A escalada de ataques aos direitos socioambientais no Brasil, o roubo de terras e a “boiada de todas as boiadas”

Se não é de hoje que o meio ambiente e os povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais se encontram ameaçados por proposições legislativas, pode-se afirmar que jamais em nossa história havíamos percebido ataques tão intensos e reiterados aos pilares da legislação socioambiental como ocorre no momento em que redigimos o presente texto[1].

Máquinas do agronegócio em campo de monocultura

Após a Constituição Federal de 1988, o Congresso Nacional aprovou leis essenciais para a proteção socioambiental, especialmente na regulamentação do art. 225, que garante a todos o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Exemplos deste período são a Lei nº 9.605/1998, sobre crimes e infrações administrativas ambientais; a Lei nº 9.795/1999, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental; e a Lei nº 9.985/2000, que rege o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC.

Panorama da flexibilização da legislação socioambiental

A partir da década de 2000, e com maior frequência na década de 2010, acompanhamos a aprovação de projetos de lei (PL) destinados a flexibilizar o Direito Socioambiental, como ocorreu com a Lei nº 11.105/2005, acerca de organismos geneticamente modificados, e a Lei nº 12.651/2012, que fragilizou a proteção da vegetação nativa em áreas de preservação permanente e reservas legais, cujas funções ambientais constituem elementos essenciais para a proteção dos componentes ambientais, a exemplo da água, hoje em grave escassez. Apesar de não aprovadas à época, outras propostas avançaram em comissões, como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 215/2000, uma das mais graves ameaças aos povos indígenas desde 1988[2].

A escalada de ataques aos direitos socioambientais ganhou contornos mais dramáticos a partir de 2019, quando toma posse o presidente Jair Bolsonaro: propostas adormecidas voltam a tramitar e novos projetos de retrocesso são apresentados pelo governo federal ou parlamentares da base governista.

No primeiro biênio (2019-2020), as investidas governamentais não lograram êxito no legislativo, destacando-se, além da atuação incisiva de organizações e movimentos sociais e da Frente Parlamentar Ambientalista, a condução dos trabalhos pelos então presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que privilegiaram a votação de matérias relativamente consensuais sobre a temática socioambiental. Nesse período, o Legislativo rejeitou ou deixou caducar todas as Medidas Provisórias com efeitos negativos à agenda socioambiental. Igualmente, proposições legislativas atentatórias contra os direitos socioambientais não foram votadas nos plenários, como é o caso do PL nº 191/2020, de autoria do Poder Executivo Federal, que pretende abrir Terras Indígenas a atividades de significativo impacto. Por fim, em rara oportunidade de convergência entre as bancadas ambientalista e do agronegócio, aprovou-se, no final de 2020, a Lei nº 14.119/2021, que estabelece a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais.

Daí ter o governo federal, entre 2019 e 2020, voltado suas investidas, de um lado, ao desmonte das estruturas públicas voltadas à execução das políticas públicas socioambientais e, de outro, à revisão da legislação infralegal, que pode ser alterada unilateralmente pelo Executivo sem decisão do Congresso Nacional, o que ficou conhecido como o “passar das boiadas”, como decretos, resoluções, portarias e despachos interpretativos. Quanto ao primeiro aspecto, pode-se mencionar o abandono do Plano de Ação para Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que resultou em danos graves e irreparáveis à floresta amazônica: o desmatamento aumentou 34% entre 2018 e 2019 e atingiu 10.851 km² entre 2019 e 2020, com o consequente descumprimento da meta climática brasileira para o ano de 2020 – prevista pela Política Nacional de Mudança do Clima[3]. Quanto ao segundo, exemplo emblemático foi a edição do Despacho Interpretativo nº 7036900/2020 do presidente do IBAMA, que extinguiu a autorização de exportação da madeira nativa, inviabilizando o controle ambiental. O ato é objeto da PET nº 8975, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, na qual o ministro Alexandre de Morais determinou medidas cautelares contra o então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do IBAMA, além de anteriormente ter sido ajuizada Ação Civil Pública pelo Instituto Socioambiental – ISA, pela Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente – ABRAMPA e pelo Greenpeace-Brasil[4].

A partir deste segundo biênio, as ofensivas legislativas ganharam gravidade inédita e celeridade sem precedentes. Se nos primeiros dois anos de governo houve retrocessos infralegais, realizados por atos administrativos da atual gestão federal e passíveis de rápida revisão em outro governo, o ano de 2021 inaugura um período de votações, sem debate e em regime de urgência, de PLs que, se aprovados, podem gerar efeitos irreversíveis. Entre as diversas propostas com tramitação avançada, as seguintes foram aprovadas pela Câmara dos Deputados até o momento: o PL nº 3.729/2004 (atual PL nº 2.159/2021 no Senado), que desconfigura o licenciamento ambiental, um dos principais e mais consolidados instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente; e o PL nº 2.633/2020, que tramita em conjunto com o PL nº 510/2021 no Senado, que visa a legalizar o roubo de terras públicas a título de regularização fundiária. Os direitos dos povos indígenas são alvo do já citado PL nº 191/2020 e do PL nº 490/2007, ambos da Câmara, que podem ser levados a plenário em breve. Há, ainda, outras ameaças legislativas sobre diversos temas da agenda socioambiental, como Unidades de Conservação, Código Florestal, agrotóxicos, liberação da caça e outras.

A Lei Geral de Licenciamento Ambiental e seus inúmeros retrocessos

No que diz respeito ao PL nº 3.729/2004, seu texto original tinha como objetivo fortalecer o licenciamento ambiental e consolidar as normas nacionais aplicáveis à matéria, até hoje concentradas em Resoluções do CONAMA. Recentemente, em uma inesperada metamorfose[5], a proposta aprovada em maio deste ano pela Câmara dos Deputados, se transformou na mais grave e iminente ameaça legislativa sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos sociais e econômicos, inclusive aqueles garantidos aos povos e comunidades tradicionais. O texto segue agora para a apreciação do Senado Federal. Denominado por Suely Araújo e Fábio Feldmann como “a mãe de todas as boiadas”[6], sua aprovação pode significar a proliferação de tragédias como as ocorridas em Mariana e Brumadinho (MG), o descontrole de todas as formas de poluição, com graves prejuízos à saúde e à qualidade de vida da população, o agravamento da crise hídrica e a aceleração da devastação da Amazônia e de outros biomas. Trata-se da proposta mais nociva já apresentada desde que o PL começou a tramitar, há dezessete anos.

Segundo a lógica do texto aprovado, a exigência de licenciamento ambiental se tornará exceção. Primeiro, porque o projeto prevê extensa lista de dispensa de licenciamento para atividades potencialmente impactantes (arts. 8º e 9º). Entre as treze atividades expressamente dispensadas, constam sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário, cujo descontrole ambiental pode nos levar à intensificação da poluição hídrica. Faz-se notar ainda a dispensa geral e irrestrita para a grande maioria das atividades agropecuárias, nominalmente o cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes e perenes; a pecuária extensiva e semi-intensiva; e a pecuária intensiva de pequeno porte.

Ademais, o texto permite que cada estado e município possa ampliar tal rol. No lugar de padronizar a legislação nacional sobre o tema, objetivo que deveria ser o primeiro de uma Lei Geral de Licenciamento Ambiental, pressões políticas e econômicas locais poderão resultar na pulverização de dispensas de licenciamento ou outras flexibilizações.

Mas esta é apenas a ponta do iceberg. O texto aprovado inova no ordenamento jurídico nacional ao estabelecer o que denomina Licença por Adesão e Compromisso (LAC), de natureza autodeclaratória, desprovida de avaliação de impacto ambiental e emitida automaticamente sem a análise prévia do órgão licenciador. Uma modalidade que, por suas características, não é licença. Sua aplicação, segundo o art. 21, se daria nas atividades não qualificadas como de significativo impacto ambiental. Atividades e empreendimentos de médio ou pequeno impacto e de médio ou pequeno risco seriam “licenciados” pela LAC, tornando-a a regra a ser aplicada na maioria dos casos.

A título de ilustração, a barragem de rejeitos que se rompeu em Brumadinho/MG poderia passar a ser objeto de licenciamento por autodeclaração. No Brasil, das quatrocentas e quarenta e duas barragens cadastradas no Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SIGBM), apenas 10,4% são qualificadas na Categoria de Risco (CRI) alta; 12,7% são de CRI médio; e 76,9% contam com CRI baixo. A modalidade automática de licenciamento ainda seria aplicável a toda sorte de empreendimentos industriais, podendo nos levar de volta aos anos 60 e 70 do século passado, quando o descontrole da poluição foi responsável por uma série de danos irreparáveis, desde a contaminação de nossos rios, como o emblemático Tietê, até o nascimento de crianças anencéfalas devido aos altos níveis de contaminantes em Cubatão/SP. De mais a mais, segundo o art. 10 do PL, a LAC seria aplicável também a “serviços e obras direcionados à ampliação de capacidade e à pavimentação em instalações preexistentes ou em faixas de domínio e de servidão”, incluindo linhas de transmissão, o que poderia resultar na aplicação desta modalidade autodeclaratória na pavimentação de rodovias na Amazônia, empreendimentos comumente qualificados como de significativo impacto, visto que 95% do desmatamento no bioma ocorre numa distância de 5,5 km desses empreendimentos[7], além de constituir vetor para a ocupação irregular, o chamado “efeito espinha de peixe”[8].

Daí que, somadas as dispensas de licenciamento com a abrangência de aplicação da LAC, o licenciamento ambiental, da forma como concebido – com avaliação de impacto ambiental e análise prévia da autoridade licenciadora –, se restringirá apenas a atividades potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental, isto é, a minoria.

Mas não é só. Mesmo para esses empreendimentos há sérias limitações à exigência de condicionantes pelos órgãos ambientais, especialmente aqueles relativos a impactos sobre temas afetos à competência do Poder Público. No mencionado caso das estradas da Amazônia, o desmatamento impulsionado pela sua instalação não mais poderá ser objeto de medidas de prevenção, mitigação ou compensação pelo empreendedor. Da mesma forma, medidas para superar o esgotamento de serviços públicos em municípios próximos a grandes empreendimentos (saúde, educação, segurança pública etc.), que costumam ter sua população fortemente ampliada em curto período de tempo, não mais poderão ser exigidas, ficando a cargo dos cofres públicos.  

Há que se enfatizar que tais limitações às condicionantes, cuja função é viabilizar a compatibilidade do desenvolvimento econômico com os pilares sociais e ambientais – na forma do art. 170, VI, da Constituição –, não farão com que, como em um “passe de mágica”, os impactos deixem de ocorrer. Pelo contrário, o não endereçamento dessas questões deve resultar em prejuízos ao meio ambiente, à população impactada e também ao empreendedor, visto que tende a ampliar conflitos, intensificar a judicialização, aumentar riscos de paralisação de empreendimentos e inserir custos não previstos quando do planejamento da obra.

Por fim, entre os inúmeros pontos de retrocesso trazidos por este PL, cabe destaque o tema das Áreas Protegidas. Quanto às Terras Indígenas, prevê-se que não será realizada a análise de impacto e a adoção de medidas para prevenir impactos sobre as não homologadas, o que representa 41% do total; já em relação aos Territórios Quilombolas, as medidas ficarão restritas a casos de titulação efetivada, excluindo 84% do total. Ademais, para ambos os casos, apenas os impactos qualificados como diretos serão apreciados, o que deve reduzir ainda mais o escopo da avaliação de impacto ambiental. Para as unidades de conservação, a proposta vai além, pois exclui da apreciação dos órgãos gestores, como o ICMBio, tanto os impactos diretos como os indiretos. Isso sem contar o afastamento da atuação dos órgãos de saúde, como ocorre atualmente quando há áreas de risco ou endêmicas para malária.

Roubo de terras públicas a título de regularização fundiária

Na sequência da aprovação do PL do Licenciamento, a Câmara apreciou o PL nº 2.633/2020, cuja origem remonta à Medida Provisória nº 910, editada pelo governo Bolsonaro e que caducou devido à ausência de aprovação pelo Congresso Nacional em 2020. Sua chegada ao Senado o fez tramitar em conjunto com o PL nº 510/2021, de teor mais grave. Dada a similaridade entre ambos, abordaremos os projetos em conjunto.

Entre os aspectos mais graves, menciona-se, inicialmente, o afrouxamento da verificação sobre a regularidade ambiental do imóvel, na medida em que praticamente extingue a vistoria prévia, elemento essencial para a adequação da posse à legislação. Nos casos de supressão vegetal irregular que não tenham sido objeto de auto de infração, o projeto permite a titulação da área sem exigir qualquer instrumento de recuperação, como os termos de compromisso, firmados entre o interessado e o órgão ambiental. Mesmo em casos em que há lavratura de autuação, o texto prevê que a mera inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), ainda que sem validação do órgão ambiental, seja motivo justo para a dispensa de vistoria e liberação da área para regularização.

Verifica-se que tais flexibilizações das regras fundiárias e socioambientais podem gerar a ampliação do risco de titulação de territórios demandados por povos e comunidades tradicionais, especialmente no caso de Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e demais territórios de povos e comunidades tradicionais pendentes de reconhecimento definitivo pelo Estado.

Outro ponto em debate no Senado consiste nos diversos incentivos a novas invasões de terra pública. Primeiro, devido à possível anistia de crimes e infrações sobre as ocupações ilegais, inclusive as mais recentes. Segundo – e mais surpreendente –, devido à criação de um direito de preferência à compra para aquele que estiver ocupando terra pública após dezembro de 2014, independente da data de ocupação, inclusive aplicando-se a regra para o futuro.

Segundo o IMAZON, em nota técnica sobre o PL nº 2.633/2020, “esse tipo de mudança nas regras fundiárias ameaça pelo menos 19,6 milhões de hectares de áreas federais não destinadas na Amazônia, os quais podem ser ocupados e desmatados na expectativa de regularização”[9]. Caso seja aprovado pelo Senado, essa será a terceira vez, desde 2009, em que se flexibiliza a legislação sobre regularização fundiária, criando um permanente incentivo à grilagem e ao desmatamento ilegal, tanto na Amazônia quanto fora dela.

Nesse sentido, somados os impactos das duas proposições legislativas em comento e consideradas as conclusões do último relatório do IPCC sobre os efeitos da emergência climática, vislumbra-se impactos dramáticos ao meio ambiente – não apenas o brasileiro –, e aos povos e comunidades tradicionais e seus direitos territoriais – especialmente na Amazônia, onde algumas regiões já emitem mais carbono do que são capazes de absorver[10].

Por certo, as proposições legislativas aqui abordadas só não foram definitivamente aprovadas devido à atuação decisiva de organizações da sociedade civil, em articulação com outros importantes setores, como a comunidade científica, o ministério público, a defensoria pública, os movimentos do campo e tantos outros. Somente no tema do licenciamento ambiental, entre tantas movimentações, foram produzidas catorze notas técnicas, apresentadas inúmeras denúncias a organismos nacionais e internacionais e realizadas rotineiras ações de informação e engajamento social. Para que os retrocessos não se tornem realidade, é preciso ampliar e intensificar o envolvimento da sociedade na defesa de seu direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Acesse o Webdossiê Flexibilização da Legislação Socioambiental Brasileira - 3ª edição na íntegra

 

[1] O artigo foi elaborado em 10 de setembro de 2021.

[3] Tema objeto da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 760, ajuizada por sete partidos políticos e dez organizações da sociedade civil.

[7] BARBER, Christopher P. Roads, deforestation, and the mitigating effect of protected areas in the Amazon. In: Biological Conservation, v. 177, 2014, p. 203-209.

[8] PFAFF, Alexander; et al. Impactos de Estradas na Amazônia Brasileira. In: Amazonia and Global Change, 2009, p. 4. Disponível em: https://daac.ornl.gov/LBA/lbaconferencia/amazonia_global_change/7_Impac…