Ameaças à consolidação dos Direitos Indígenas no Brasil

O Brasil possui uma diversidade étnica significativa. Segundo o último censo oficial, realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem no país aproximadamente 817.963 indígenas, dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 em zonas urbanas. Este censo revelou que em todos os estados da federação, inclusive no Distrito Federal, há povos indígenas. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) aponta a existência de 305 diferentes povos e registra 274 línguas indígenas e 114 grupos de indígenas isolados e de recente contato. Além disso, cabe ressaltar que das 1.298 Terras Indígenas (TIs) no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência do Estado para que seu processo demarcatório seja finalizado. E ainda, destas 829 um total de 536 terras (64%) não tiveram ainda nenhuma providência adotada pelo Estado[1].

Ameaças à consolidação dos Direitos Indígenas no Brasil - Fotos: Ana Pessoa / Mídia NINJA

Diante de tamanha diversidade, e rompendo com o princípio integracionista que outrora orientava a relação do Estado brasileiro com os povos originários, a Constituição Federal de 1988 inaugurou uma ordem jurídica baseada na plurietnicidade. O caput do artigo 231 reconheceu aos povos indígenas o direito à “organização social, línguas, crenças e tradições”. Ou seja, se antes a orientação era integrar, após a adoção da Carta Magna entrou em vigor novo comando, determinando respeito ao modo de ver e entender o mundo a partir da perspectiva indígena. Este reconhecimento inaugurou também uma nova política de autodeterminação. Em outras palavras, reconheceu-se o Estado pluriétnico. O artigo 231 da Constituição, alinhado com seus artigos 210 e 215, incluem os padrões culturais dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais presentes no país.

No cenário internacional houve, de igual modo, um avanço significativo. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) revogou a Convenção nº 107, de 5 de junho de 1957, que tratava da “proteção e integração das populações indígenas”. Em substituição, aprovou-se a Convenção nº 169, de 7 de junho de 1989, internalizada no Brasil por meio do Decreto nº 5.051/2004, atualmente consolidado na Lei nº 10.088/2019. Assim como a Constituição de 1988, este novo tratado superou o paradigma integracionista, trazendo conceitos básicos que deveriam orientar a relação estatal com os povos indígenas, especialmente relacionados ao respeito à identidade cultural e à consulta e participação desses povos na tomada de decisões, já que é seu direito definir as próprias prioridades de desenvolvimento, na medida em que afetam suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria terra que ocupam ou utilizam.

Por sua vez, diferente da Convenção nº 169, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas não é um instrumento vinculante ao Estado, servindo como fonte interpretativa de direitos. Ela é tida como o mais amplo instrumento internacional concernente aos direitos dos povos indígenas, uma vez que dá proeminência sem precedentes a direitos coletivos na esfera internacional de direitos humanos e estabelece um parâmetro universal de padrões mínimos para a sobrevivência, dignidade e bem-estar dos povos indígenas. Também elabora a forma com que se aplicam os padrões de direitos humanos já existentes à situação específica dos povos indígenas.

Portanto, não há dúvida de que o Estado brasileiro respeitou a pluralidade étnica dos povos indígenas, o que se constata no desenvolvimento da política indigenista pós 1988 – especialmente no âmbito da saúde e da educação, onde expedientes normativos foram paulatinamente baixados com vistas a contemplar as especificidades culturais indígenas, muito embora ainda existam desafios. No que tange à política de regularização dos territórios indígenas é possível constatar tais mudanças, tendo em vista que o texto constitucional outorgou nova forma de reconhecimento, inovando com o uso da categoria “terra tradicionalmente ocupada".

Dessa forma, elegeram-se novos contornos para o reconhecimento de direitos coletivos, embora muitos empecilhos, de ordem jurídica, econômica e política, ainda persistam para a conclusão da demarcação das Terras Indígenas no Brasil.

O contexto atual de ataques aos direitos dos povos indígenas

No atual contexto político brasileiro, apesar de contarmos com essa extensa proteção normativa, os povos indígenas têm enfrentado demandas de várias ordens sociais, desde a ausência de demarcação e proteção territorial até a sistêmica negativa de direitos sociais, como acesso à educação, saúde e previdência social com base nos direitos identitários previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, em abril de 2021 completou-se um ciclo de três anos sem que nenhuma terra indígena tenha sido delimitada, demarcada e homologada no país, aprofundando o deficit demarcatório e agravando o quadro de invasões e explorações ilegais desses territórios.

O que se vê no decorrer do governo Bolsonaro, ao longo dos últimos dois anos e meio, é a desestruturação das políticas de proteção dos povos indígenas e de seus territórios, o aparelhamento dos órgãos de proteção aos direitos indígenas e socioambientais e o estímulo à invasão, ao desmatamento, ao garimpo e à propagação da pandemia de COVID-19. As consequências dos atos desse governo, de um legislativo majoritariamente conservador e de um judiciário que ainda não encontra ampla abertura para a consagração dos direitos indígenas, são morte, adoecimento, sofrimento, perseguição e destruição de modos de existência intrinsecamente relacionados com os territórios.

Apenas no âmbito do legislativo, diversas são as ameaças. No dia 3 de agosto a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 2.633/2020, conhecido como PL da Grilagem, legalizando o roubo de terras no Brasil. A proposta votada aumenta a violência contra povos indígenas, quilombolas e agricultores familiares, além de não ter sido previamente apresentada à sociedade civil, postura típica de regimes antidemocráticos. Com a aprovação deste projeto, a Câmara demonstra que está se convertendo na casa dos ruralistas, dos desmatadores, dos grileiros – de todos esses, menos do povo. Agora, o projeto segue para votação no Senado.

Em fevereiro de 2021, com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o governo federal, chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro, apresentou um pacote de pautas prioritárias que deveriam ser aprovadas. Entre elas estava o PL nº 191/2020, que regulamenta a pesquisa e a lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos em terras indígenas, bem como facilita a utilização de recursos hídricos para geração de energia elétrica, a despeito das manifestações indígenas contrárias a essas atividades econômicas em suas terras. Ainda em 2020, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), junto a lideranças indígenas reconhecidas, como o Cacique Raoni Metuktire, solicitou ao então Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que não permitisse o avanço deste projeto de lei, que impacta negativamente o modo de vida tradicional dos povos indígenas. O presidente Bolsonaro ignorou a manifestação da vontade expressa pelos povos indígenas, principais afetados pela medida, e desrespeitou as normativas internacionais que regulam o tema da Consulta Prévia, Livre e Informada.

Há ainda o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 177/2021, que autoriza o presidente da República a denunciar a Convenção 169 da OIT, o que significa retirar o Brasil desse acordo, conferindo ao presidente o poder de abdicar da convenção. Isso de acordo com a justificativa de que a efetivação dos direitos previstos na convenção inviabilizaria o desenvolvimento econômico nacional, por restringir a atuação do Poder Público nos territórios indígenas.

Já o Projeto de Lei nº 490/2007 evidencia-se como um dos principais ataques do Poder Legislativo aos direitos reconhecidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988, versando sobre a alteração da legislação existente no que tange ao regime jurídico constitucional e infraconstitucional de demarcação de Terras Indígenas. Durante seu trâmite na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), aprovou-se um texto substitutivo ao referido PL, cujo objetivo central seria a regulamentação sobre a matéria – através de lei ordinária do art. 231 da Constituição –, a fim de consolidar um suposto entendimento amplamente majoritário do STF, qual seja, a tese do marco temporal de ocupação (teoria do fato indígena), que supostamente serviria como instrumento de paz social e segurança jurídica.

Segundo tal tese, as terras futuramente demarcadas ou em processo de demarcação deveriam necessariamente comprovar a ocupação no dia 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal, ignorando, assim, mais de 500 anos de expulsão dos povos indígenas de seus territórios. Assim, a principal alteração do PL nº 490 acabaria por inviabilizar as demarcações das Terras Indígenas através da incorporação em lei da tese do marco temporal como um dos requisitos taxativos a ser observado para o reconhecimento de áreas tradicionalmente ocupadas (art. 4º, §2º ao §4º).

Em nota técnica[2], a assessoria jurídica da APIB já se posicionou a respeito da inconstitucionalidade do PL nº 490, sob o ponto de vista formal e material, e reforçou a sua inconvencionalidade. Acrescenta-se ainda que a matéria em discussão no Legislativo através do PL nº 490 possui total relação com a pauta atualmente em trâmite no STF, sobre o caso Xokleng (RE 1.017365/SC).

Pautado para 30 de junho de 2021, o processo foi transferido para 25 de agosto e é tido como passível de “repercussão geral”, o que significa que a decisão tomada servirá como diretriz ao governo federal e a todas as instâncias da Justiça no sentido de determinar a respeito de demarcações de TIs. Portanto, vê-se que a tramitação de um PL no Poder Legislativo, que também é discutido pelo Judiciário, no mínimo deveria levar em consideração o status paradigmático do processo, o que evidencia não haver ainda um entendimento “consolidado” por parte do STF sobre essa matéria. Isso posto, antes de mais nada haveria que se aguardar o julgamento de mérito.

Além disso, existem ameaças advindas da própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que em 22 de abril de 2020, editou a Instrução Normativa (IN) nº 09. Tal instrução, em resumo, determina a exclusão da base de dados do Sistema de Gestão Fundiária Nacional de todas as Terras Indígenas que não estejam no último estágio de reconhecimento estatal, tornando invisíveis esses territórios. O ato, na prática, acaba por validar detenções e títulos de propriedades particulares que em teoria são nulos, segundo a Constituição Federal de 1988, desprotegendo a larga maioria das Terras Indígenas e incentivando a ocupação não indígena desses territórios.

O parágrafo primeiro do art. 1º, da IN nº 09, preceitua que a “Declaração de Reconhecimento de Limites” (DRL) se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitem os limites das terras indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas. Assim, na medida em que a FUNAI passa a considerar passível de emissão de DRLs (documento que atesta que a propriedade não incide em Terra Indígena) toda posse (sem escritura) ou propriedade que não incida apenas sobre terra indígena homologada, reserva indígena e terras indígenas dominiais, o órgão passa a liberar para a compra, venda e ocupação todas as terras em estudo – as delimitadas pela FUNAI e as declaradas pelo Ministério da Justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso, como as áreas onde há estudo sobre a presença de indígenas isolados. Dessa maneira, invasores de TIs poderão solicitar a DRL à FUNAI e, munidos desse documento, requerer junto ao INCRA, por meio de cadastro autodeclaratório, a legalização das áreas invadidas. Tais normas oficializam o conflito em Terras Indígenas, além de estimularem o desmatamento e os incêndios.

Em face da IN nº 09 o Ministério Público Federal propôs 26 ações judiciais em diversas localidades arguindo vícios de inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade. Até o presente momento, já foram protocoladas ao menos 19 decisões judiciais favoráveis à impugnação do MPF.

Já em fevereiro de 2021, FUNAI e IBAMA editaram a Instrução Normativa nº 01, que se dispõe a estabelecer procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas. Com efeito, este ato busca institucionalizar o arrendamento rural nos territórios indígenas, o que viola a observância da cláusula constitucional da reserva de usufruto exclusivo dos recursos naturais existentes em terras indígenas aos indígenas (art. 231, §2º, da CF/88). Trata-se de facilitar a exploração do agronegócio dentro das terras indígenas. Fragiliza-se assim a proteção ambiental e abre-se espaço para que não indígenas venham a explorar atividades de interesse econômico no interior desses territórios.

Diante do cenário apresentado, portanto, é possível identificar a existência de uma nefasta política sistemática de ataque aos povos indígenas, cujas consequências apontam para a morte, o adoecimento e o sofrimento dos povos indígenas brasileiros, bem como para a destruição das suas já ameaçadas formas de vida.

 

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[1] CIMI. Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2019. Brasília, 2020.