Bolsonarismo e a extrema direita no Brasil: uma reflexão sobre origens e destinos

Motociata Acelera pra Jesus

A proposta desse pequeno artigo é de estabelecer uma reflexão acerca dos desenvolvimentos da extrema direita em um cenário pós-eleições de 2022. Nesse contexto, a derrota de Jair Bolsonaro, a vitória eleitoral do campo democrático[1] e a tarefa de superação de posições pós- fascistas (TRAVERSO, 2021.) que dominaram o cenário político brasileiro desde  2018 serão aqui discutidas e analisadas. Meu interesse é entender e avaliar as perspectivas de superação do Bolsonarismo (SOLANO, 2018.) e das forças de extrema direita no mapa político brasileiro no futuro próximo. A mim interessa, pois, saber como lidar com essa coalizão de forças reacionárias e ultraconservadoras, ainda presentes e atuantes na sociedade e no Parlamento brasileiro, nos próximos anos.

Importante notar que há uma questão inerente de ofício que deve ser aqui explicitada. O desafio de discutir perspectivas da extrema direita no país pós-2022 não é tarefa simples. Reflito, pois, sobre esses temas a partir do lugar de historiador. Nesse sentido, vale estabelecer que a proposta de pensar o futuro é uma espécie de défaut para o historiador. Tendo o passado como uma referência constitutiva de seu ofício (KOSELLECK, 2006.) operacionalizar uma reflexão sobre o futuro produz um tipo interessante de “anomalia profissional” que está sendo enfrentada aqui por mim.

Nós, historiadores, eventualmente nos arvoramos de prever muito bem o passado. Na realidade, entretanto, mesmo essa reflexão acaba produzindo, “ilusões constitutivas”. Assim, “as previsões sobre o passado” podem não ser exatamente bem-sucedidas (HARTOG, 2015.). Nesse contexto, se nem o passado “nós historiadores” conseguimos prever, a suposta previsão sobre o futuro parece ser uma tarefa inglória.

Dessa forma, meu interesse aqui é o de lançar algumas questões que podem ajudar a pensar e entender um pouco como chegamos até aqui e para onde podemos nos descolar a partir de 2023.  Ou seja, neste artigo busco perceber como o Brasil entrou em uma trajetória de polarização radical e de extremismo político.

Me importa saber como avançamos em direção a eleição que elegeu um candidato historicamente vinculado a extrema direita, com histórico de discursos elogiosos a Hitler e ao nazismo. Importante entender como o discurso violento e extremista de Bolsonaro não serviu de impeditivo para sua eleição e para apoios políticos que ele recebeu em 2018 e 2022. Ademais, e aqui está a referência a “ousadia de ofício” tentarei avaliar para onde nós podemos caminhar nos próximos anos e como seria possível evitar um novo fortalecimento de posições de extrema direita e pós-fascistas no quadro eleitoral brasileiro.

Chamando o Fenômeno pelo Nome: O que nós queremos dizer quando falamos em bolsonarismo?

Pretendo iniciar aqui um debate que considero importante e que, a meu ver, tem sido perifericamente discutido desde a ascensão da extrema direita no país. Neste contexto, queria formular qual seria o significado do termo “bolsonarismo”. Em outras palavras, interessa saber o que nós queremos dizer quando falamos em bolsonarismo?

Acredito que para analisar o que vivemos no país e também para estabelecermos um prognóstico dos próximos anos de desenvolvimento da política brasileira essa pergunta seja fundamental. Estabeleço essa questão juntamente com outros autores que analisam movimentos do que se convencionou chamar de “nova direita radical” ou de “nova extrema direita” em outros países que experimentam similar fortalecimento de partidos e grupos de extrema direita.

Aqui estou me referindo a autores como Cas Mudde (2007), Benjamin Teitelbaum (2020) e Enzo Traverso (2021), que colocam a pergunta sobre bolsonarismo justamente em termos comparativos com novas direitas radicais em outros países. Em certo sentido, as especificidades da nova direita e do bolsonarismo têm relação menos com perspectivas coerentes de agenda, programa e ideologia e se relacionam mais com o que aqui chamaremos de “política dos sentimentos”.

O que produz o material para a nova direita contemporânea e para práticas de extremismo político é mais o medo do que a esperança, o pânico mora (SOLANO, 2018) mais do que a agenda política, o ódio mais do que um projeto de edificação de ordem, o ressentimento mais do que a solidariedade e a luta por justiça.

Vejam, nada disso é novo. Autores conhecidos e respeitados como Benjamin (1987) e Adorno (2006) já estabeleciam análises sobre os fascismos e o nazismo baseadas justamente na construção de estética, propaganda e percepções de inimigos produzidas a cada etapa da ascensão do movimento. Para eles, o fascismo é mais uma “forma de sentir-se no mundo” do que uma “forma de pensar o mundo”.

O que é importante notar aqui, é que primeiramente as forças democráticas buscavam mais coerência e ideias na extrema direita do que propriamente desejo e vontade nesses grupos. Por outro lado, as tecnologias de construção de “percepções” e “bolhas” (GOODMAN, 2020) parecem ser mais eficientes e adequadas a perspectivas no “aceleracionismo” (HERF, 1984) típico dessa nova direita reacionária e ao mesmo tempo revolucionária.  Nesse contexto, uma comunidade política de extrema direita surge diante de nós de maneira surpreendente e pouco previsível justamente para quem esteve esses anos em superfícies analógicas e da política tradicional.

No Brasil, desde 2017 passamos a conviver com uma “comunidade moral boslsonarista” (ALONSO, 2019), na qual idiomas, valores e morais desafiavam nossas lógicas humanistas, liberais e democráticas. Esse desafio estabelecido como ameaça para setores da população constituía-se em proteção para os “bolsonaristas”.

Crivados de medos, ressentimentos, colonizados no desconforto civilizatório e no ‘pânico moral”[2], bolsonaristas viam essa nova “comunidade política” estabelecida gradualmente no subterrâneo digital da política tradicional. Neste sentido, se o bolsonarismo não é ideologicamente nazista, ele se constitui em uma gramática típica de valores pós-fascistas e pós-nazistas.

Nessa comunidade, a percepção de mundo e as dimensões estruturantes da realidade são produzidas a partir de uma “linguagem” de difícil compreensão para os que estão de fora. Se é difícil compreendê-los e acessar suas percepções, mais difícil ainda torna-se combater suas ideias e produzir uma “conversão” para a superfície (KLEMPERER, 2009). Como resultado, temos o crescimento considerável dessa comunidade política no país.

Não nos referimos apenas ao bolsonarismo, mas há uma troca de sinais na percepção popular. Se a Direita passa a ser uma referência absolutamente positiva, extrema direita se estabelece, para as comunidades bolsonaristas como algo ainda melhor, desprovido de mal.

Temos uma epidemia de nazismo?

Temos pouquíssimas pesquisas sobre o avanço da extrema direita no Brasil. As que vou trazer aqui, com exceção de uma, são todas de fora do Brasil: a SafeNet e a ADL (Anti-Defamation League). A Anti-Defamation League, de 2019 a 2022, localiza o Brasil como o país com maior crescimento de grupos de extrema direita. E aqui quero fazer um parêntese[3].

Trata-se, entretanto, de uma  extrema direita que utiliza uma gramática de extrema direita, não usando necessariamente uma perspectiva simbólica de extrema direita.

Neste sentido, essa nova direita brasileira usa referências que remontam a negacionismos históricos, do Holocausto, da escravidão e dos direitos humanos em uma perspectiva simbólica muito potente e perene, com referências pontuais e não explícitas do nazismo histórico. Importante entender que me refiro aqui aos dados da ADL, uma instituição judaíca dos Estados Unidos: o Brasil é o país onde a extrema direita mais cresceu no mundo de 2019 até hoje. Se estivesse falando apenas de uma pesquisa pontual, ela poderia conter um erro de análise, então vamos para outra, a da SafeNet.

Essa entidade internacional fez uma análise dos dados do país a partir de navegações em sites de extrema direita. Em sua pesquisa eles são um pouco mais otimistas: o Brasil é o país com o maior crescimento de grupos de extrema direita fora da Europa do Leste. O país constitui-se no sétimo país, onde todos os seis anteriores estão na Europa Oriental.

Se quisermos avançar um pouco mais, a Polícia Federal brasileira aponta que, no último ano, o número de grupos acompanhados por ela cresceu de 13 para 110 em um ano.

Então, volto à pergunta anterior: o que é bolsonarismo? Acho que um dos elementos fundamentais, e Cas Mudde nos traz isso, é tentar entender o que significa a extrema direita, sabendo que ela é um fenômeno complexo e com multi-informações. E o que alguns autores falam é que Bolsonaro tem uma referência diferente de outras lideranças de extrema direita que chegaram ao poder.

Se analisamos, por exemplo, a trajetória de Donald Trump, notamos que ele foi pré-candidato do Partido Democrata. No caso húngaro, Viktor Orbán começou a carreira no Partido Socialista da Hungria. Na Índia, temos também um processo de deslocamento de um debate étnico em direção à extrema direita. O debate continua sendo étnico, mas sai de um debate contra-hegemônico para um debate étnico hegemonista e exclusivista. Com Bolsonaro, o processo é outro. Ele foi um candidato que se utilizou de uma gramática de violência, uma gramática de discurso do ódio, e ingressou na vida política brasileira enquanto alguém de extrema direita. Mais do que isso. Bolsonaro utiliza, no seu trajeto político, referências que são claramente da extrema direita, e vou dizer mais, referências do nazismo. Aqui eu utilizo o termo cunhado por Enzo Traverso, que o utiliza em um debate academicista sobre se é possível discutir ou não o nazismo depois de 1945.

Ele resolve esse debate acadêmico chamando o que acontece depois de 1945, principalmente depois dos anos 1970, de pós-nazismo. É um nazismo profundamente vinculado a essa gramática, como dissemos acima, porém, sem os seus símbolos apresentados de forma explícita. Vivemos pois, talvez mais que qualquer lugar do mundo, sim, uma epidemia de pós-nazismo, construída e estabelecida por um movimento claramente e, desde sempre, vinculado a extrema direita: o bolsonarismo, surgido de um político pouco relevante e periférico da política carioca e fluminense.

O que fazer?

É fundamental, entendermos com quem estamos falando. E aqui faço uma pequena provocação: se Bolsonaro era um candidato de extrema direita, da galhofa, ele se transforma em um candidato de extrema direita do fascismo em um clube judaico no Rio de Janeiro[4]. Se nós escutarmos aquela palestra do início até o final, ao sair dela vamos perceber com clareza se tratar de um candidato de extrema direita pós-nazista.

O primeiro ponto é que talvez nós estejamos perdendo a perspectiva de como combater o pós-nazismo no Brasil e acima de tudo, saber que é um projeto de referência do passado. É um projeto que pode incluir o lugar de mais segurança para grupos específicos. Se trataria, pois, de um lugar no qual eu sei quem eu sou, eu sei quem você é, e nós todos podemos estar juntos. É claro que, na ausência de alguns grupos, esse passado me é mais seguro. E não são exatamente os grupos do nazismo histórico, e por isso estou falando de pós-nazismo.

Não estou me referindo, por exemplo, aos negros e à ausência dos negros no espaço público. Estou me referindo aos negros que resistem. Não estou me referindo à ausência da mulher no espaço público. Eu estou me referindo à ausência da mulher que tem posições feministas. Eu não estou me referindo sequer à ausência das comunidades LGBTQIA+. Eu estou me referindo àquelas que exigem direitos. Ou seja, o pós-nazismo brasileiro imagina um passado no qual a ausência dos grupos que resistem garante uma perspectiva de harmonia.

A vitória contra o extremismo de direita tem relação com o desafio de combater seu projeto de passado. Oferecendo um projeto de futuro de inclusão, segurança e solidariedade sem ameaçar os valores e as lógicas dos que se sentiram atraídos pela segurança oferecida pelo bolsonarismo. Talvez, em outros termos e lógicas, necessitemos refundar a ideia de Brasil como país do futuro.

Bibliografia:

ADORNO, T. “Dialética do esclarecimento”. Tradução de G. A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

ALONSO, Ângela. A comunidade moral bolsonarista. In. ALONSO, Ângela; et al. (Orgs). Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

GHERMAN, Michel. O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo: São Paulo: Fósforo. 2022.

GOODMAN, MICAH. O impasse de 1967: a Esquerda e a Direita em Israel e o legado da Guerra dos Seis Dias. São Paulo: É Editorar, 2020.

Herf Jeffrey, Reactionary Modernism: Technology, Culture and Politics in Weimar and the Third ReichCambridge: Cambridge University Press, 1984.

KLEMPERER, Victor. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Trad. Miriam Oelsner. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2009

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

MUDE, Cas. Populist Radical Right Parties in Europe. New York: Cambridge University Press, 2007.

SOLANO, Esther et al. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. In: SOLANO, Esther (org.). Boitempo, 2018.

TEITELBAUM, Benjamin. Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Tradução Cynthia Costa. Campinas: UNICAMP, 2020.

TRAVERSO, Enzo. As novas faces do Fascismo. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2021.

VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e Política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012, v.1. p.232.

Fontes:

  1. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/casos-de-apologia-ao-nazismo-aumentam-900-em-dez-anos-de-acordo-a-pf/;
  2. https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/01/16/grupos-neonazistas-crescem-270percent-no-brasil-em-3-anos-estudiosos-temem-que-presenca-online-transborde-para-ataques-violentos.ghtml;
  3. https://new.safernet.org.br/content/denuncias-de-neonazismo-safernet-aumentam-60-em-um-ano.

 

 

Este artigo foi apresentado no Encontro  Democracia, religiões e extrema direita no Brasil contemporâneo:  uma parceria entre o ISER e a Fundação Heinrich Böll, realizado no Rio de Janeiro, em 27 de abril de 2023, sob a coordenação de Christina Vital da Cunha e Marilene De Paula.

[1] Me refiro aqui a apertada vitória de Luís Inácio Lula da Silva e a frente ampla que o apoiava no segundo turno das eleições de 2022.

[2] Como vimos no material produzido por Jair Bolsonaro sobre o Material didático de combate à homofobia nas escolas produzido pelo Ministério da Educação (Vital da Cunha e Lopes, 2012).

[4] Me refiro a palestra Jair Bolsonaro como pré-candidato em abril de 2017 no clube Hebraica do Rio de Janeiro. Ver: GHERMAN, Michel. O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo: São Paulo: Fósforo. 2022.

 

Este artigo faz parte do Webdossiê Religião, democracia e extrema direita. Acesse aqui o Webdossiê.