Mudanças climáticas: o empoderamento das mulheres visto como valor agregado

As mulheres das aldeiras de montanha em Rajasthan, Índia, transportam 32kg de madeira em suas cabeças para cozinhas todos os dias. Essa mulher está carregando um gerador para reparo em uma vila próxima.
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As mulheres das aldeiras de montanha em Rajasthan, Índia, transportam 32kg de madeira em suas cabeças para cozinhas todos os dias. Essa mulher está carregando um gerador para reparo em uma vila próxima.

A inclusão da perspectiva de gênero com um ‘valor agregado’ vem ganhando força nas propostas de ‘crescimento de baixa emissão de carbono’, com destaque para o potencial de liderança feminina para ‘acelerar o crescimento verde’ e dar respostas às mudanças climáticas. A partir de evidências crescentes de que as mulheres estão no centro do desafio das mudanças climáticas, assim como são desproporcionalmente afetadas por seus impactos, como secas, enchentes, eventos extremos etc., elas teriam também um papel crítico a cumprir no combate as mudanças do clima.

Nesse processo, em setembro de 2013, mais de 100 líderes dos direitos das mulheres e ativistas de 35 países se reuniram em Nova Yorque para criar uma dinâmica internacional para aumentar a atenção, o financiamento e a ação sobre a questão das mudanças climáticas e lançar uma Agenda de Ação Climática da Mulher apresentada às Nações Unidas durante a primeira Conferência Internacional da Mulher sobre Terra e Clima (IWECS), um ramo da Iniciativa Internacional da Mulher sobre Terra e Clima, (IWECI). 

No âmbito do processo da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima ) vem ganhando destaque a demanda por políticas de clima ‘sensíveis ao gênero’ (gender-sensitive), assim como a capacitação para a promoção de maior participação das mulheres nas negociações [1].  A COP 19, realizada em Varsóvia em 2013, teve pela primeira vez um dia exclusivamente dedicado ao tema de gênero (gender day). Uma das atividades foi o lançamento de uma carteira de projetos demonstrativos sob a iniciativa ‘Visão momentum para a mudança: mulheres para resultados' [2].  Estas incluem atividades de adaptação ou mitigação (como ‘energia limpa para iluminação doméstica ou cozinha’) e tem como critério a demonstração da liderança e ativa participação das mulheres. Estes poderão pleitear futuramente o registro sob os mecanismos de flexibilização do Protocolo de Kyoto: Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) ou Implementação Conjunta (IC). No informe da UNFCCC ‘MDL e as Mulheres (2012), o MDL é apresentando como tendo o ‘potencial de contribuir para o empoderamento das mulheres’ o que é comprovado por meio de várias de suas metodologias [3]. 

A ideia de um valor adicional de mercado atribuído ao diferencial ‘de gênero’ já começa a ser realidade em alguns projetos diretamente ligados com o processo que, especialmente no âmbito da implementação das políticas climáticas, vem expandido as fronteiras da financeirização, como por exemplo naqueles que tratam da preservação de ativos do chamado Capital Natural, como o carbono. 

W+

Para garantir que as mulheres se beneficiem efetivamente do mecanismo de redução de emissões por desmatamento e degradação evitados (REDD+), a iniciativa Women in REDD+ liderada pela IUCN intermedia investidores que queiram pagar um ‘plus’ ao carbono sequestrado ou evitado em projetos que sejam executados exclusivamente por mulheres [4]. Uma das razões é a premissa de que as mulheres, especialmente as chefes de família, seriam mais responsáveis com relação à manutenção dos contratos, que em geral são de longo prazo, e do cuidado com a preservação do ativo (no caso, o carbono) visto que a esta renda estaria vinculado um projeto de longo prazo para o sustento da casa e dos filhos. 

Um passo nesta direção foi o lançamento em abril de 2013 do Women´s Carbon Standard (WCS) como uma ferramenta importante para adicionar novas ‘camadas’ de benefícios aos créditos de carbono [5]. Um mesmo projeto, ou cadeia de abastecimento de uma commodity (supply chain) poderia ‘empilhar’ várias camadas de novos ativos: créditos de carbono, certificação FSC, selo de Fair Trade e benefícios de W+ [6].

Em função do baixo preço do carbono no mercado atualmente, o WCS foi reformulado e relançado em novembro de 2013, durante a COP 19. Renomeado como W+ este indicador se propõe a medir em 6 categorias concretas os benefícios que projetos de mitigação podem ter sobre as mulheres. São procedimentos e arquiteturas para monetarizar os benefícios produzidos sobre as mulheres, adicionando valor aos projetos e tendo em vista atrair ‘investidores’ [7]. Este benefício de gênero foi inicialmente concebido como um adicional (co-benefício) ao valor do carbono, mas avança para ser um ‘ativo’ independente (stand alone) e tratado como uma commodity. 

HAVERÁ TAMBÉM NO FUTURO PRÓXIMO DEMANDA E UM MERCADO PARA ‘GÊNERO’ ASSIM COMO JÁ EXISTE PARA O CARBONO, E CRESCENTEMENTE PARA SERVIÇOS AMBIENTAIS? 

Segundo seus proponentes, sim. As empresas signatárias do Women's Empowerment Principles: Equality Means Business junto com o Global Compact assumiram metas de incorporação de gênero nos seus programas de responsabilidade social corporativa. Empresas como AVON, Coca Cola, Nestlé, GAP e outras estão com planos e metas neste sentido. 

Na iniciativa 5by20 a Coca Cola se comprometeu a ‘empoderar’ cinco milhões de mulheres empreendedoras até 2020 [8]. Esta empresa não necessariamente vai atuar no nível local, em pequenos projetos com mulheres, mas vão buscar ‘no mercado’ apoiar carteiras de projetos que tenham este objetivo, para adicionar como valor agregado à sua contabilidade de responsabilidade social corporativa. Estes projetos vão ser desenvolvidos por ONGs que tenham uma metodologia de verificação do ‘impacto de gênero’ e que sejam certificadas. 

Desta forma, estaria caminhando-se para que o W+ e outros standards de gênero, tornem ‘visíveis’ e ‘monetarizáveis’ os benefícios de gênero. Da mesma forma que o discurso do Capital Natural quer tornar ‘visíveis’ e ‘monetarizáveis’ o valor dos serviços ambientais. Por exemplo: uma série de projetos, especialmente na África, promovem os pequenos fogões artesanais (cookstoves) como forma de melhorar a qualidade de vida, liberando meninas e mulheres das horas gastas e da penosidade do trabalho de recolher lenha, tempo que poderia ser investido em outras coisas. Coqueluche dos investidores de carbono, os clean cookstoves além de gerarem créditos para compensação (offset), ainda adicionam o fator W+ gênero ao diferencial do projeto e já são apontados como uma metodologia de contabilizar os ‘co-benefícios’ de projetos de REDD, já que a lenha coletada por mulheres para a cozinha, nesta visão, é parte das atividades de ‘degradação’ das florestas. 

Segundo os proponentes da iniciativa W+, há um enorme mercado potencial com o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, assim como o fechamento de um ‘balanço positivo’ para as Metas de Desenvolvimento do Milênio, e para uma redefinição da agenda da cooperação internacional para o desenvolvimento, na medida em que se está subsumindo à agenda do financiamento do clima e ao inevitável gender mainstreaming. Além disso, é uma tendência clara de aproximar os argumentos feministas sobre a economia do cuidado (care economy) com a economia verde (green economy).

Questões para o debate 

Desde o centro do sistema há atualmente um chamado para que as mulheres se somem a um esforço concentrado para salvar o atual modelo econômico e a racionalidade e visão de mundo que o sustenta. Assistimos hoje a valorização da incorporação da dimensão de gênero e do reconhecimento dos atributos e capacidades ‘tipicamente femininas’ associados à imagem de renovação (e legitimação) de instituições centrais do status quo como FMI (Fundo Monetário Internacional), FED (Sistema de bancos centrais dos Estados Unidos ) etc. à expansão do crescimento (ainda que ‘verde’) e até como valor agregado à novas fronteiras de mercantilização, como nos projetos de carbono que garantem um ‘plus’ se associados às mulheres. 

O processo de criação de novos ativos econômicos que observamos hoje ocorre em paralelo com um processo de privatização, o qual, para garantir direitos privados de propriedade sobre estes bens comuns, precisa criar os ‘cercamentos’ (enclosures). Esta dinâmica que reitera um movimento estrutural e necessário à acumulação capitalista tem um impacto diferenciado sobre as mulheres. 

Primeiro, porque os projetos chegam alterando violentamente as lógicas e dinâmicas dos territórios, separando as mulheres do acesso aos commons que garantem seu modo de vida, o que afeta diretamente também as crianças e os idosos, que na maioria das vezes estão sob seus cuidados e dependência diretos. 

No caso de áreas rurais, quando há título da terra, a propriedade está em geral no nome do homem, que tem o poder de decisão e de aceitar as compensações dos projetos (hidrelétricas, mineradoras, etc.).

A resistência a estes projetos nos territórios, por outro lado, vem sendo liderada por grupos de mulheres em vários lugares. Nesses casos, a financeirização da natureza também tem efeitos específicos sobre as mulheres. Como elas estão nos territórios à frente de muitos processos de resistência, são afetadas pelo processo de fragmentação e de cooptação destas mesmas lutas e resistências com a chegada dos mecanismos de compensação. 

 

Este artigo faz parte do Dossiê Beijing +20 do Instituto Gunda Werner da Fundação Heinrich Böll. 

Acesse também a versão brasileira do Dossiê aqui.

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[1] Segundo acordado na COP 18, Doha, parágrafo 10 da decisão 23/CP.18.

[2] Em inglês: Vision momentum for change: women for results.

[3] p. 3: http://unfccc.int/resource/docs/publications/cdm_and_women.pdf.

[4] http://www.iucn.org/about/work/programmes/forest/fp_our_work/fp_our_wor…;

[5] http://www.ecosystemmarketplace.com/pages/dynamic/article.page.php?page…;

[6] www.womenscarbon.org

[7] www.wplus.org; http://www.wocan.org/news/women%E2%80%99s-carbon-standard-%E2%80%93-re-…

[8] http://assets.coca-colacompany.com/ca/ca/2d6355b94b0880a651411f733345/5…;