Religião e política não são propriamente um tema novo no cenário político brasileiro, mas essa imbricação tem se acentuado com uma nuance fortemente conservadora desde o processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016, que argumentou que estávamos diante de “uma violência no Brasil contra a verdade, contra a democracia e contra o Estado democrático de direito” (Dilma Rousseff, 18 de abril, apud Müller e Pozobon, 2017: 14). Tal argumento foi interpretado como um golpe “midiático-político-jurídico”, financiado pela elite econômica brasileira (Proner, 2016), o que leva a crer em tramas conspiratórias que cabe na ideia de “projeto de poder”. Infelizmente, a realidade é mais complexa que a ficção, por isso essa expressão – “projeto de poder”[1] – mais atrapalha do que nos ajuda a pensar quando se trata de analisar a atuação de uma direita conservadora e evangélica. Os últimos anos trouxeram várias demonstrações empíricas de que se está diante de ações que buscam produzir a supremacia de um determinado grupo social (Gramsci, 2000), a partir da articulação do “domínio” com uma “direção intelectual e moral”. O problema está no uso generalizado da expressão, ao falar em um projeto de poder muitas vezes se oculta quais as reações que existem a ele, criando assim um imaginário conspiratório de que não há qualquer possibilidade de transformação. Expor a racionalidade do plano é apenas uma parte de uma análise processual, há que se acompanhar a execução e consequências, tão bem representadas nas frases “faltou combinar com os russos”[2] e “a gente combinamos de não morrer (...). O combinado era o enfrentamento”, de Conceição Evaristo (2016).
Como salientam Jacqueline Muniz e Fátima Cecchetto (2021) a lógica autoritária e excludente que temos experimentado na política brasileira é anterior ao “golpe político-policial-jurídico” e se caracteriza por vários modos de produção e disseminação de medos, que funcionam para uma aceitação coletiva e passiva da “subordinação dos direitos sociais e civis às razões restritivas, discriminatórias e excludentes de (in)segurança”.
É na chave do “regime do medo” que se deve compreender como a religião assumiu o controle da agenda das eleições presidenciais, em 2018, por meio de um protagonismo “terrivelmente” cristão. Mesmo reconhecendo-se que não se está diante de processos uniformes (Almeida, 2017), a reunião de evangélicos de muitos matizes aos católicos, que ocultam suas fragmentações em uma aparente unidade, teve como resultado a produção de uma política nos moldes da “fé cega, faca amolada” (Muniz e Cecchetto 2019), que em nome de “Deus”, da “família” e da “pátria” se apresenta como a “nova onda conservadora”. Assim, foi paralisada a construção em andamento de uma política democrática, que valorizava a manifestação plural das diferenças no espaço público, revelando nuances de políticas “cristofascistas”[3], que lidam de forma binária e excludente com os povos tradicionais – associados às práticas maléficas (demonizadoras[4]), num ideário inspirado na supremacia branca estadunidense.
A mistura de imperativos teológicos e doutrinários com um projeto político de nação, sob o lema de campanha “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, representou que os discursos de ódio e as ações sistemáticas de destruição tivessem consequências diretas no agravamento de discriminações em relação às moralidades não cristãs, aos saberes e práticas dos afrodescendentes e dos indígenas, bem como na produção de uma forma contemporânea de neocolonização política, discursiva e territorial. Ao mesmo tempo que inventaram “povos eleitos” e ressuscitaram a teoria do branqueamento no país.
A afirmação do vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), um homem heteroidentificado como “pardo”, de que o Brasil herdou a “indolência” dos índios e a “malandragem” dos africanos, é um exemplo de como essa forma de fazer política recusa a alteridade, em nome de Jesus, e mistura os discursos nacionalista e supremacista, com a defesa de uma ordem imposta pela força e pelo medo. Se pensarmos bem, não há nada de muito novo nesse front. O tal “projeto de poder” é uma “velha roupa colorida”[5], um passado de verde e amarelo, que já não nos serve mais. Melhor dizendo, não serve para aqueles que sabem que as relações de cidadania não podem funcionar segundo a máxima “já lhe dei liberdade, não lhe dou ousadia”. Afinal é apenas a partir da ousadia política que se pode superar os séculos de opressão e discriminação no país.
A relação entre religião e política no “campo” afro-brasileiro
A consagração da categoria “povos e comunidades tradicionais de matriz africana” ocorreu a primeira vez com o lançamento da primeira edição do “Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana”, em 2013, “definidos como grupos que se organizam a partir dos valores civilizatórios e da cosmovisão trazidos para o país por africanos para cá transladados durante o sistema escravista, o que possibilitou um contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços à comunidade” (SEPPIR, 2013: 12). O documento foi resultado de uma luta coletiva que expandiu o reconhecimento estatal a partir das conquistas iniciadas com a Constituição Federal e o Decreto n. 6.040/2007 (BRASIL, 2007), instrumentos jurídicos que possibilitaram a garantia de direitos a grupos culturalmente diferenciados no espaço público, sendo o último voltado essencialmente aos quilombolas e povos indígenas. Negar a dimensão religiosa tinha o objetivo de destacar a dimensão da política e da cultura.
Mariana Morais (2021) salientou que a construção dessa categoria tinha a intenção de substituir o uso de expressões que destacam o caráter “religioso” (povo de santo/povo de axé) das práticas consideradas pelos afrorreligiosos como “tradicionais” de origem africana e caracterizar as violações não mais como intolerância religiosa, mas sim “racismo religioso”. É necessário refletir sobre o paradoxo que se coloca diante da relação entre a religião e a política neste contexto. A religião é questionada pelos afrorreligiosos como uma estratégia ocidental que não dá conta da complexidade dos modos de vida tradicionais, daí a necessidade de produzir novas nomenclaturas. Porém, a religião se torna um qualificador válido quando se trata de caracterizar as violações que têm sofrido, delimitando o tipo de racismo[6] que se verifica quando as agressões são dirigidas às tradições de “matrizes africanas”[7]. O esforço êmico de caracterizar a existência de uma pluralidade de grupos[8] e de descrever as agressões sofridas são uma reação à naturalização do racismo, que caracteriza as ações dos órgãos de segurança e justiça, que atomizam as situações, na lógica do cada caso é um caso, resultando na maior coleção de casos isolados que se pode imaginar...
É nesse contexto que a emergência da categoria racismo religioso precisa ser compreendida, como um contraponto político à intolerância religiosa (Miranda, 2012, 2018), que não é considerado um termo adequado pela afromilitância porque seria associada a uma concepção liberal, de fundamento cristão, que camuflaria ainda mais o já “invisibilizado” racismo à brasileira (Cardoso de Oliveira, L. 2004). É assim que se tem constituído a luta política por meio da estratégia de caracterização dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana como “vítimas”[9] de violações em todos os direitos – sociais, políticos, econômicos e culturais – para apontar que o primeiro eixo de demandas é a garantia de direitos.
A produção acadêmica contemporânea tem se dedicado a lidar com a relação entre religião e política, a partir de uma reivindicação de que as marcas da matriz africana sejam reconhecidas no espaço público/na esfera pública de modo a contrastar com as estratégias desenvolvidas pelos grupos cristãos, cuja ambição é distinta, e que passou também a reivindicar-se como um movimento negro evangélico, de contribuição cultural para a formação da sociedade brasileira. Vagner Silva (2017) analisa que a emergência desse movimento não representou a superação da demonização das religiões afro-brasileiras. A ideia de uma “herança negra”, vinculada à ancestralidade de etnias vindas de África e às práticas tradicionais presentes nas religiões afro-brasileiras, segue sendo representada por grupos racistas como uma desqualificação, ou como uma apropriação, no caso do “bolinho de Jesus” que é usado para apagar o acarajé como uma comida votiva de orixá.
Entre uma política de terreiros e uma política para terreiros
A construção da categoria “política de terreiros” (Miranda, 2021) surgiu em contraposição às interpretações de pesquisadores brasileiros de que os “terreiros não se organizam” (mais um julgamento moral, que propriamente uma conclusão a partir de pesquisas empíricas[10]), que é repetida por alguns religiosos sem experiência de militância em movimentos sociais e/ou partidários, cuja representação é de que a política é algo fora da vida religiosa, e não parte dela como defendem os afrorreligiosos.
A política de terreiros é um esforço de apresentar como foi/tem sido construída a luta do movimento afrorreligioso pela garantia dos seus direitos, seja no que tange à prática religiosa, seja em relação aos direitos políticos. As estratégias adotadas pelos afrorreligiosos estão orientadas pela valorização dos saberes tradicionais[11], construídos de forma comunitária e progressiva, nos próprios territórios, com destaque para o fortalecimento da identidade negra, da ancestralidade, da valorização da natureza, da produção de mídia própria. A mobilização é construída a partir de moralidades e éticas presentes nos terreiros, que orientam o processo de interlocução e de interação entre os sujeitos que compartilham de valores religiosos e políticos afro-orientados.
Quando se analisa os trabalhos sobre os “novos movimentos sociais” um dos aspectos ressaltados é que eles revelam modos de associação coletiva de grupos “marginais” em relação aos padrões de normalidade sociocultural (Touraine 1989). No caso dos afrorreligiosos penso ser importante ressaltar que são influenciados por tradições afrocentradas, que conflitam com as diretrizes do colonialismo e consequências da “invisibilidade” branca (Cardoso 2008; Feres Junior 2015), principalmente no que se refere à supremacia branca no plano jurídico-político, que é o foco neste artigo. Os afrorreligiosos têm buscado constituir formas de ação direta, voltadas aos problemas que os afligem, orientados por moralidades próprias, mas que não costumavam ser interpretadas como formas legítimas de ação política por se contrapor aos modelos hegemônicos (a “universalidade” branca e o modelo classista que prevaleceu nos movimentos sociais).
Uma exceção é o trabalho de Mello, Vogel, Barros (2019) que interpretaram as formas de mobilização e luta política dos terreiros como estratégias de reivindicação da sua existência no espaço público, fortalecendo os modos singulares de vivências, que funcionaram como enfrentamento à hegemonia do empreendimento colonial do Brasil. A dimensão da religiosidade de matrizes africana é pensada por esses autores como uma via política de resistência quando analisam a ida do iaô à missa, tal como foram os “quilombos” e as mortes por banzo. As três manifestações seriam expressões de uma desobediência civil no espaço público, que colocava em xeque a hegemonia cristã. Cada uma a seu modo revelam os campos de forças na constituição de uma sociedade urbana e seus limites no reconhecimento de demandas por direitos.
O preconceito e a discriminação dirigidos aos terreiros possuem características próprias e por isso demandariam ações específicas. Além das situações cotidianas de agressões e violações de vários tipos, há uma agenda sendo construída pelos afrorreligiosos que podem e devem ser analisadas em profundidade, do mesmo modo como podem configurar uma agenda de militância, do que precisa ser monitorada e cobrada politicamente.
Ser instigada a pensar na interseção entre religiões/democracia/extrema direita provoca uma resposta imediata: diante de uma “vida social ativa” (Abu-Lughod, 2010) só se pode pensar sobre o exercício de direitos a partir da identificação de como as redes de sociabilidade dos sujeitos envolvidos e os meios técnico-políticos se articulam e produzem efeitos. Como parte desses sujeitos, fazendo uso de conhecimentos técnico-políticos, está o/a antropólogo/a cujo desafio profissional não se limita à construção de conhecimentos, mas constantemente desafiada a responder às demandas de intervenções (Cardoso de Oliveira, R., 2004). Assumir um lado, nesse contexto, não é apenas reconhecer-se como parte envolvida, mas é manter-se atento e crítico às responsabilidades do pesquisador diante dos compromissos ético-políticos quando se atua em contextos de pluralidade e democracia. Assumir-se como militante é apenas a primeira parte da tarefa, que delimita as fronteiras das representações de si e dos outros na busca da construção do comum e de uma vida pública democrática. O desafio segue quando se está diante das interações sociais, já que não há neutralidade efetiva diante de valores e práticas. As nossas escolhas não se dão no mundo ideal, mas a partir de situações concretas, que representam alternativas possíveis e válidas num dado momento e lugar.
A construção de uma agenda política
Dentre as ações de expansão de advocacy voltadas ao racismo, destaco o caso do Recurso Extraordinário 494601 ao Supremo Tribunal Federal (STF), no qual se discutia a validade da Lei estadual 12.131/2004 (RS), sobre se o sacrifício de animais em ritos religiosos é constitucional. Mesmo não tendo sido citado expressamente o termo racismo pelas(os) ministras(os) do STF, a decisão foi considerada histórica ao tratar da violência contra as matrizes africana como uma das facetas do “racismo estrutural” (Hoshino, Bueno 2019). Não é uma mera curiosidade a controvérsia que envolve o abate ritual para as cerimônias do candomblé e os efeitos que têm no campo religioso e político (Oro, Carvalho, Scuro, 2017; Miranda, Almeida, 2022). É sabido que, mesmo antes de “passar a boiada”, a legislação ambiental já vinha sido utilizada para atacar os terreiros.
Esse exemplo deixa evidente como a existência de legislações antidiscriminatórias e voltadas para políticas de ação afirmativa não asseguram a transformação da prática jurídica (Rahier 2019), que em toda a América Latina, ainda se orienta por práticas burocráticas e sociais que funcionam para neutralizar de forma significativa as decisões jurídicas e administrativas antirracistas, já que os valores e crenças coloniais continuam orientando as elites brancas e brancas-mestiças[12].
Penso que uma das chaves importantes para entender a resistência às pautas dos afrorreligiosos está na “tradicional” estratégia de colonização - a demonização das religiões afro-brasileiras. Pelo que vejo por aí não saímos dos moldes da inquisição.
Uma constatação que tenho feito, ao longo da pesquisa, e que talvez ajudasse como uma estratégia discursiva, em termos de política pública, é o modo pelo qual a discussão internacional sobre crimes de ódio (Miranda, 2023 – no prelo), cujo termo não existe na legislação brasileira, pode auxiliar na explicitação da negação do racismo. Do modo como a legislação internacional conceitua o crime de ódio o destaque é a dimensão coletiva do fenômeno. A ação ocorre entre indivíduos, mas a motivação para a agressão está associada ao fato de que o agressor discrimina / tem ódio ao que o grupo representa. Não se trata aqui de acreditar que a legislação muda a vida magicamente, muito longe disso, mas de pensar como no campo das políticas públicas a estratégia de trabalho passa por produzir nominações. O ódio é a mola mestra da extrema direita, explicitar que uma agressão a uma comunidade tradicional é motivada pelo ódio é um modo de tentar frear essa ação.
Considerações finais
A eleição do mandato Lula / Alckmin celebra a “volta” da democracia, mas não me parece suficiente para frear a política de destruição implantada pelos governos Temer e Bolsonaro, até porque a eficácia de suas intervenções não está vinculada a eles, mas a modos de governar anteriores a eles, que seguem fazendo sentido para alguns e produzindo efeitos sobre todos. Embora até o momento meus interlocutores dizem que desejam e esperam mudanças (eu também!), seguem céticos em termos de garantias aos direitos dos povos de terreiro.
Para concluir gostaria de retomar alguns pontos, em termos do que significa pensar uma relação entre religiões – as afro-brasileiras / de matriz africana – a implantação da democracia, sempre vista como vulnerável, e a dita extrema direita no Brasil. Não se trata de encontrar soluções, mas de pensar em intersecções. Fazer projeções está fora das minhas possibilidades analíticas, mas apontar algumas dimensões prospectivas é um risco que pretendo correr.
- Há um reconhecimento de ações e iniciativas isoladas que funcionam como motrizes para seguir na luta, mas seguem longe de uma efetivação. A transformação desse cenário passaria pela construção de formas inovadoras de lidar com a relação entre a propriedade (geralmente individual de uso coletivo) e as isenções de impostos asseguradas apenas aos templos cristãos, por exemplo.
- A explicitação dos conflitos de modo violento e numa escala progressiva está diretamente relacionada à resposta de grupos reacionários e conservadores, que sempre geriram a política nacional e não gostaram de ver políticas sendo transformadas e produzindo efeitos, em termos de inclusão, tais como no caso das cotas nas universidades. O mesmo se pode dizer em termos de acesso aos direitos territoriais, que segue sendo o problema-chave no país. Invadir os terreiros por razões político-financeiras é uma estratégia de dominação, a destruição da tradição religiosa é consequência.
A emergência do “traficante evangélico” / “traficrente” / “milicrente” é parte de uma política de guerra às drogas que serve a interesses maiores, nos quais o medo é a forma de assegurar a dominação. Permitir a construção de igrejas evangélicas dentro de presídios, como ocorreu no Rio de Janeiro, não é uma ação meramente proselitista. É uma estratégia inerente ao projeto de poder da IURD, com objetivos claros. Esses mesmos presídios obrigam um pai / mãe de santo a ser submetido a revista íntima. Diante desses fatos não se pode dizer que o Estado laico funciona, porque assegurou a assistência religiosa. É preciso rediscutir esses limites. A análise que fiz, com Jacqueline Muniz, Rosiane Rodrigues e Fausto Cafezeiro (2022), sobre a distribuição dos ataques /atentados em relação ao território ocupado pelo domínio armado (tráfico/milícia) mostra como a dimensão espacial é relevante para compreender esse fenômeno.
Nos terreiros a sacralidade (o axé) está plantada, literalmente, no território que necessita ser preparado para que o sagrado aconteça. O que é totalmente distinto da relação de nucleação das igrejas evangélicas-pentecostais, caracterizada pela individualização do sagrado e dispersão no espaço. Os impactos que ambas possuem na circulação do lugar são distintos, os efeitos dos deslocamentos forçados dos terreiros é muito mais complexo do que a mudança de uma igreja. - Quando se trata de políticas públicas estamos no mundo da ambivalência. As polícias e os órgãos do Judiciário tanto podem defender quanto acusar/atacar os terreiros. Os afrorreligiosos sabem muito bem disso e jogam com os recursos que possuem, o que implica inclusive em negociar diretamente com os próprios agressores. Porém, isso não os livra de se assustarem ou se indignarem quando os próprios agentes públicos fazem essa recomendação – “vá conversar com o traficante para manter o terreiro aberto”. A reprivatização do conflito, pelo poder público, que implantou a evangelização como política, colabora para uma descrença nas instituições. Repensar e reconstruir as relações com os poderes públicos é uma ação urgente e necessária, em especial, nas áreas da educação, saúde, segurança e justiça.
- Em menos de 15 anos, no Rio de Janeiro, os conflitos entre religiosos de matriz africana e evangélicos deixaram de ser um problema das relações de proximidade e passaram a envolver confrontos predatórios pela hegemonia armada de espaços populares por traficantes e/ou milicianos, que se apresentam como membros de igrejas pentecostais e criadores de “exércitos” religiosos para a construção de uma nação de seguidores de Jesus. Isso tem resultado num reenquadramento das discussões no campo da segurança pública e da justiça, no sentido de analisar o fenômeno da criminalidade violenta dirigida a terreiros tomando como ponto de partida que se está diante de “história particular do conhecimento e do poder” (Asad, 2016, p. 278) que favorece modos de exercício (i)legal e (i)legítimo de poder em suas formas particulares de apropriação conformam símbolos e experiências religiosas nas favelas e periferias, mais uma vez tentando impedir a potência do “pensamento nagô” e a refundação de um país cristão e embranquecido, ao menos na retórica.
Não se trata apenas de um modo de governar que alia crime (política) e religião, orientado por uma lógica miliciana e alicerçado pela “batalha espiritual” (Silva, 2007). O fenômeno tem favorecido a consolidação de uma agenda de costumes (Vital da Cunha & Lopes, 2013) e o aumento dos atentados contra minorias de gênero, religiosas e raciais no país. Também tem possibilitado a construção de carreiras político-eleitorais de caráter extremista (Vital da Cunha, Lopes e Lui, 2013), marcadas por propostas expansionistas fundadas em narrativas mítico-políticas que podem corresponder tanto à negação como à glorificação de certo projeto de nação - projeto estético-político que articula valores religiosos com outros atributos de poder, principalmente a teatralização bélica de uma masculinidade viril.
Política e religião como formas imbricadas, juntas e misturadas do poder-saber-agir e seus expedientes de distribuição de coerção não são propriamente uma novidade. A novidade é a (re)configuração das fronteiras entre o sagrado e o profano na produção de crenças e processos de subordinação concebidos e vividos. No caso que me coube analisar identifico que estamos diante de uma vivificação de (neo)cruzadas político-religiosas contra as religiões de matriz africana apoiadas em uma moral econômico-racial que permite negociar crenças, vidas, votos, bens e serviços públicos nos territórios populares. Infelizmente, não é suficiente pensar na solução mágica de tirar a religião da vida pública, é preciso redefinir os limites. Essa é a demanda dos movimentos afrorreligiosos, cujas lideranças há séculos resistem às perseguições, demonizações, expulsões, agressões físicas, ofensas morais. Eles pretendem seguir resistindo enquanto o projeto (neo)colonial seguir atuando de modo cartesiano e binário. A religião transpassa a política, encantando-a, e a política atravessa a religião, desencantando-a. A crença na modernidade nos faz querer uma separação de domínios que efetivamente não existe, a complexidade do universo cosmológico de matriz africana tem muito a nos ensinar sobre isso.
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[1] O livro “Um plano de poder”, de Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, com a colaboração do jornalista Carlos Oliveira, revela as estratégias de construção de um “projeto divino de nação”, que passa pela participação direta dos evangélicos na política nacional.
[2] Variação livre do questionamento que Garrincha teria feito ao treinador Vicente Feola, durante a copa de 1958.
[3] O termo classifica políticas públicas e sociais que, em nome do cristianismo, excluem os grupos minoritários (Heyward 1999) Ver também Sölle (1970).
[4] Ver Fernandes (1998).
[5] Composição de Antonio Carlos Belchior e interpretada por Elis Regina, no álbum Alucinação (POLY- GRAM 1976).
[6] Sobre uma discussão sobre os tipos de racismo ver Campos (2023).
[7] A expressão no plural foi utilizada durante o Seminário Territórios das Matrizes Africanas no Brasil – Povos Tradicionais de Terreiro, 2011, realizado pela SEPPIR.
[8] São consideradas como tradições espalhadas no país: Babaçuê; Batuque; Cabula; Candomblé Jeje; Candomblé Ketu; Candomblé Angola; Candomblé de Caboclo; Catimbó; Culto aos egunguns; Encantaria; Jurema; Omolocô; Pajelança; Quimbanda; Tambor de Mina; Terecô; Toré; Umbanda; Xambá; Xangô.
[9] Trata-se de uma categoria altamente controversa que não será possível discutir no âmbito deste artigo.
[10] Ver Miranda e Boniolo (2017).
[11] Os princípios civilizatórios que orientam a diversidade dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana são a senioridade, a ancestralidade, a vivência comunitária, a circularidade, a oralidade e a visão transgeracional.
[12] A categoria branco-mestiço é utilizada pelo autor para designar aqueles que invisibilizam e negam as diferenças étnico-raciais.
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