Jovens mulheres negras ocupam espaços e transformam realidades brasileiras

Mesmo que a história recente do país mostre avanços em termos de redução da pobreza extrema, ampliação da escolaridade e adoção de ações afirmativas para as minorias, ainda há grandes desigualdades entre homens, mulheres, negros e brancos no Brasil. Mas para as mulheres negras a situação é ainda mais difícil, pois, vivem uma dupla discriminação - gênero e raça/etnia.

A realidade de territórios populares e favelas retrata essas relações desiguais e costuma, historicamente, ser representada como locais de ausência de segurança, precariedade, invisibilidade de suas populações, além de um caráter exótico. Por outro lado, hoje é possível identificar lideranças e grupos que estão desconstruindo esta leitura, destacando a complexidade, diversidade e beleza presentes nesses espaços, valorizando uma cultura de direitos que combate o racismo e o machismo em sua essência. Esses movimentos são feitos por pessoas como Taís, Gilmara e Jéssyca, que com seus 20 poucos anos, já são protagonistas de uma mudança de paradigma que está em curso, na qual a identidade negra e a valorização das mulheres estão incorporadas em suas práticas e multiplicadas por onde elas passam.

 

Comunicação Popular e Crítica
Taís de Amorim, Gilmara Moreira e Jéssyca Liris estão entre os 90 alunos da turma de audiovisual da Espocc – Escola Popular de Comunicação Crítica, que desde 2005 investe na formação de alunos em publicidade afirmativa. A seleção é bem disputada e em 2014 o Observatório de Favelas, que coordena a escola em parceria com a UFRJ, recebeu 300 candidaturas de toda cidade do Rio, sendo 70% de mulheres. Hoje já são 900 formados, sendo 55% de mulheres.

A decisão de entrar na escola para Taís, formada recentemente em jornalismo e nascida no Vidigal, favela da Zona Sul carioca, foi o desejo de pensar a comunicação e a publicidade como uma forma de fortalecer direitos, principalmente daqueles que considera de sua origem: moradores de favela. As motivações de Gilmara são semelhantes. Moradora do Complexo do Alemão, uma das maiores favelas da zona Norte da cidade e integrante da Agência de publicidade Diálogos/Espocc, formou-se há três anos em publicidade em uma universidade localizada em Ipanema, um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro e conta que em sua faculdade não havia “nem preto, nem pobre, nem favelado”.

Mas o trabalho da Espocc não se resume apenas em dar ferramentas aos alunos para que façam uma comunicação das favelas, trata-se de um processo de disputa por um projeto de cidade, capaz de desafiar as representações dominantes baseadas principalmente na pobreza, carência e violência. Outro desafio é se afastar também das caracterizações folclóricas que vêem as favelas associadas sempre ao samba e a malandragem. Segundo Taís, o mais importante da escola é o encontro de várias pessoas que pensam a cidade do Rio, que vivem uma realidade de violações de direitos, mas que querem alternativas para isso. Um exemplo é a campanha “Você Pode,” realizada pela Agência Diálogos, no contexto do Dia Internacional da Mulher e fortalecimento do Disk 180, um canal do governo federal para denúncias de agressões à mulher. “Não queríamos colocar a mulher em uma posição sofrida. Toda campanha sobre violência [contra a mulher] têm elas chorando, tristes,” explicou Gilmara. Assim, a campanha trabalha com o empoderamento das mulheres, usando imagens de diferentes atividades, utilizando frases como: Você pode mudar sua história; você pode ser mais do que pensa.

Uma força que vem do cabelo para superar o racismo
“Meu processo de identificação como mulher preta se dá também através do cabelo quando eu resolvi não cortar mais e parar de usar química para alisamento,”, disse Jéssyca, que além de estudante da Espocc, faz parte do Coletivo Meninas Black Power que tem mais 53.000 fãs no Facebook. O grupo foi criado em 2012 e é composto por nove mulheres negras com idades entre 17 e 31 anos que optaram pelo cabelo crespo natural e promovem atividades educativas buscando por em debate os padrões de beleza da sociedade brasileira ligados às mulheres brancas. O evento já teve três edições reunindo cerca de 300 mulheres com atividades ligadas à moda, dança, música e poesia afro-brasileira. Uma das oficinas é chamada de Toque seu cabelo: “Perguntamos: quais são os adjetivos que já deram para o seu cabelo? Bombril, duro, fedido... Aí pegamos o que elas falam e o que cada uma sente sobre isso e então você vê que uma menina pode achar que o cabelo é macio, mas as pessoas dizem que é duro. E assim vamos quebrando essas palavras duras que recebemos sobre o nosso cabelo. Seu cabelo cresce para o alto, ele não é pesado, não é duro, é lindo.”

O filme Kbela: adaptado do conto autobiográfico Mc K-bela, escrito pela diretora do filme Yasmin Thayná, narra a construção da identidade de mulher negra, usando a temática do cabelo crespo. “Eu fui fazer preparação de elenco e acabei participando do filme. Foi um trabalho libertador, transformador, um divisor de águas. Porque compartilhamos o que é comum e foi fortalecer uma identidade que o tempo todo é cerceada e reprimida”, explicou Taís. Os dados da pesquisa “A cara do cinema nacional: perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012)”, feita pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), mostram que nos últimos dez anos, mulheres negras representaram apenas 4,4% do elenco dos principais filmes de longa-metragem nacionais. As filmagens de Kbela receberam financiamento colaborativo online e a equipe de produção do filme, que será lançado em agosto, tem 48 pessoas, 90% são mulheres e mais de dez são negras.

 

KBELA | Teaser - KBELA filme

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Para Gilmara, deixar os cabelos naturais foi fundamental para fortalecer sua identidade e também se colocar contra o racismo: “Eu cheguei em Ipanema com cabelo crespo e dizendo que morava no Complexo do Alemão . E as pessoas começaram a se perguntar o que eu estava fazendo lá. Aquele território não era meu, eu fui e meti o pé na porta. Eu sentia um olhar diferente dos professores, mas eu sempre era a aluna que estava na porta da coordenação brigando.” Gilmara acredita também que este processo acaba sendo um exemplo de estética e atitude para outras pessoas: “uma prima minha  me viu de cabelo solto e reparou que meu cabelo era igual ao dela. Você é bonita e eu posso ser bonita também. Minha tia diz que agora tem uma mini militante em casa. Quando você vai se colocando como símbolo de resistência,  você  influencia outras pessoas.”

Saídas pela convivência na cidade buscando garantia de direitos
Taís acredita que o uso de diferentes linguagens e estéticas são caminhos para dialogar com mais pessoas e garantir direitos: “Eu vejo discussões políticas, de direitos humanos, muito herméticas. Muitas vezes a galera que tem seus direitos violados não quer discutir política porque a linguagem com que os temas estão sendo tratados está muito distante da que ela usa. Então o que a gente busca com o Kbela, a Espocc e o Cinedadania [projeto de oficinas e debates usando audiovisual] é falar de racismo, de violações e reforçar o conhecimento sobre os direitos através de uma linguagem mais palatável. Abrir rota pelo entretenimento. Lançar mão da cultura de massa para falar de questões mais profundas”.

Para Gilmara é preciso modificar a convivência na cidade para fortalecer os direitos: “O meu corpo é um lugar de resistência. Eu vou colocar ele onde eu achar, onde eu vou fazer diferença. Eu não quero só estar na favela, quero fazer comunicação para a favela, mas para fora também, porque eu quero que as pessoas se incomodem cada vez menos com a minha presença nos lugares".

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Este artigo faz parte do Dossiê Beijing +20 do Instituto Gunda Werner da Fundação Heinrich Böll. 

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