Água : O veneno que corre nas veias do Brasil

Os agrotóxicos atingem águas superficiais e subterrâneas. São transportados por longas distâncias, contaminando cursos hídricos e chuvas. Estudos científicos e análises estatais já encontraram dezenas de agrotóxicos nas águas do Brasil, mas a legislação brasileira permite níveis muito elevados de contaminação.

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Infográfico: Quem pesquisa a contaminação das águas

Os agrotóxicos são considerados um dos mais relevantes contaminantes ambientais e problemas de saúde pública da atualidade. O uso disseminado favorece sua presença no ar, no solo e na água, levando à exposição de diferentes espécies, de forma difusa e ampliada. No caso da contaminação hídrica, os agrotóxicos podem afetar águas superficiais e subterrâneas a partir da lixiviação, o processo de “lavagem” do solo, pelo qual nutrientes e elementos químicos são transportados para corpos hídricos; ou da percolação, o movimento da passagem da água através do solo, fluindo para reservatórios subterrâneos.

Esse envenenamento hídrico pode ser potencializado pela pulverização aérea, pelas derivas técnicas e acidentais pós aplicação ou pelo desmatamento das margens de cursos de água, particularmente aquele impulsionado pelo avanço dos grandes monocultivos. Essa contaminação ainda sofre influência de características como o tipo de solo ou clima, o uso e ocupação do solo, e as propriedades físico-químicas dos compostos. A contaminação das águas pode mover os agrotóxicos por longas distâncias, por meio da evapotranspiração, a passagem da água em estado de vapor da superfície terrestre para a atmosfera, e da ação dos ventos, que transporta essa água evaporada, alimentando as precipitações em diferentes territórios, fenômeno conhecido como rios voadores.

O Brasil possui a maior reserva de água doce superficial do planeta, estimada em 12% do total mundial, além da maior floresta úmida, a Amazônia, e das maiores áreas continentais alagadas, o Pantanal e o Araguaia. O país é também um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, o que indica uma ameaça em escala global: a contaminação das principais reservas hídricas do mundo e o comprometimento relevante da diversidade biológica. Dados oficiais indicam que a agricultura irrigada é responsável pelo consumo de 66,1% das águas superficiais e subterrâneas captadas no Brasil, o que corresponde a 83 bilhões de litros por dia – somando o consumo destinado à pecuária, a porcentagem sobe para 77,7%.

Mesmo sendo central na discussão sobre contaminação das águas por agrotóxicos, o país tem uma escassez de estudos analíticos sobre o tema, consequência principalmente de dificuldades financeiras e logísticas. Uma revisão sistemática de análises realizadas no Brasil e publicadas entre 2012 e 2019 constatou a presença de 77 contaminantes em águas, incluindo agrotóxicos. Os resultados revelam a presença de 21 agrotóxicos, sendo o flutriafol, o alfa e beta-endossulfan, o metolacloro e a atrazina os mais frequentes. Devido ao custo elevado para analisar os dois agrotóxicos mais comercializados no Brasil – glifosato e 2,4-D – a maioria dos estudos não os inclui entre os parâmetros pesquisados.

Além dos estudos científicos, existe no Brasil o Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Vigiágua), que investiga a presença de agrotóxicos e outros parâmetros em todos os estados. A análise dos dados de 2018 a 2021 demonstrou que, do total de 41.780 amostras analisadas, em menos de 10% as detecções ultrapassaram o limite de quantificação. Os agrotóxicos mais frequentemente quantificados foram atrazina, metolacloro, glifosato e 2,4-D. Porém, um percentual muito superior de agrotóxicos foi identificado em níveis não quantificáveis, o que poderia indicar limitações nas técnicas analíticas, e não ausência de risco.

Misturas de agrotóxicos também são frequentemente identificadas nas pesquisas científicas e análises do Vigiágua, mas os efeitos da exposição a misturas ainda são pouco explorados, e não incorporados de forma adequada na toxicologia regulatória ou na legislação que define os parâmetros para monitoramento de agrotóxicos em água no Brasil. Além disso, há limitações normativas quanto ao monitoramento de agrotóxicos em água. Uma delas refere-se ao baixo número de parâmetros de agrotóxicos previstos para serem monitorados pelos Ministérios da Saúde (MS) e do Meio Ambiente, por meio do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama): 40 pelo MS e 27 pelo Conama. Esse quantitativo é pouco significante diante do elevado número de ingredientes ativos (IA) de agrotóxicos químicos, bioquímicos, semioquímicos, microbiológicos e agentes biológicos de controle autorizados no país: 450.

Para completar, a legislação brasileira permite níveis muito elevados de agrotóxicos em água e desconsidera a soma dos Valores Máximos Permitidos (VMP) dos resíduos de diferentes IA em uma única amostra. Para os agrotóxicos não previstos nas normativas, sequer existem VMP estabelecidos, o que impede intervenções. Em países onde a legislação é mais protetiva para a saúde e o para ambiente, como os que compõem a União Europeia, foi definido um VMP único para qualquer agrotóxico, e o somatório dos resíduos é considerado.

A contaminação das águas, mesmo com níveis de resíduos dentro dos parâmetros previstos na legislação, pode desencadear efeitos tóxicos, especialmente diante da ocorrência de misturas – possivelmente pelo somatório ou potencialização da toxicidade desses agentes, quando combinados. Destaca-se que desfechos associados à exposição a carcinógenos genotóxicos ou desreguladores endócrinos independem da dose, ou seja, qualquer nível de exposição diferente de zero é suficiente para desencadear um dano. Ainda, diversas substâncias e misturas apresentam efeitos mesmo em baixas doses. Ao se desconsiderar esse comportamento, ignoram-se os danos nas exposições a níveis baixos, podendo levar à definição inadequada de limites de exposição.

Baixe o Atlas dos Agrotóxicos aqui.