Em um contexto de golpe parlamentar, crise econômica e do descrédito generalizado das instituições como o que vive o Brasil, o discurso importa – e muito. E é nos detalhes do duplipensar oficial do governo Temer que ele mostra suas contradições e ameaças: “flexibilização” ambiental, “modernização” trabalhista, “reestruturação” de ministérios e órgãos oficiais, “concessões”, “resgate da confiança”, “manutenção do ciclo reformista”.
Neste rosário de terminologias quase inofensivas, supostamente “programáticas”, a população é induzida a acreditar em eufemismos enquanto a grilagem é oficialmente liberada e incentivada, as ações de fiscalização do cumprimento de leis ambientais e do trabalho escravo estão congeladas, os investimentos em saúde e educação retrocedem, a FUNAI enfrenta seu ponto mais crítico em décadas e a bancada ruralista é convidada a aprovar o que bem entende, com o tapete vermelho estendido.
Doutrina do choque, alguns diriam, não sem razão. A estratégia é simples: realizar o maior número de absurdos no espaço mais curto de tempo possível para que a população não tenha tempo de reagir e mesmo a sociedade civil organizada fique fragilizada ante um ataque tão amplo e coordenado. Se é verdade que o Brasil retrocedeu 50 anos em menos de dois do governo Temer, ajudado pelo Congresso mais reacionário e corrupto desde a ditadura, é também verdade que nem tudo passou batido pelo buraco da memória.
O caso da Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados) é exemplar: extinta por um decreto de duas linhas que não deixava claro as regras para exploração, o potencial mineral, a proteção para unidades de conservação e territórios indígenas, indo contra um parecer do próprio ministério do Meio Ambiente e anunciada de antemão para mineradoras canadenses. A pressão da sociedade civil, do movimento ambientalista, de ONG’s, da imprensa nacional e internacional e mesmo de celebridades fez com que uma verdadeira batalha jurídica fosse travada e a Renca, uma área de 4,6 milhões de hectares de floresta quase integralmente preservada entre o Amapá e o Pará, permanecesse protegida depois da desistência oficial do governo.
Há, no entanto, muito a ser feito. A batalha vencida é apenas uma entre tantas em curso. Afinal, Temer especializou-se no paradoxo de Lampedusa: tudo deve mudar para que tudo fique como está. Não satisfeito, Miguel Lulia vai além: tudo pode ficar ainda pior com aparência de normalidade.
Cortes no Ministério do Meio Ambiente: efeito em cascata
Em março, Temer anunciou um corte de mais de R$ 42,1 bilhões no orçamento público federal, fragilizando serviços essenciais e sucateando instituições que promovem ações fundamentais para minimizar o impacto da ação de grileiros, garimpeiros ilegais e que têm os conflitos socioambientais como parte central do seu trabalho. É o caso do Ministério do Meio Ambiente, que tinha um limite autorizado de R$ 911 milhões para os chamados gastos discricionários, incluindo as emendas coletivas, e agora tem apenas R$ 596,5 milhões para gastar. Um corte superior a R$ 315 milhões, cerca de um terço do orçamento do ministério.
Em 2017, o orçamento do MMA, incluindo todas suas unidades orçamentárias (Ibama, Instituto Chico Mendes, Serviço Florestal Brasileiro, Agência Nacional das Águas, Fundo Nacional do Meio Ambiente, Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e Jardim Botânico do Rio de Janeiro), atingiu R$ 2,1 bilhões do que foi efetivamente pago até setembro, um dos menores orçamentos desde 2001.
Já são gastos 41% do orçamento com o pagamento de pessoal, restando 59%, cuja execução está atrelada à decisão do órgão de gastar ou não, as chamadas “despesas discricionárias”, justamente sobre as quais incide o corte de um terço do orçamento. Algo que complica a já tortuosa tarefa de combater o desmatamento, fazer o licenciamento ambiental (Ibama e órgãos regionais), garantir a proteção e gestão de 327 Unidades de Conservação Federais, por meio do ICMBio e desempenhar papéis-chave na implementação das políticas nacionais sobre mudança do clima, recursos hídricos e resíduos sólidos.
Lei da Grilagem: o crime não só compensa como é incentivado
Aprovada por Temer em julho, a Lei 13.465/2017, conhecida como “Lei da Grilagem”, sofre uma ação direta de inconstitucionalidade da Procuradoria Geral da República. Seu conjunto de abusos mostra a total falta de pudor da bancada ruralista e a certeza de conseguirem aprovar uma lei que, como escreveu o agora ex-Procurador Geral da República (PGR), Rodrigo Janot, além de ser fruto de medida provisória destituída dos requisitos constitucionais de relevância e urgência, a lei afronta múltiplos princípios e regras constitucionais, como o direito a moradia; o direito à propriedade; o dever de compatibilizar a destinação de terras públicas e devolutas com a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária; a proibição de retrocesso; a previsão de que o pagamento de indenizações da reforma agrária será em títulos da dívida agrária; a exigência de participação popular no planejamento municipal; entre outras.
Ou seja: para Janot, a lei 13.465 permitirá a privatização em massa de bens públicos e terá o efeito perverso de destruir todas as conquistas constitucionais, administrativas e populares voltadas à democratização do acesso à moradia e à terra e põe em risco a preservação do ambiente para as presentes e as futuras gerações.
Mobilizadas, organizações sociais afirmam que a Lei da Grilagem impactará terras públicas, florestas, águas, e ilhas federais na Amazônia e Zona Costeira Brasileira. Isso porque ela permite a regularização de terras ocupadas ilegalmente entre 2004 e 2011 e amplia a área passível de regulamentação de 1.500 para 2.500 hectares. Além disso, faz a transferência a preços módicos pela tabela do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que cobra pelo hectare de terra de 50% a 10% do valor de mercado.
Sem titubear, Janot afirma que “a lei causará grave e irreversível impacto na estrutura fundiária em todo o território nacional, seja por incentivar a ocupação irregular de terras (“grilagem”) e o aumento de conflitos agrários, seja por suprimir as condições mínimas para a continuidade daquelas políticas constitucionais”. Segundo o Imazon, o prejuízo para a União será de R$ 19 bilhões com a regularização pela tabela do Incra apenas na Amazônia Legal.
Lei Geral do Licenciamento Ambiental: nas mãos dos ruralistas
Em discussão há 13 anos, a chamada “Lei Geral do Licenciamento Ambiental” (Lei 3.729/2004) é fortemente criticada pelo Ministério Público Federal, pelo Ibama e por ambientalistas. A proposta, de acordo com a última versão do relator, deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), tramita em caráter de urgência e deve ser votada em plenário sem passar pela Comissão de Finanças e Tributação e pela Comissão de Constituição e Justiça, algo que a Frente Parlamentar Ambientalista tenta evitar.
A preocupação não é por acaso. O projeto simplifica os procedimentos para a concessão de licenças ambientais dependendo do porte dos projetos e exime empreendimentos agropecuários da exigência de licenciamento. Além disso, dá prazo máximo para que os órgãos ambientais decidam sobre o pedido dos empreendedores.Uma licença prévia, por exemplo, terá que ser concedida ou não em no máximo dez meses. Isso se o empreendimento exigir estudo de impacto ambiental.
Para o MPF, “o texto mantém dispositivos nitidamente inconstitucionais, promovendo um inaceitável e vedado retrocesso socioambiental”, disse em nota. A votação em caráter de urgência no plenário teria o único objetivo de prejudicar a política nacional de meio ambiente e a população em um momento em que a atenção está voltada para os escândalos de corrupção do governo.
De acordo com o documento do MPF, o substitutivo apresenta vários problemas, entre eles: fixação de prazo muito curto para aprovação de licenciamentos, que poderiam ser feitos sem a manifestação (ou mesmo com parecer contrário) de órgãos como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Fundação Nacional do Índio (Funai) ou Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio); excessiva autonomia aos entes da federação, sem o estabelecimento de parâmetros e critérios nacionais unificados; descaracterização das condicionantes, que são restrições com objetivo de barrar o rito de licenciamento em caso de descumprimento; e criação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que dispensa licenciamento prévio para atividades causadoras de degradação ambiental.
Mesmo o IBAMA, que defende a aprovação de uma nova lei, afirma que, da forma como está, “há fortes retrocessos ambientais no texto, que tenderão a gerar judicialização de processos de licenciamento e da própria lei aprovada com esse conteúdo”. Os problemas, muitos, são listados um a um. Enquanto o licenciamento pode passar a ser feito com regras inconstitucionais e muito mais frágeis, os órgãos ambientais são sucateados pela falta de equipe técnica e estrangulados pela redução significativa de orçamento, o que mostra o ataque sistemático dos ruralistas.
Mineração: abertura expõe os perigos do modelo de exploração
Em julho, Temer anunciou o “Programa de Revitalização da Indústria Mineral”. Entre as mudanças está a criação da Agência Nacional de Mineração, que substituirá o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), o aumento na mudança da cobrança dos royalties da mineração – ainda assim abaixo da média mundial – e a expectativa de, com isso, subir de 4% para 6% a participação da mineração no PIB brasileiro.
O Plano Nacional de Mineração, publicado em 2011 e com metas para até 2030, já prevê a produção de 1 bilhão de toneladas de minério de ferro e 200 toneladas de ouro em 2030. Criticado por mais de 100 organizações, movimentos sociais e pesquisadores, o plano facilitará o atropelo a licenças ambientais e contribuirá para a violação do direito de comunidades tradicionais e das populações ao redor das minas.
O caso de Mariana, o maior crime ambiental da história do Brasil, que completa dois anos em novembro, é exemplar para lembrar como políticas como essa podem favorecer negligências que causam impactos imensuráveis no ecossistema e na vida de milhões de pessoas. Pior: Mariana mostra que, até o momento, ninguém foi efetivamente punido e nenhuma multa realmente paga, com a Samarco/Vale/BHP recorrendo inúmeras vezes e contando com a leniência da justiça. É de se imaginar o quanto isso incentive os abusos de empresas Brasil afora.
5 milhões de hectares na mira
Um estudo publicado na revista “Environmental Conservation” por pesquisadores da UFG (Universidade Federal de Goiás), do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) mostra que cinco milhões de hectares em área protegidas do Brasil serão diretamente impactados pela mineração em apenas oito anos se três projetos de lei em discussão no Congresso Nacional forem aprovados.
Os pesquisadores analisaram o impacto de 13.600 pedidos já em andamento que se sobrepõem a áreas sob algum regime de proteção. Destes, são 2.400 propostas de mineração planejadas em áreas onde a atividade é proibida atualmente, além de 11.200 projetos em Áreas de Proteção Ambiental (APA), onde a mineração já é permitida, e em Áreas de Relevante Interesse Ecológico (ARIE). A avaliação levou em conta todos os processos registrados no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) que representassem uma solicitação de atividade mineradora, desde a pesquisa de potencial minerador até o requerimento de implantação da lavra.
Estes projetos podem permitir que a mineração ocupe 100% da área das unidades de conservação de uso sustentável (PL37/2011, do deputado Weliton Prado – PT/MG) e das terras indígenas (PL1610/1996, do senador Romero Jucá – PMDB/RR) e 10% da área das unidades de conservação de proteção integral (PL3682/2012, do deputado Vinicius Gurgel – PR/AP).
O mais devastador é o projeto do senador Romero Jucá. O PL 1.610, que ficou parado por 16 anos mesmo aprovado no Senado, teve um substitutivo de 2012 pelo relator Édio Lopes, deputado do mesmo PMDB-RR de Jucá, historicamente ligado ao garimpo. O PL encontra-se em fase adiantada de tramitação e representaria a vitória das empresas mineradoras sobre os interesses indígenas após uma batalha legal de 20 anos. Segundo o levantamento dos pesquisadores, 114 milhões de hectares de terras indígenas ficariam à disposição dos interesses de mineradoras sem restrição de área.
Reportagem especial da Agência Pública revela que, na Amazônia Legal, um terço das áreas indígenas tem processos minerários registrados no DNPM, que vão do desejo de explorar ouro, diamante e chumbo a minérios como cassiterita, cobre e estanho. Na região, a proporção é de uma terra indígena para cada dez processos minerários. Campeão nacional, o Pará concentra 50% desses processos em TIs já identificadas oficialmente pela Funai. Tudo isso afeta a posição brasileira nos acordos internacionais já assinados, em que o Brasil se comprometeu a preservar 17% do seu território com uma rede efetiva de áreas protegidas e em reduzir o risco de extinção de espécies ameaçadas até 2020.
FUNAI: sucateamento favorece o massacre de índios
Em março, Michel Temer assinou decreto extinguindo 87 cargos comissionados, que atingiram a Coordenação Geral de Licenciamento (CGLIC) e as Coordenações Técnicas Locais (CTLs), áreas estratégicas que são responsáveis por analisar grandes empreendimentos em terras indígenas, cuidar do licenciamento, as contrapartidas e fazer o trabalho de receber e levar demandas ao poder público. Agora, a CGLIC tem dez técnicos para analisar cerca de três mil processos de licenciamento: 300 para cada trabalhador. Com isso, a Coordenação Geral de Licenciamento (CGLIC) vê, na prática, sua função se tornar figurativa.
Em setembro, a FUNAI tinha gasto apenas 22% da dotação atual destinada à Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas e Proteção dos Povos Isolados. Todos esses fatores são considerados decisivos no massacre de índios isolados por garimpeiros ilegais no interior na Terra Indígena Vale do Javari (AM), que teve repercussão internacional.
O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) aponta que a Funai trabalha atualmente com apenas 36% da sua capacidade. São cerca de 2,1 mil funcionários efetivos (contra mais de 3 mil em 2012), quando o número total de cargos autorizados pelo Ministério do Planejamento é de quase 6 mil. Os recursos também sofrem: em 2016 o orçamento da Funai representou 0,018% do Orçamento Geral da União, com cerca de 90% desse total comprometido com a manutenção da estrutura do órgão, com pagamento de salários, infraestrutura, aluguéis. O valor autorizado este ano já é praticamente o mesmo de 2007 em termos reais.
Trabalho escravo: pela primeira vez o MPT processa o governo federal para tentar garantir recursos
Se a escolha política do governo Temer era de sufocar a fiscalização do trabalho cortando recursos para a sua execução, o que obrigou o Ministério Público do Trabalho a entrar com uma ação civil pública contra o governo federal – algo inédito na história do Brasil – as intenções escusas ficaram ainda mais evidentes com a publicação de portaria que muda as regras para o que é considerado trabalho escravo e coloca na mão do governo a publicação da Lista Suja. A medida, feita para agradar a bancada ruralista e impedir o avanço da segunda denúncia contra Temer, causou reação nacional e internacional. Mesmo suspendida pela ministra Rosa Weber, do STF e durante criticada pela PGR, tudo indica que Temer insistirá em pagar a dívida com os ruralistas – também – na pele dos escravos modernos brasileiros.
Esta situação coloca em xeque todos os avanços históricos no combate ao trabalho escravo que o Brasil alcançou nos últimos 20 anos. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do MPT conta hoje com apenas quatro equipes – eram 10 em meados dos anos 2000 –, e o órgão precisa fazer escolhas trágicas no dia a dia: de cada 10 denúncias de trabalho escravo recebidas, a equipe só tem condições de atender uma. O GEFM parou em agosto pela primeira vez nos seus 22 anos de história.
A precarização da legislação trabalhista, que afeta todos os trabalhadores do país, também preocupa e deve piorar o quadro. De cada 10 trabalhadores resgatados, nove são terceirizados.
O ano de 2017 deve aquele com o menor número de resgates feitos nos últimos 20 anos. Até julho, somente 110 resgates foram realizados. Em 2016, no total, foram 680, por si só uma queda em relação a anos recentes. As ações de fiscalização no âmbito rural também estão suspensas em vários pontos do país. Não há dinheiro sequer para pagar a gasolina dos veículos, reconhece o MPT. O Brasil consegue hoje resgatar menos de um terço dos trabalhadores em condição análoga à escravidão que foram identificados – de acordo com estimativa da ONG WalkFree, existiam 161 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão em 2016. O Brasil figura atualmente na 33ª posição entre os países que mais praticam trabalho escravo, em um ranking de 198 países.