Os resultados da VI Cúpula dos BRICS, expressos na Declaração de Fortaleza, evidenciam que o bloco passou a dar passos concretos em iniciativas de grande importância na disputa por uma nova ordem global que encontra-se em um longo processo de reconfiguração desde o fim da Guerra Fria.
A criação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Arranjo Contingente de Reservas dão concretude à demanda por democratização da arquitetura financeira internacional e pela reforma das instituições de Bretton Woods. Mas a Declaração de Fortaleza não para por aí e afirma a disposição do bloco em atuar em uma ampla gama de temas estratégicos em disputa na arena global: sempre reiterando a centralidade das Nações Unidas, os BRICS se posicionam claramente em relação aos conflitos na Síria, no Irã e a questão nuclear, Afeganistão, Iraque, Ucrânia, Palestina, e reafirmam "a necessidade de uma reforma abrangente das Nações Unidas, incluindo seu Conselho de Segurança, com vistas a torná-lo mais representativo, eficaz e eficiente, de modo que possa responder adequadamente a desafios globais. China e Rússia reiteram a importância que atribuem ao status e papel de Brasil, Índia e África do Sul em assuntos internacionais e apoiam sua aspiração de desempenhar um papel maior nas Nações Unidas" (parágrafo 25). Somada à ênfase no reforço ao multilateralismo, a VI Cúpula dos BRICS deu clara sinalização de interesse no fortalecimento da articulação com a UNASUL, dando continuidade ao movimento feito na V Cúpula, realizada em Durban, quando também houve reunião com países africanos.
Não há dúvida que os BRICS incomodam as potências tradicionais. A população dos cinco países chega a quase metade da população e força de trabalho mundial; o território somado entre os membros do bloco ocupa um quarto da área do planeta; seus membros têm um papel central em suas respectivas regiões; o PIB do bloco tem peso percentual expressivo e crescente no PIB mundial; e o bloco começa a fazer movimentos concretos de disputa nas arenas econômica, financeira e estratégica. Um sinal evidente de que os BRICS estão incomodando foi o anúncio de novas sanções contra a Rússia feito pelo governo dos EUA no mesmo dia da reunião do bloco com a UNASUL.
A VI Cúpula escolheu como tema o "Crescimento Inclusivo: Soluções Sustentáveis", e é precisamente no tema escolhido como principal que se encontram os maiores bloqueios e desafios a serem enfrentados pelo bloco. Se por um lado há que se louvar o destaque e frequência conferidos ao desenvolvimento sustentável na Declaração de Fortaleza, por outro não é possível encontrar nenhuma definição sobre o significado do termo ao longo do documento, o que dificulta a compreensão do sentido dado pelo bloco aos parágrafos dedicados à agenda das Nações Unidas sobre diversidade biológica, mudanças climáticas, energia, agenda pós-2015, Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, educação, direitos reprodutivos e agricultura familiar. O Novo Banco de Desenvolvimento também foi criado para financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável, mas nas resoluções da VI Cúpula sobre o banco não existe qualquer definição ou qualificação do significado do termo.
Apesar do destaque dado à narrativa do desenvolvimento sustentável, os bloqueios relacionados à inclusão social com sustentabilidade são o problema central e estratégico para o futuro do bloco pois expõem a natureza do modelo de desenvolvimento dos países membros, baseado em fortes desigualdades sociais e na exploração intensiva de recursos naturais. Todos os membros dos BRICS possuem taxas elevadíssimas e crescentes de concentração da renda, exceto o Brasil cuja valorização do salário mínimo e programas de inclusão social realizados na última década resultaram em redução das desigualdades, embora o país continue sendo um dos mais desiguais na América Latina, que por sua vez é a região mais desigual do mundo.
Os países do bloco e seus entornos regionais encontram-se em acelerado processo de reprimarização de suas exportações em resposta a demanda da China por recursos naturais, que importa dos países do bloco e de seus vizinhos minérios, combustíveis fósseis, soja e outros produtos agrícolas produzidos em amplas extensões de monocultivos intensivos no uso de pesticidas e agrotóxicos e de baixo emprego de força de trabalho, ao mesmo tempo em que a importação de manufaturas chinesas produzidas em condições de trabalho aviltantes empurra nossas economias para a desindustrialização e pressiona pelo rebaixamento de direitos dos trabalhadores. Produtos primários e manufaturas baseadas em recursos naturais representam mais de 85% das exportações da América Latina para a China (*). A contrapartida da intensificação de um modelo baseado na extração de recursos naturais são os frequentes conflitos de terra e violações de direitos territoriais por parte de empresas do agronegócio e da extração mineral contra camponeses, indígenas, pescadores e quilombolas. No caso do Brasil, a especialização primário-exportadora se viabiliza contando com a elevada concentração da propriedade da terra e com a fragilização e flexibilização da legislação de defesa de direitos duramente conquistados. No caso da África do Sul, a economia centrada na extração mineral é acompanhada de elevadas taxas de emissões de gases do efeito estufa e graves violações de direitos humanos de trabalhadores, cujo símbolo mais gritante é o conhecido massacre de Marikana.
Em paralelo a VI Cúpula dos BRICS, foi realizada a IIIa Cúpula Sindical dos BRICS cuja ênfase foi a defesa dos direitos dos trabalhadores do bloco contra a pressão por rebaixamento e precarização, e a tentativa de harmonização destes direitos pelos mais altos padrões. Foram realizados também os "Diálogos sobre Desenvolvimento - Os BRICS na Perspectiva dos Povos", onde organizações e movimentos sociais dos países do bloco e de países que serão atingidos pelos projetos do Novo Banco de Desenvolvimento debateram e articularam suas lutas por direitos frente ao avanço dos investimentos e empresas extrativas sobre seus territórios. Os temores de que o Novo Banco reproduza o padrão de injustiças socioambientais dos investimentos de bancos nacionais de desenvolvimento de alguns de seus membros, como é o caso do BNDES, se somaram a decisão de que os povos dos países membros passarão a articular de forma mais intensa suas lutas por direitos. Frente ao avanço da mineração, da usurpação de terras, da precarização das condições de trabalho, da exploração de combustíveis fósseis e expulsão de camponeses e populações tradicionais de suas terras, é preciso articular lutas locais, nacionais e entre os países do bloco.
Diante da indefinição por parte dos governos sobre o que se entende por desenvolvimento sustentável, os povos dos BRICS deverão demandar que o bloco priorize um novo caminho de desenvolvimento com ênfase na distribuição da renda e riqueza, valorização do trabalho e dos salários, fortalecimento dos direitos das maiorias, que defina limites à voracidade das empresas dos países do bloco que avançam sobre os territórios e usurpam direitos, que estabeleça formas de regulação social e ambiental para os financiamentos do Novo Banco. Os projetos de infraestrutura a serem financiados pelo Novo Banco, ao invés de repetirem os desastres socioambientais cometidos pelos bancos nacionais de desenvolvimento, devem dar prioridade a infraestrutura de moradia, saneamento, saúde, educação, apoio a sistemas de produção de alimentos camponeses e familiares, entre tantas outras necessidades urgentes para a conquista de direitos para as maiorias nos cinco países.
Durante a VI Cúpula dos BRICS os trabalhadores, organizações e movimentos sociais demonstraram de forma contundente que não apenas o Fórum Empresarial e o Fórum Acadêmico devem ser considerados. Os povos dos países do bloco, suas lutas e demandas, precisam ser ouvidos. Embora haja resistências de outros membros do bloco, espera-se que o Brasil acolha a demanda pela criação do Conselho Nacional sobre Política Externa, pois este será o espaço institucional adequado de consulta e diálogo sobre os BRICS e demais temas da agenda de política externa no país.
(*) http://www.cepal.org/publicaciones/xml/9/46259/China_America_Latina_rel…
Publicado originalmente na Carta Capital, em 21/07/2014