com esse termo ao atribuí-lo à arte feita por pessoas indígenas? E quais são os impactos dessas produções no nosso cenário de mundo, sobretudo se pensarmos em uma alternativa de futuro positivo?
Arte. Indígena. Contemporânea.
Seria, então, essa uma mesma arte para tantos povos distintos? Como se entende essa contemporaneidade? Seria sinônimo de presente em distinção ao passado? O que é arte e qual é seu lugar nas cosmologias desses povos?
Começo colocando aqui algumas provocações que mostram a complexidade quando falamos de cosmovisões que envolvem a presença de mitos vivos, do poder da palavra, dos encantados e dos sonhos que permeiam o ser, o fazer e o existir das produções artísticas. Berta Ribeiro, antropóloga e aliada de diversas comunidades indígenas, já apontava, em 1978, para uma vontade de beleza e de expressões simbólicas nas produções indígenas que vão muito além de seu fazer utilitário. Ela e também Ailton Krenak falam de uma vida feita e vivida em conjunto com a arte, onde a produção de uma rede, de um balaio ou uma canoa é parte das práticas de pessoas indígenas e seus coletivos que são permeados do que poderíamos entender como beleza e arte, de forma que a vida não é útil.
Fato é que a arte indígena contemporânea ganha cada vez mais espaço em alguns circuitos ocidentais, sendo capaz de retirar os diversos povos indígenas do congelamento, do aprisionamento das vitrines dos museus e dos estereótipos firmados ao longo de séculos da insistência da colonialidade. A partir de múltiplas linguagens, ela externaliza, dentro e fora deste contexto, cosmovisões, memórias, vivências indígenas e mitos, que estão vivos e presentes, como pode trazer denúncias em relação a situações de apagamento e de violência que permeiam a vida desses povos e seus territórios. Indo além, ela privilegia a narrativa dos povos indígenas sobre eles mesmos. A imagem das pessoas indígenas passa a não ser a mais a observada, a desenhada e a caricatura por um pariwat[1], mas assume-se uma autonomia narrativa - aqui menciono o texto do artista Matheus Ribs.
Diante disso, vemos em diversas exposições e instituições esse movimento. Um exemplo foi Véxoa: Nós Sabemos, realizada em 2020 na Pinacoteca de São Paulo, tendo sido uma exposição que reuniu pela primeira vez em São Paulo cerca de 20 artistas indígenas de diversas partes do Brasil. A exposição Viva VivaEscola Viva da organização Selvagem na Casa França-Brasil em 2023 no Rio de Janeiro, que reuniu artistas Guarani, Huni Kuin, Baniwa e Tukano, em que Francisco Baniwa, por meio de algumas produções de seu sobrinho Frank Fontes Baniwa, apresentou um pouco das narrativas míticas baniwa do Alto Rio Nego. Mais um exemplo é o Núcleo Histórico Indígena de Lagoa Queimada em Santa Inês, na Bahia, criado 20 anos depois do encontro de uma urna funerária Aratu em 2004. O centro cultural, de curadoria de Ziel Karapotó, abriga exposição de pessoas indígenas procurando ocupar esse espaço em disputa e plantar suas raízes, sobretudo referente aos povos indígenas do nordeste brasileiro.
As insurgências da Arte Indígena Contemporânea também se mostram muito potentes no cenário internacional. Exemplos disso são a inauguração do pavilhão Hãhãwpuá na 60a Bienal de Veneza, de curadoria de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana. Outro exemplo foi o Festival Koe’yene em Braunschweig na Alemanha em 2024, que proporcionou um dos maiores encontros de pessoas indígenas da América do Sul na Europa, dentre elas pessoas vindas dos territórios Baniwa, Terena, Wapichana, Karapotó entre artistas Shipibo Conibo do Peru e Qom da Argentina.
Falar a língua do outro
No entanto, para entrar neste circuito ocidental da arte, sem ingenuidade, é preciso falar a língua dele. Assim, a chamada Arte Indígena Contemporânea ganha cada vez mais espaço nos museus, galerias, festivais, bienais, na literatura, no teatro e nos trabalhos colaborativos, destacando xs artistas de forma mais individualizada. Isso não significa que esse acesso seja um caminho fácil. Pelo contrário, não é. Em nível nacional como internacional, esse processo envolve diversas negociações em torno do que se espera desses artistas e de suas propostas. Isso evidencia a tensão de até onde é possível realizar de fato em um trabalho intercultural e decolonial a partir de trocas que ocorrem com/em instituições, epistemologias e manifestações culturais de matriz colonial.
Dessa forma, vemos a necessidade de algumas cautelas em falar a língua do outro ao se inserir em tais circuitos. Em alguns espaços, as práticas são claramente mais predatórias, onde não há de fato uma troca intercultural autêntica, que compreende, por exemplo, outras formas de pensar a arte e os seus tempos e formas que envolvem seu fazer. Além disso, muitas vezes essa relação é limitada pelo “exotismo sob verniz de celebração”, como coloca o colega pesquisador e artista cearense Eduardo Bruno. Isso no sentido da busca da validação de uma “autenticidade primitiva que procura encaixá-los em estereótipos já consolidados no imaginário europeu”, podendo, neste contexto, reproduzir ainda uma ideia de índio tema X indígena vida[2].
Diante desse contexto, por mais que estar atento se faça necessário no cenário de permanentes ameaças da colonialidade, a partir da ocupação de tais espaços podemos pensar nas potências da arte indígena contemporânea. Como armadilha para pegar armadilhas, ou como fazeres indígenas enquanto estados da arte, como colocou Jaider Esbell em sua publicação de 2020. Podemos entendê-la também a partir de Nego Bispo: como estratégia de contracolonização, onde por meio da estrutura, se torna possível alterá-la - pelo menos no quesito das representações e dos imaginários sobre as pessoas indígenas e sobre o nosso mundo.
A partir dessa potência, é possível, então, entrar em tais estruturas e provocar uma alteração de rota: ao dialogar com esses espaços, esses artistas apresentam outras perspectivas e olhares sobre nosso mundo. Olhares talvez mais empáticos, plurais e gentis com a beleza e grandeza da nossa casa e de todos os seres que nela habitam. E a partir disso, quiçá seja mais possível coracionar espaços, fertilizar e inspirar imaginários que remetam às diversas formas de nos relacionarmos com os territórios em que vivemos e com a terra embaixo do concreto em que pisamos.
Bibliografia:
Bruno, Eduardo. 2025. Exotismo sob verniz de celebração. [Instagram]. 24.06.2025. Disponível em: eduardobff.
Esbell, Jaider. 2020. A arte indígena contemporânea como armadilha para armadilhas. Galeria Jaider Esbell. Disponível em http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-armadilha-para-armadilhas/ Acesso em 24.09.2025
GUERRERO ARIAS, P. Corazonar el sentido de las epistemologias dominantes desde las sabidurías insurgentes, para construir sentidos otros de la existência. [s.l]. Calle14. v. 4, n 5. p. 80-95. 2010.
Krenak, Ailton. 2020. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras.
Ribs, Mateus. 2025. Arte & Identidade nas Encruzilhadas do Capitalismo [Substack].19.08.2025
Ramos, Guerreiro. 1995. “Introdução à sociologia crítica brasileira”. Rio de Janeiro: UFRJ
ed.
Ribeiro, Berta G. 1978. “Arte indígena, linguagem visual.” Rio de Janeiro: Paz e Terra
[1] Pariwat é o termo na língua munduruku que designa o não indígena como mostrou a liderança Jairo Saw Munduruku.
[2] Aqui traço um paralelo e faço referência ao autor Guerreiro Ramos ao falar do olhar branco sobre o pessoas negras. Faço uma ressalva de que ainda que quando me refiro às pessoas indígenas se trate de outros corpos racializados, é possível traçar alguns pontos em comum diante das violências coloniais. Segundo o autor: uma coisa é o negro-tema; outra, o negro-vida. O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção. O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistado, profético, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje (Ramos, 1995, p. 215). Sendo assim, utilizo a palavra índio para me referir a essa ideia do que é tematizado e nomeado em contraponto à experiência vivida da pessoa indígena, que inclusive, em muitos casos, opta pelo uso da palavra indígena.