O crescente protagonismo da extrema-direita pode também ser visto como uma possibilidade de convergência de agendas entre os diferentes grupos da sociedade civil, assim como foi o neoliberalismo em 1992. Não se pode também perder de vista, que na montanha russa que foi a trajetória da sociedade civil nos últimos 30 anos, com avanços e recuos, é inquestionável sua capacidade e importância na história, além do papel nos tempos atuais. Ela é aliada de primeira linha na consolidação da democracia nos países.
Um Brasil recém-saído da ditadura militar, com manifestações livres nas ruas que pediam eleições diretas para presidente (conquistadas somente em 1989), regido por uma nova e avançada Constituição promulgada em 1988 e que possuía a maior floresta subtropical do mundo, a famosa Amazônia: é nesse país que foi sediada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento[1], conhecida como a Rio 92, que reuniu 172 países e teve a presença de 108 chefes de Estados, um fato inédito para uma reunião global.
Para a Europa, o período marcava a desintegração do bloco de nações socialistas, com o marco simbólico da queda do muro de Berlim, em 1989. É também no fim dos anos 1980 e começo de 1990 que os partidos verdes tomam impulso no mundo, e a questão ambiental entra de forma contundente na agenda política. Uma nova e ampliada geração de ONGs também estava se estruturando justamente nesse período, passando de uma atuação assistencialista para uma abordagem mais política, e a solidariedade internacional se consolidava como uma agenda para os países financiadores do Norte.
Como um dos principais resultados da Rio 92, temos a inauguração do ciclo social da ONU, seja através das Convenções acordadas durante a Conferência para lidar com o clima, desertificação e biodiversidade, ou em outras grandes conferências que debateram e consagraram temas globais emergentes e mobilizaram a sociedade civil no mundo, transformando-a em ator importante dentro do debate geopolítico global. Dentre os exemplos, podemos destacar a Conferência da Beijing (1995) - no tema das mulheres - e a conferência de Durban (2001), sobre o racismo e a intolerância.
Reflexos sociais
O fortalecimento da atuação da sociedade civil em temas como os direitos humanos e o meio ambiente, assim como um aumento da conscientização sobre as transversalidades destes temas nas questões políticas e econômicas, fizeram com que crescesse uma massa crítica contra as políticas neoliberais que prevaleciam nos países do sul global durante o período. Havia questionamentos sobre os impactos das políticas de austeridade neoliberais que promoviam um modelo de desenvolvimento que não garantia a universalidade dos direitos humanos, além de provocar a degradação ambiental.
Um marco da atuação da sociedade civil contra o neoliberalismo foi a batalha de Seattle, em 1999, que levou às ruas da cidade norte-americana milhares de militantes que se opunham aos rumos das discussões ocorridas na conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Entretanto, o neoliberalismo continuava avançando, a despeito das ações do campo pró-direitos. Uma ação enérgica deveria ser feita, mostrando o poder dessa sociedade civil mundial, em contraponto à lógica neoliberal que colocava no centro a falácia da meritocracia e a mercantilização da vida. E é novamente no Brasil, em 2001, na cidade de Porto Alegre, que essa resposta é dada: um encontro global chamado “Fórum Social Mundial”, em que se afirma “Um outro mundo é possível”.
Construído e organizado pela sociedade civil mundial, e com um discurso baseado nos direitos e pela democracia, o Fórum acontece nas mesmas datas do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suiça. Uma provocação deliberada, que trouxe para a cidade de Porto Alegre 20 mil pessoas de 117 países, entre ativistas, intelectuais, artistas e políticos para discutir saídas, construir soluções coletivas contra a máquina neoliberal que trazia mais desigualdades e pobreza para o mundo. O Fórum foi considerado um sucesso e foi transformado em um evento periódico, de reflexão, diálogo e de construção de alternativas.
Essa efervescência da sociedade civil coincidia com o início da chamava “onda rosa”, caracterizada pela subida ao poder de governos de centro-esquerda, com destaque para Evo Morales, na Bolívia; Rafael Correa, no Ecuador; Luís Inácio Lula da Silva, no Brasil; Néstor Kirchner, na Argentina.
Contexto brasileiro
No Brasil, a sociedade civil em sua multiplicidade contribuiu para levar ao poder um projeto de centro-esquerda, representado pelo governo Lula, em 2002. As pautas do movimento negro, dos quilombolas, dos sem-teto, das mulheres, dos sem-terra, dos indígenas, são encampadas pelo governo, que constrói políticas para essas áreas e faz um discurso público repleto de simbolismo que admite o racismo e as discriminações contra povos tradicionais, população LGBTQI+ e mulheres. Ao mesmo tempo o governo avançou na criação de uma miríade de conselhos de participação social, que em sua grande maioria, não tinham poder de fato sobre as políticas ou orçamento; eram instâncias de acordos políticos e visibilidade. Mas mantinham a chama dessa participação.
Na administração pública foram criados órgãos com orçamento e políticas para esses segmentos, e vários quadros de ongs e movimentos sociais que na década passada estavam atuando contra os impactos do neoliberalismo, iriam participar de governos locais ou do federal. Uma sociedade civil otimista estava, agora, sentada nas cadeiras de tomada de decisão ou realizando parcerias com o governo. Nos primeiros anos o sentimento era de que tudo parecia ser possível. Havia avanços, como a implementação do Programa Fome Zero, que trazia ganhos reais na vida da população brasileira, mesmo que de forma lenta.
Porém, sob a justificativa da governabilidade, o governo federal atacou de forma tímida as estruturas e causas que mantém as abissais desigualdades sociais no Brasil. Foram essas contradições de um projeto de poder que tentava acomodar a todos sem efetivamente atacar os reais problemas que geraram brechas políticas. E nessas sombras grupos de extrema direita construíram redes e conexões que juntavam religiosos fundamentalistas, empresários descontentes em não conseguir avançar as reformas neoliberais e militares alijados do poder por sua relação com a ditadura. Estes grupos ainda se aproximaram de antigos aliados de ocasião do governo federal, e tornaram-se novamente inimigos políticos. Este movimento, inclusive, foi importante para a condução do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016.
E foi durante essa nova conjuntura mais complexa das relações de poder no país, com a aparição de novos atores políticos, que acontece a Rio+20, tentando reviver o congraçamento de anos anteriores, provocados durantes os processos da Rio 92 e do Fórum Social Mundial (FSM). Entretanto, apesar de sua continuidade, assim como o FSM durante a última década, a Rio+20 não conseguiu manter sua relevância, sofrendo uma série de desgastes. É importante mencionar o surgimento de novas formas de comunicação, organização e mobilização. Movimentos como o “Occupy” trouxeram novas formas de diálogo e de ação política na sociedade.
A dificuldade de se atualizar dentro desse novo contexto, aliado a uma sociedade civil mais fragmentada, com crescimento e fortalecimento de coletivos e de movimentos de juventude, de negros e feministas – entre outros -, trouxe um questionamento sobre a real contribuição das ONGs tradicionais para a democracia e diminuição do racismo e das desigualdades, aquelas que eram na verdade, herdeiras da Rio 92 e daquele momento político no mundo.
Em muitos casos, o papel dessas organizações era mais de produção de conhecimento e articulação política, sob um modelo de projetos financiados pela cooperação internacional e governos. O diálogo nos territórios era pontual. Porém, eram essas organizações que se mantinham em negociações relevantes entre Estado e sociedade, conquistando visibilidade e acesso aos recursos. Quem estará nesses territórios cotidianamente para atender, acolher essas pessoas despossuídas de direitos? Esses espaços foram preenchidos com a atuação da Igreja Católica e das neopentecostais, além de pequenas organizações e coletivos com precariedade institucional e de recursos.
Não é toa que em 2013, o Brasil viveria um momento de protestos e mobilização social, com milhares nas ruas exigindo direitos. Sob o reflexo das “primaveras” e “occupies” que ocorreram em diversos países, as Jornadas de Julho de 2013 se tornariam um marco na história brasileira. Nos primeiros dias de protestos muitas lideranças das ONGs e movimentos tradicionais se perguntavam porque não foram convidadas e assistiam incrédulos na TV as massas avançando nas ruas. O mundo tinha mudado e havia outros atores querendo mandar no jogo, sem pedir permissão. Pessoas sem letramento na esquerda estavam nas ruas, articulando-se via redes sociais, criando coletivos, realizando atividades artísticas e políticas. Esses grupos queriam ser ouvidos. E radicalizavam seu discurso por direitos e por mudanças reais, não queriam a tutela das “velhas” lideranças. O protagonismo era de outros sujeitos políticos. Como consequência, houve um aprofundamento ainda maior da crise da esquerda tradicional.
A extrema direita também percebeu que o momento de descontentamento político era a ocasião perfeita para juntar seus aliados e retirar do poder aqueles que trouxeram pautas incômodas, como a descriminalização do aborto, o racismo estrutural, o avanço da demarcação de terras indígenas e quilombolas, dentre outras. As organizações da sociedade civil tradicional estavam sendo questionadas, enquanto que o governo estava corroído pelos escândalos de corrupção era, portanto, a tempestade perfeita para a extrema direita, que desde 2014 retomou com força total no Brasil e construiu suas alianças internacionais. Atualmente se encontram globalizados com uma bula de ações que vem sendo colocada em prática por governos eleitos democraticamente. Para a extrema direita brasileira, a sociedade civil será sua inimiga, e por isso os espaços de participação foram imediatamente destruídos – aliás foi uma das primeiras ações do recém-eleito governo Bolsonaro. E se a aniquilação da esquerda é uma de suas metas, isso passa por destruir qualquer pensamento, ação, que coloque em xeque o patriarcado, o racismo, as desigualdades e, claro, seus interesses econômicos.
Nesse sentido, a pauta ambiental torna-se um empecilho, por fortalecer políticas pela diversidade e de respeito aos direitos dos povos tradicionais, além de propor uma outra lógica de ocupação territorial. Essa pauta questiona os atuais modelos de produção e de consumo, afirmando serem incompatíveis com a sobrevivência do planeta. Por um lado, é importante para a extrema direita questionar e fazer a sociedade desmerecer o discurso e narrativa presentes no debate ambiental, como por exemplo ao colocar em dúvida temas como o aquecimento global. E de outro, reforçam ações e políticas danosas para o meio ambiente e para os povos e comunidades da floresta, enquanto constroem falsas soluções mirabolantes que desviam a responsabilidades dos principais culpados, e que não mudam a relação do ser humano com a natureza.
Atualmente
Hoje essa sociedade civil, com novos ou velhos atores, está novamente diante de um inimigo comum: a extrema direita. Não importa se sua história é recente ou antiga, os grupos fundamentalistas perseguem e criminalizam quem se interpõe em seu caminho. Eles utilizam as redes sociais para fortalecer discursos de ódio contra negros/as, mulheres, indígenas e população LGBTQI+, além de encorajar políticas armamentistas e a autonomia da polícia, gerando mais violência contra os defensores de direitos.
O crescente protagonismo da extrema-direita pode também ser visto como uma possibilidade de convergência de agendas entre os diferentes grupos da sociedade civil, assim como foi o neoliberalismo em 1992. Não se pode também perder de vista, que na montanha russa que foi a trajetória da sociedade civil nos últimos 30 anos, com avanços e recuos, é inquestionável sua capacidade e importância na história, além do papel nos tempos atuais. Ela é aliada de primeira linha na consolidação da democracia nos países.
Para a Fundação Heinrich Böll fortalecer espaços de convergência, tal como foi o Fórum Social Mundial no começo dos anos 2000, além da participação da sociedade civil em espaços internacionais de diálogos e negociações, são importantes para a combinação de estratégias e de fortalecimento de vozes públicas para se contrapor aos discursos de ódio da extrema direita e renovar os debates ocorridos desde a Rio 92 com relação ao meio ambiente, clima e biodiversidade.
Após 30 anos da Rio 92 continuamos sob uma ameaça real à humanidade e ao próprio planeta. Devemos buscar soluções que deixem de ser apenas alternativas e se transformem em ações reais para uma transformação socioecológica.
Depois de pouco mais de 20 anos, a hora é de renovar o slogan. Um outro mundo não é somente possível, como necessário!
E que somente será alcançado com o protagonismo de uma sociedade civil fortalecida e participativa.
[1] Segundo dados das Nações Unidas, foram credenciados cerca de 10.000 jornalistas e representantes de 1.400 organizações não governamentais, ao mesmo tempo em que o Fórum Global, evento paralelo, reuniu membros de 7.000 ONGs[1]. Após 11 dias de negociações entre os países, e de debates e diálogos entre atores não governamentais na conferência paralela, foram produzidos uma série de documentos que nortearam a política internacional ambiental e climática nos anos seguintes.