Os ventos que sopram a América

Artigo originalmente publicado nos sites da sede e escritório de Washignton da Fundação Heinrich Böll.  

A pauta de costumes entrou com força nas campanhas eleitorais presidenciais no Brasil e de meio de mandato nos Estados Unidos (as chamadas midterms americanas). Nos EUA, a reversão do direito ao aborto, ocorrida na Suprema Corte, trouxe o tema para o debate político, com protestos de ambos os lados nas ruas e na mídia[1], enquanto que no Brasil, os candidatos (em especial o atual presidente) tem levantado, por inúmeras vezes, as questões relativas à fé, como liberdade religiosa, família e Deus.  O tema gerou tanta discussão que até o satanismo tomou conta das falas de ambos os candidatos.

(Washington, DC - EUA 19/03/2019) O Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América, recepciona o Presidente da República Jair Bolsonaro.

É emblemático que a pauta de costumes esteja em alta nesses países durante o período eleitoral. Potencializados a partir de uma radicalização provocada pelos fatores “Trump” e “Bolsonaro”, trata-se de um tema que constitui a base de uma plataforma política da extrema-direita, que se alastrou por partidos e grupos de direita e de conservadores americanos e brasileiros.

Nos Estados Unidos, após a derrota de Trump para Joe Biden em 2020, e a tentativa fracassada de invasão ao Capitólio para questionar o resultado das eleições, poderia se supor que os republicanos (e o país) iriam reduzir seu apoio ao “trumpismo” em médio prazo, arrefecendo o debate público sobre a pauta de costumes. Entretanto, o que se percebeu foi o contrário. O contínuo discurso de crítica ao sistema eleitoral e aos resultados das eleições teve efeito. Houve um crescimento - por parte da população - de desconfiança sobre o sistema político e eleitoral. Em recente pesquisa, 61% dos republicanos ainda acreditam que Biden não ganhou as eleições de forma justa, um número bem significativo.[2] Este sentimento fez com que a maioria dos republicanos, 67%, ainda queiram que Trump se candidate em 2024[3].

Este percentual aponta que, apesar de ter perdido as eleições, o Trumpismo segue em alta e, de certa forma, mais enraizado dentro do partido republicano. E as “midterms” poderão evidenciar ainda mais o tamanho da ala trumpista dentro do partido, além de redefinir as relações de poder dentro dos estados e do Congresso americano. Além disso, não se pode descartar uma possibilidade de termos uma “onda vermelha” no Congresso, com aumento significativo de republicanos[4]. Tal feito poderia possibilitar, por exemplo, a instauração de comissões de investigação sobre democratas, como indicou artigo de Anthony Zurcher para a BBC[5].

Uma vitória dos republicanos, em especial daqueles mais alinhados ao Trump, dará mais força para um possível retorno dele à corrida eleitoral, além de contribuir para que o (ultra)conservadorismo possa pautar a agenda de costumes, em especial a do aborto.

Vale lembrar que, antes de sua saída, Trump provocou mudanças na Suprema Corte tornando-a mais conservadora. Como resultado, ela tem protagonizado mudanças de entendimento que se opõem há décadas de visão mais progressista, como é o caso do aborto. Tais decisões geraram fragmentações na sociedade, com forte oposição de grupos e de organizações de defesa de direitos humanos. 

E que impactos podem ter as midterms americanas para o Brasil? Primeiramente, é preciso observar o processo eleitoral e os resultados das eleições presidenciais no Brasil. Em uma das disputas mais polarizadas e acirradas da história democrática do país, o atual presidente Bolsonaro busca a reeleição contra o ex-presidente Lula. Bolsonaro possui uma conhecida e histórica relação com Trump, tendo inclusive como aliado em comum Steve Bannon, que serviu como referência e ponte em diálogos entre os líderes dos dois países[6].

A proximidade entre os líderes pode ser observada nas falas e postagens nas redes sociais. Em setembro, Trump publicou em sua própria rede um apoio ao Bolsonaro, o qual chamou de “Trump Tropical”[7]. Além disso, essa relação é vista também em discursos e nas táticas, seja por levantar acusações contra opositores - comumente chamados de comunistas - sobre possíveis ameaças aos valores e princípios de “Deus e família" (uma versão brasileira dos “valores tradicionais americanos”) ou por usar uma estratégia de forte atuação populista digital, com uso de "fake news", e de postagens amparadas nas emoções e no reforço aos costumes.

Também é possível perceber a busca pela desconfiança e reprovação das instituições democráticas e do sistema político eleitoral, vide os ataques constantes à suprema corte brasileira e aos discursos de corrupção.

Entretanto, apesar da proximidade, existem importantes diferenças entre ambos que devem ser ressaltadas, e a relação de Trump com Bolsonaro apenas reforça e potencializa a forma de atuação do presidente brasileiro no país. Uma das diferenças entre ele é sobre sua relação com os militares. Bolsonaro teve uma carreira militar antes de entrar na política, e em seu governo houve um grande aumento da participação de militares em cargos civis. De acordo com o levantamento de 2020 pelo tribunal de contas da União, há 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo, mais que o dobro do governo anterior[8]. Sua candidatura à presidência atual e no primeiro pleito que concorreu, Bolsonaro conta com um general como vice. A relação com os militares tende a criar tensões entre os três poderes, executivo, legislativo e judiciário.  O último exemplo de tensionamento foi a decisão das forças armadas de promover uma checagem paralela dos votos, medida inédita na história democrática e que toma corpo após questionamentos sobre a segurança das urnas feito pelo presidente[9]. Existe um receio de que Bolsonaro poderia se utilizar dessa medida para reforçar o questionamento e até a desacreditar o resultado das eleições. Findo o primeiro turno, e passadas duas semanas, essa apuração ainda não teve o resultado divulgado, o que fez com que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral decidisse, em 18 de outubro, que o Ministério da Defesa, entregue, em 48 horas, cópia dos documentos existentes sobre a checagem das Forças Armadas no processo eleitoral[10]. Na decisão, o presidente do TSE ainda afirmou que a atuação das Forças Armadas na checagem, em possível alinhamento ao presidente Bolsonaro, poderia caracterizar desvio de finalidade e abuso de poder.

Quanto ao resultado das urnas, uma reeleição de Bolsonaro pode fortalecer a extrema direita na América Latina e no mundo, levando o país a frear a onda progressista na América do Sul (que recentemente se fortaleceu com as eleições de Boric no Chile e de Gustavo Petro na Colômbia). Reforça, ainda a aliança entre o país e os grupos de direita em países como os Estados Unidos, Hungria e Itália, a partir da pauta de costumes. Em médio prazo, há a possibilidade ainda de uma explícita aproximação com Trump para apoiar publicamente sua candidatura (recordando que nas eleições de 2020, Bolsonaro explicitou seu apoio a Trump até após os resultados serem anunciados, ecoando o discurso de fraude[11].

Do outro lado, uma eleição de Lula - ex-sindicalista e presidente por dois mandatos do Brasil - pode contribuir para reforçar o papel da democracia no país e reduzir as aspirações da extrema-direita, que obtiveram um resultado expressivo nas eleições do Congresso. Importante mencionar que, durante o período eleitoral, inúmeros políticos e personalidades brasileiras, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (e relator do processo de corrupção chamado mensalão, ocorrido durante o período do governo do Lula) Joaquim Barbosa, anunciaram voto em Lula como forma de apoio à democracia, mesmo que estejam em espectros políticos distintos.

Ainda é incerto os caminhos de um novo governo Lula, pois há uma expectativa de que seja árdua a composição e a gestão de interesses dos grupos que comporão esse governo - formado a partir de uma frente democrática ampla. Entretanto, a partir de sua experiência passada, e observando sua capacidade e atuação política, pode-se supor que um governo Lula irá contribuir para o debate sobre a garantia e proteção de direitos que vem sofrendo ameaças a partir da pauta de costumes, além de buscar a retomada de políticas e programas de justiça social, que foi uma marca de seu governo anterior.

Vale apontar que o Brasil será um importante ator no cenário regional e internacional nos próximos anos e as eleições que ocorrerão no final de outubro serão fundamentais para indicar o caminho que será tomado. Uma mudança de governo no Brasil, com a eleição de Lula, pode contribuir para retomar os laços do país com a América do Sul, em especial com a Argentina (que nos últimos anos foi afetada pela distante relação entre Bolsonaro e Fernandez, presidente argentino, e do ceticismo quanto ao Mercosul). Também é provável que o país busque um papel de maior protagonismo dentro dos espaços de negociações internacionais, tal como era em seus governos anteriores. O tema “verde” poderia ser uma de suas prioridades, visto que é tratado em seu plano de governo[12], e possibilitaria fazer um contraponto ao atual governo na área ambiental, além de reestabelecer articulações e ações, como o Fundo Amazônia.

Para o governo Biden, uma mudança na presidência do Brasil pode significar a retomada de interlocutor no campo “verde”, algo que tem sido ausente nos últimos anos. E apesar de haver certas divergências políticas, seja por posições divergentes sobre a Nicarágua e Venezuela ou no apoio de Lula ao BRICS (que possui, em sua composição China e Rússia), trata-se de uma liderança política que tem o apreço pelo multilateralismo e pelo diálogo. Também pode se tornar um importante aliado na América do Sul frente a grupos e movimentos da extrema-direita na região.

Os rumos da América serão reajustados após as eleições. Se haverá um vento à direita ou à esquerda, saberemos apenas após a contagem das urnas e o resultado final. Acompanhar o processo eleitoral, assim como o pós-eleições, será fundamental para entender e pensar o ano de 2023, tanto em nível regional quanto global.