Futuro político na França ainda é um salto no desconhecido

Fundação Heinrich Böll Brasil entrevista Marc Berthold, diretor do escritório de Paris 

Após nove dias das eleições na França, o presidente francês Emmanuel Macron finalmente aceitou a renúncia do primeiro-ministro Gabriel Attal, mas pediu para que ele permaneça no cargo até que um novo governo seja formado. O governo interino deve durar até o final dos Jogos Olímpicos de Paris, que começam em 26 de julho e terminam em 11 de agosto.

Manifestação em 10 de dezembro na Esplanade de l'Hôtel de Ville, em Paris.
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Manifestação em 10 de dezembro na Esplanade de l'Hôtel de Ville, em Paris.

Este cenário confuso se dá após a surpreendente vitória de uma frente liderada pela esquerda contra a extrema direita francesa, que estava sendo considerada favorita, reforçando a tendência de ascensão de seus líderes mundo a fora. Apesar do 7 de julho ter sido um dia de alívio para o mundo democrático e defensor de direitos, o resultado das eleições não estabilizou a política francesa. O bloco de esquerda recebeu o maior número de assentos no Parlamento, mas não obteve maioria para indicar o primeiro-ministro sozinho. O bloco centrista de Macron ficou em segundo lugar, seguido pela extrema direita.

A viabilidade de um governo juntando as duas forças vitoriosas é improvável e um futuro promissor da extrema direita na França não pode ser descartado. Conversamos sobre o cenário político na França com Marc Berthold, diretor do escritório de Paris da Fundação Heinrich Böll e especialista em ciências políticas. Marc também dirigiu o programa “Changing Security” no Zentrum Liberale Moderne em Berlim.

A esquerda ganhou na França: o que isso significa para o jogo político contra a extrema direita?

Böll Brasil: A extrema direita ficou em terceiro lugar nas eleições na França, o que não era esperado. Com esse resultado qual será o papel que a extrema direita vai desempenhar no cenário político? O que podemos esperar deles até as próximas eleições presidenciais em 2027?

Marc Berthold: Eles serão o partido de oposição mais forte, pois quase dobraram os assentos no Parlamento. Então, eles tentarão continuar empurrando sua agenda e jogando contra o governo. O que eles fizeram na campanha eleitoral foi realmente apenas o começo de como se comportariam na oposição. Qualquer questão sociopolítica, desde o aumento dos preços, custo de vida, mudança climática, igualdade de gênero, tudo foi transformado em questões ligadas à migração e racismo.

Sobre mudança climática, os culpados são todas as importações estrangeiras. O risco à segurança ou à segurança das mulheres é associado à migração de homens muçulmanos. O custo de vida é alto porque há muitos gastos com os imigrantes. Nada disso é verdade. Mas eles seguem replicando essas mensagens. 

Pode ser que ocorra o mesmo ou similar no Brasil. Na Alemanha também está acontecendo. A mídia não os questiona quando são confrontados com essas desinformações. Eles (extrema-direita) raramente são desafiados na TV. Há uma grande mídia, multimilionária, bilionária, que possui canais de TV com noticiários, uma rádio muito popular e tudo isso acaba transformado em uma máquina de propaganda da direita, a Europe 1. Há um jornal dominical que é de direita. 

Böll Brasil: E quanto às redes sociais? Porque ouvimos falar que o TikTok era realmente muito forte entre os jovens.

Marc Berthold: A participação dos eleitores aumentou 20% para os jovens e 48% deles votaram na Nova Frente Popular. Então certamente o TikTok desempenhou um papel e foi um veículo de informações para as pessoas. O problema é a desinformação. [A extrema direita] têm cerca de 130 assentos porque também há uma parte apoiadora dos Republicanos que se juntaram a eles. Eles podem, de fato, construir uma máquina para as eleições presidenciais. Eles podem não ser tão extremos quanto os Trumpistas ou apoiadores do Orbán (Primeiro Ministro da Hungria), podem ser mais moderados no nível nacional, mas podem se estabelecer no território e construir uma máquina de campanha.

Isso é bastante perigoso, porque o que Marine Le Pen fez com [Jordan] Bardella, se assemelha ao modus operandi da AfD na Alemanha. Eles estão muito mais moderados hoje, muitas vezes com discursos nas entrelinhas. Eles não atacam abertamente os muçulmanos. Então não é tão agressivo como costumava ser. Por isso ouvimos muito, antes do primeiro turno: “Eles nunca governaram. Eles não foram testados. Já com os outros partidos, todo mundo já se decepcionou”. As pessoas então pensam, por que não tentar? Então gera-se esse sentimento, e isso é algo que vai continuar.

Böll Brasil: Você poderia nos contar brevemente a importância de Jordan Bardella? Por que ele é tão popular?

Marc Berthold: Bardella é jovem, fala com uma nova geração. Ele não é um “machão”. Ele também fala com mulheres, mas principalmente por razões racistas. O discurso é: “eu vou proteger você do homem muçulmano e de todos os árabes”. Ele faz o trabalho sujo para Marine Le Pen, que quer ser presidente. E ela está compartilhando o poder. Ele será o chefe do novo grupo de direita no Parlamento Europeu, formado por Orbán (Hungria), o Patriotas para a Europa. Provavelmente será o terceiro maior grupo no Parlamento Europeu. O mundo está observando a França, e há muitos jovens conservadores.

O recado da França para o mundo, imigração, clima, relações franco-brasileiras e política internacional 

Böll Brasil: Qual recado que a França mandou para o mundo? 

Marc Berthold: O que as eleições nos disseram sobre um futuro para a Europa e o mundo é que a política europeia não vai mudar tanto hoje, porque os Verdes e os Socialistas, por enquanto, ainda mantêm uma influência significativa. A posição sobre a Ucrânia e as questões sobre a integração europeia teriam sido mais problemáticas com a ala direita no poder.  O Conselho Europeu, que é a reunião de todos os presidentes e chefes de estado, e o Conselho de Ministros não vão falar com vozes destoantes. 

Em termos de relações franco-brasileiras, acho que nada realmente vai mudar porque um novo governo que inclui a esquerda estará mais próximo de Lula. Eles conhecem a questão do desmatamento, o investimento de bilhões que foi acordado. Então, isso é algo que os Verdes e os Socialistas também vão apoiar, ao estarem no governo. Nesse novo governo francês, eu presumo, que, já que os Socialistas e os Verdes são partidos internacionalistas, eles não vão isolar a França do resto do mundo. 

A política de migração já foi abordada com uma lei dura no final de dezembro e isso já foi decidido, já passou. Eu não acho que haverá muitas mudanças em políticas ambientais. Pode haver um impulso para mais energias renováveis, mas os Verdes, que são contra a energia nuclear, não conseguirão uma política anti-nuclear na França por enquanto. Essas são questões difíceis. Eles (outros partidos que compõem a Assembléia Nacional) devem concordar com uma taxa de importação de carbono, como vem sendo discutido aqui. Em suma, este pode não ser um governo particularmente verde, mas definitivamente haverá mais abertura. 

Eleições à flor da pele 

Böll Brasil: O que foi a primeira coisa que passou pela sua cabeça quando você viu os resultados? Por que esses resultados positivos foram tão inesperados?

Marc Berthold: Ninguém sequer considerou que isso pudesse acontecer, que essa fosse uma possibilidade. Todo mundo discutia entre o primeiro e o segundo turno sobre quão grande seria a maioria para o Rassemblement National [Reagrupamento Nacional]. Muitas pessoas duvidaram, mesmo que fosse possível, que a esquerda pudesse vencer em termos dos distritos eleitorais e da lei da maioria.

Então houve um grande alívio e protestos contra a extrema direita, além da La République, que é a grande praça em Paris para todas as manifestações. Isso acabou se tornando uma grande festa no final. Milhares de pessoas dançando, foi realmente emocionante. Pessoas que são vítimas de racismo estavam realmente assustadas e de repente houve essa alegria; as pessoas estavam aliviadas. Foi realmente impressionante que a esquerda realmente chegou em primeiro lugar, o que me lembrou Washington em 2008, quando Obama foi eleito pela primeira vez. 

Eu trabalhava no escritório da Fundação Heinrich Böll de Washington até 2007, todos os anos sob o governo Bush e voltei apenas para as eleições porque queria estar lá com meus amigos. Eles moravam em um bairro com tradição de movimentos de defesa dos direitos civis. Quando a eleição de Obama foi anunciada, todos nós estávamos nas ruas, milhares de pessoas, muitos afro-americanos com lágrimas de felicidade. Foi um pouco assim, ontem. Você podia ver o suspiro de alívio, especialmente de todos que tinham particularmente medo. 

Mas é preciso dizer que não há maioria clara. Não sabemos para onde isso vai agora. E em números absolutos, o Rassemblement National tem um milhão a mais de votos do que o segundo partido, que é a nova Frente Popular. O país tem se movido para a direita ao longo das últimas décadas.

O sistema eleitoral francês 

Böll Brasil: O sistema eleitoral francês é muito diferente do Brasil. Você pode nos dizer, em poucas palavras, como funciona? 

Marc Berthold: As eleições parlamentares são um pouco como o sistema eleitoral americano. É um sistema de maioria. Então cada candidato para a Assembleia Nacional precisa vencer cada distrito eleitoral. As pesquisas dão a impressão de que funciona no nível nacional, mas na verdade a decisão é feita em 577 distritos eleitorais que correspondem a 577 assentos na Assembleia Nacional. Por isso há sempre dois turnos, porque na maioria das vezes no início do primeiro turno, você tem três, quatro, cinco, seis candidatos. Normalmente os dois primeiros passam para o segundo turno. Isso foi particularmente importante desta vez. Quando um terceiro candidato tiver mais de 15 ou 20%, também pode ir para o segundo turno.

A maioria dos candidatos [que podiam tirar votos dos mais votados da aliança de esquerda] realmente se retirou este ano e foi um sacrifício pessoal. Os candidatos tiveram que decidir por si mesmos, tipo, ok, eu não vou ser candidato mais. Eu não vou estar na Assembleia Nacional, porque precisamos parar a direita.

Böll Brasil: Por que tantas pessoas votaram este ano? Como a sociedade francesa se mobilizou para alcançar essa façanha já que votar não é obrigatório?

Marc Berthold: Eu acho que as pessoas entenderam que desta vez era realmente sério. Havia tanta raiva com a decisão do presidente de dissolver a Assembleia Nacional e todos entenderam que isso só ia ajudar a extrema direita dois anos antes das eleições presidenciais. Então houve uma mobilização intensa também, porque havia realmente esse senso de urgência.

Houve um ressurgimento realmente da ação cívica. No início do ano houve muitas manifestações na Alemanha contra a extrema direita. Na França, as pessoas ficaram espantadas e disseram: "precisamos de algo assim aqui também". Então, depois das eleições europeias com a vitória da extrema direita na França, e especialmente porque foi na mesma noite a dissolução da Assembleia Nacional, as pessoas foram para as ruas. Houve manifestações por toda a França. Então você teve declarações de artistas e da seleção francesa de futebol.

Especialmente no esporte, na cultura da França, você deve ser neutro; não se envolver politicamente e isso realmente mudou antes desta eleição. Trata-se de uma sociedade muito diversa e ficou claro que imigrantes seriam afetados - com uma possível vitória da ultradireita. Fundações, organizações de mulheres e muitos outros se articularam com grandes campanhas contra a extrema direita, o que incluiu o partido do presidente, mas sem ele.  

Böll Brasil: Formar um novo governo e escolher um novo primeiro-ministro deve ser uma tarefa muito difícil agora para Macron. E também a nova Assembleia parece estar ainda mais dividida do que antes. Macron foi de alguma forma precipitado ao convocar novas eleições? Quais são os próximos passos?

Marc Berthold: Na verdade, está mais uniformemente dividida, o que não o ajuda porque antes pelo menos seu partido tinha duas maiorias relativas e agora são os segundos e a ala esquerda é muito maior. Há um ano, Macron tomou uma série de decisões, porque é uma personalidade muito convencida. Ele não confia muito em consultas a outras pessoas. É muito impulsivo e quer mostrar ideias, energia. Ele é um líder que já mudou seu governo duas vezes em seis meses. Na véspera das eleições europeias, ficou claro que ele teria que fazer algo e ele fez a coisa mais louca de dissolver a Assembleia Nacional em um momento em que apenas a direita estava em posição de mais ou menos conduzir uma campanha decente. Então sim, ele foi precipitado e é tão convencido de si mesmo que pensou, antes de mais nada, que poderia virar a eleição mesmo sendo tão incrivelmente impopular. 

Eles [a extrema direita] serão capazes de usar a oposição de forma muito eficaz até as eleições presidenciais. E até setembro, a França estará de férias. Temos os Jogos Olímpicos começando em duas semanas.