Argentina: Milei, libertário de direita, vence as primárias

Análise

A vitória do candidato Javier Milei nas eleições primárias da Argentina surpreende e estabelece a direita radical como nova força política no país. Em meio a uma crise cada vez mais conturbada, a atual aliança governista peronista em torno da ex-presidente Kirchner e seu candidato Sergio Massa sofre um desastre com apenas 27%. 

Casa Rosada, sede do Governo argentino.

O dia das eleições primárias na Argentina começou turbulento: no 13 de agosto, quase um terço das urnas eletrônicas de Buenos Aires não funcionou. Até a candidata conservadora à presidência, Patricia Bullrich, teve dificuldades e demorou cerca de 15 minutos para votar. Formaram-se longas filas em frente aos locais de votação, e o clima era ruim entre aqueles que queriam cumprir logo o seu dever de voto.

Ao fim da tarde, uma notícia inesperada: a maioria dos votos foi para um outsider político, o economista libertário de direita Javier Milei, com a sua coalizão "La Libertad Avanza". O candidato conseguiu pouco mais de 30 % dos votos, ou seja, em média 10 pontos percentuais a mais do que o previsto pelas pesquisas.  



Os ganhos significativos de Milei vieram especialmente das províncias e dos subúrbios da Grande Buenos Aires, locais tradicionalmente dominados pelos eleitores peronistas. Mas é lá que o cansaço e a frustração com a situação de crise múltipla são particularmente elevados. Um terreno fértil para o discurso de Milei.

Uma crise sem fim

Hoje, 43% dos argentinos vivem na pobreza. O salário mínimo de 112.000,00 pesos (785,00 BRL) mal dá para sustentar uma família com crianças, e a inflação atingiu 110% ao ano. Quase não é possível mais pagar aluguel em moeda local, e as contas de energia elétrica, gás, água, telefone e internet ficam cada vez mais caras. Desde maio de 2023, o custo de um plano de celular para quatro pessoas, por exemplo, aumentou de 18.000,00 para 26.000,00 pesos. 



O governo progressista do presidente Fernandez e da sua vice Cristina Fernandez, no cargo desde 2019, tenta amortecer as piores consequências da crise com tarifas sociais e limites de preços. Durante a pandemia, conseguiu reforçar o sistema de saúde com intervenções maciças. Mas o governo não teve sucesso em conter a inflação.

Neste dia a dia desgastante para muitos Argentinos, Javier Milei se posiciona com sua retórica e aparência cuidadosamente disruptiva. Primeiro, se apresentou como negacionista da pandemia e crítico das medidas de proteção do Estado, que recusava em nome da liberdade individual absoluta. Depois, passou a atribuir as dificuldades econômicas e financeiras de muitas pessoas a um estado supostamente excessivo, a cargas tributárias extremas e ao enriquecimento pessoal de uma suposta “casta política".

De radical do livre mercado a suposto outsider da extrema-direita

Javier Milei fez carreira como consultor de empresas e entrou na política em 2019, como libertário, radical do mercado, mas neutro em termos sociopolíticos. À medida em que ele foi se aproximando de assessores ultraconservadores, incluindo elogiosos da ditadura militar, as propostas dele se radicalizaram cada vez mais:  esmagar o banco central, abolir a moeda nacional, privatizar todas as áreas, liberalizar totalmente as leis sobre as armas, reprimir a criminalidade e os protestos. Na visão dele, a segurança pública seria a única tarefa soberana do Estado, que deveria agir de maneira repressiva contra o crime e os protestos – uma proposta que visa convencer o grupo-alvo de militares e policiais ativos e da reserva. Com ataques ao Papa Francisco, Milei também tenta construir pontes com os evangélicos. Ele zombou do conceito de direitos sociais e econômicos, chamou o termo justiça social de "absurdo" e descreveu a mudança climática como “uma mentira do socialismo".

Gritos estridentes, mas sem pessoal capaz de governar

Graças a uma campanha massiva nas mídias sociais, Milei atingiu não apenas os grupos-alvo originalmente mais jovens nas áreas urbanas, mas também outras faixas etárias nas províncias e subúrbios de Buenos Aires. Nas últimas semanas teve uma presença surpreendente na região metropolitana da capital. De onde veio o financiamento para isso, ainda não se sabe.

Entretanto, se Milei quiser manter a sua liderança e tiver um interesse sério em assumir a responsabilidade governamental, terá que aproximar-se de setores moderados do eleitorado. Um dos seus maiores desafios será montar uma equipe qualificada. Ao contrário das candidaturas de Bolsonaro e Trump, Milei até agora não se cercou de profissionais capazes de governar.

Fracasso dos conservadores tradicionais 

Nesse aspecto, ele também se difere da candidata conservadora Patricia Bullrich (partido PRO), considerada até então a favorita nas primárias. Bullrich, política de longa data e ex-ministra do governo Macri, defende uma terapia de choque para a economia com a liberação imediata da taxa de câmbio, cortes orçamentários e flexibilização das leis trabalhistas, combinados com uma dura repressão aos protestos sociais. A proximidade programática com Milei não ajudou a candidata, que obteve pouco menos de 17 % dos votos.

Resta saber se o campo conservador do PRO seguirá a estratégia de Macri e Bullrich de aproximação com o candidato extremista Milei, ou se preferirá o distanciamento. Uma aliança de grupos radicais e conservadores em torno da candidatura de Milei teria o potencial de estabelecer uma força política permanente que representaria desafios existenciais para a consolidada democracia na Argentina.

Más perspectivas para o peronismo

Para o campo governamental, o panorama após este domingo parece sombrio. Foi nos redutos do peronismo que Milei obteve resultados inesperadamente bons. O governo não tem nenhuma margem de manobra financeira para introduzir melhorias perceptíveis na vida quotidiana dos Argentinos antes das eleições de 22 de outubro, o máximo que pode fazer é adiar a deterioração.

Apesar disso, ainda há esperança no campo governista. Numa entrevista há alguns meses, a vice-presidente Cristina Kirchner já antecipou a possibilidade de uma divisão em três campos políticos – os progressistas, os conversadores, e a extrema direita. Seria necessária uma mensagem clara e positiva para mobilizar eleitores e passar ao segundo turno, disse Kirchner na época. 

Foi na noite da eleição primária que o candidato do campo governista Sergio Massa, formulou pela primeira vez o que estava em jogo para os argentinos: uma abertura ilimitada às importações versus uma defesa da indústria nacional. Universidades privadas com mensalidade versus universidades gratuitas e abertas. Um retorno aos planos de saúde privados versus a continuação da gratuidade dos medicamentos. Um mercado de trabalho com menos ou mais direitos, e incertezas sobre aumentos de aposentadorias. 

Com essas propostas, o peronismo somente chegará ao segundo turno das eleições se o campo governista conseguir mostrar-se unido e, ao mesmo tempo, aberto para uma aliança mais ampla na sociedade. Até agora, as perspectivas não são particularmente boas.

Sem perspectivas para uma nova visão socioecológica 

O que provavelmente ficará para trás em todos os cenários de futuros governos é uma transformação socioecológica. A situação em torno do pagamento dos empréstimos ao FMI e da redução do déficit orçamentário é urgente e não deixa margem para renunciar aos ganhos provenientes da produção e exportação agrícola, mineral e de gás e petróleo. Pelo contrário, é de se esperar que qualquer governo - seja com patrocínio e propriedade privatizados ou com intervenção estatal mais forte - expanda e promova esses setores sem levar em conta as consequências sociais e ecológicas. Das três candidaturas para o futuro governo, duas já anunciaram que reprimirão possíveis protestos nesse e em outros contextos, como o mais recente em Jujuy, onde a população saiu nas ruas para manifestar contra os projetos de mineração de lítio. Portanto, tudo o que resta é a esperança de que as instituições constitucionais e democráticas da Argentina se mostrem resistentes aos efeitos de uma intrusão de forças radicais na política, que já estão demonstrando não ter interesse na responsabilidade do governo.

 

Tradução e edição: Anne-Kirstin Berger