Neoconservadorismo, família, moral e religião nos primeiros anos do governo Bolsonaro

Não é de hoje que o presidente vem afinando as relações com líderes religiosos e políticos cristãos. Durante a campanha eleitoral, conseguiu reunir a seu favor lideranças evangélicas  e católicas. Confirmada a vitória, o segmento evangélico tornou-se uma importante  base de apoio política, institucional e popularmente. Nada disso é novidade, mas a confirmação nas urnas de Jair Bolsonaro como presidente produziu rearranjos na já complexa presença pública da religião e ajudou a revelar as novas e velhas estratégias de legitimação da ideia do Brasil como uma nação cristã que deve ser pautada por moralidades e valores cristãos. 
 

Serviço religioso em igreja cristã

Ainda era 2 de janeiro de 2019 quando circulou na internet um vídeo no qual Damares Alves, pastora evangélica e articuladora política, afirmava que o Brasil tinha entrado numa nova era “na qual menino veste azul e menina veste rosa”. Nesse mesmo dia, Damares assumiria o mais alto cargo do antigo Ministério dos Direitos Humanos, que ganhava novo nome, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ficava evidenciada, assim, a centralidade que uma noção específica de família - heteronormativa, monogâmica e cisgênero -  tal como concebida em diferentes segmentos cristãos, ganharia no atual governo. Na solenidade, a Ministra ainda afirmou: “o Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”. 

No decorrer dos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, a frase ganhou diferentes usos e algumas variações. Ainda em 2019, foi evocada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro quando, em um culto evangélico na Câmara dos Deputados, afirmou para seus apoiadores da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) que um dos ministros do Supremo Tribunal Federal a serem nomeados em seu mandato seria “terrivelmente evangélico”. E completou: “é esse o espírito que deve estar presente nos três poderes”. Ou, já em 2020, quando em reunião por videoconferência com representantes da Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana que pediam mais apoio para emissoras de rádio e TV católicas para que pudessem continuar “levando uma boa mensagem” à população, ouviu elogios, prometeu manter a defesa da pauta conservadora de “defesa da família” e afirmou que “para mudar tudo seria necessário apresentar uma emenda à Bíblia". 

Em abril de 2020, quando a crise do coronavírus já era uma realidade mundial, o presidente convocou um “Ato de jejum e oração pela nação” para enfrentamento da pandemia. O vídeo de divulgação contou com a participação de diversas lideranças pentecostais e neopentecostais do país. No dia do jejum, houve uma solenidade nos jardins do Palácio da Alvorada, na qual um dos pastores, ao lado do presidente da República, declarou que "Jesus Cristo era o Senhor do Brasil" e que os brasileiros eram terrivelmente cristãos. E, de fato, numericamente, são. Estamos  falando de 50% de católicos e 31% de evangélicos, segundo levantamento do Datafolha em 2019, sem contar os cristãos sem pertencimento denominacional. 

Figuras do Executivo também ligadas aos grupos cristãos

Nesse cenário, engana-se  quem pensa que os debates sobre pautas religiosas no governo se restringem apenas às figuras religiosas já conhecidas do Congresso Nacional. O Procurador Geral da República, Augusto Aras, católico praticante, quando ainda candidato à chefia do Ministério Público, foi o único dos candidatos a se comprometer com os "valores cristãos" previstos na carta de princípios da Associação Nacional de Juristas Evangélicos , a Anajure. A carta prevê, por exemplo, que "a instituição familiar deve ser heterossexual e monogâmica, as doutrinas religiosas não podem ser enquadradas como discurso de ódio e todo homossexual deve ter liberdade para tornar-se paciente em tratamento de reversão sexual”. A Anajure, por sua vez, tem alçado vôos altos no âmbito de seu projeto de defesa incondicional dos valores cristãos, seja atuando internamente em órgãos do Poder Judiciário, realizando articulação política ou ocupando assentos em órgãos internacionais. A associação sabatinou, por exemplo, os três candidatos à chefia da Defensoria Pública da União e recomendou o segundo da lista tríplice, um candidato anti-aborto que foi prontamente acatado por Bolsonaro. André Mendonça, o até então ministro da Justiça e da Segurança Pública, pastor presbiteriano, assumiu a chefia da Advocacia Geral da União também com apoio da associação.

Já o ministro da Educação, Milton Ribeiro, pastor presbiteriano, que também contou com apoio  da Anajure para sua nomeação ao STF, deu declarações nas quais atribuiu o que chama de "homossexualismo" ao fato de crianças serem criadas por famílias "desajustadas". Afirmou, ainda, que educação sexual nas escolas pode ter como consequência a erotização infantil. Benedito Guimarães Aguiar Neto, outro presbiteriano e defensor do criacionismo (chamado também de Design Inteligente), é responsável hoje pela maior agência de fomento aos programas de pós-graduação e à pesquisa científica no Brasil, a CAPES. 

Como se vê, estamos falando aqui de uma robusta incidência política de um cristianismo difuso, mas alinhado ideologicamente sobretudo no que diz respeito às pautas morais, em diferentes instituições estatais distribuídas nos três poderes. Esses grupos religiosos não são compostos apenas por evangélicos, incluídos aí protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais, mas também por católicos e cristãos que não declaram pertencimento a uma igreja específica. Todo esse movimento ganha ainda mais importância quando observado a partir de uma perspectiva que leve em consideração o fato de estarmos falando de dois anos de mandato de um presidente católico, casado com uma evangélica praticante, batizado nas águas do Rio Jordão antes da  campanha que o elegeu com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e com a maior margem de votos entre o segmento evangélico da história democrática recente. 

Alinhamentos em torno de uma agenda anti-direitos

Sempre existiu uma relação, ora de competição, ora de cooperação, entre católicos e evangélicos na política institucional. No entanto, desde o lançamento do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), em 2009, iniciou-se uma maior coordenação entre católicos e evangélicos no Congresso Nacional pela “defesa da família”, com foco principal no combate à descriminalização do aborto e do reconhecimento de direitos da população LGBTQI+. 
Naquele momento, duas figuras hoje muito conhecidas da política brasileira eram as principais responsáveis por tais articulações: Damares Alves, assessora legislativa da FPE , e o então deputado federal Jair Bolsonaro, escolhido pela mesma Frente  para ser seu principal porta-voz nas audiências públicas contra o PNDH-3. Porta-voz, vale dizer, apoiado por católicos e evangélicos atuantes no Congresso Nacional. 

Não por acaso, o debate sobre os temas do PNDH-3 que geraram mais reação e resistência, dominariam as disputas nacionais seguintes (2010 e 2014). Mais perto de 2018, a aliança entre parlamentares cristãos já havia se expandido  para outras agendas como educação e segurança pública, esta última com menos homogeneidade entre os acordos.

Em estudo etnográfico para compreender as percepções políticas e as iniciativas de líderes católicos carismáticos e evangélicos pentecostais para a formação de quadros políticos no Brasil, Machado constatou que, apesar da histórica disputa por espaços de influência na política institucional, existe uma tendência de diálogo e de estabelecimento de alianças políticas entre os legisladores e assessores parlamentares de ambos os segmentos religiosos, especialmente na defesa dos valores cristãos no campo dos direitos reprodutivos, sexuais e de proteção à família. Desde 2019, entretanto, com a posse de Bolsonaro, um político tão católico quanto evangélico e que representa bem os interesses desses dois grupos, uma agenda política restritiva de direitos ganhou ainda mais força. 
 
Família, moral e políticas públicas

“O Brasil é um país cristão e conservador que tem na família sua base”. Essas foram as palavras de encerramento do discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura na Assembleia da ONU, em 2020. Embora a proteção da família e da crianças tenham previsão constitucional, sendo, portanto, algo legítimo, o discurso presidencial sintetiza a noção restrita de família defendida pelo governo e por sua base conservadora e religiosa: heterossexual, monogâmica e cisgênero. Por meio de uma atuação conjunta em diferentes esferas governamentais, uma série de políticas públicas que reforçam essa noção de família como sujeito de direitos vem sendo implementadas pelo Executivo. O Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos é um importante órgão de concretização dessas políticas. 

Um dos principais projetos e programas de destaque no Executivo é a criação do Observatório Nacional da Família (ONF), que tem como objetivo, segundo seus documentos oficiais,  "incentivar o desenvolvimento de estudos e pesquisas relacionados à temática da família, tornando-se referência para elaboração de políticas públicas voltadas à família. Busca igualmente contribuir para subsidiar políticas familiares bem como o intercâmbio e a difusão do conhecimento científico sobre a família no Brasil e no mundo". O Observatório faz parte da Secretaria da Nacional da Família, também no singular, criada no governo Bolsonaro e chefiada por Angela Gandra, membro da União de Juristas Católicas de São Paulo. Temos nesse ministério, portanto, de um lado, uma das fundadoras e expoente da Associação de Juristas Evangélicos, a ministra Damares, e, do outro, uma representante da associação correspondente no campo católico. 

A agenda de proteção de crianças e adolescentes também se organiza com foco na perspectiva da família. Analisando a agenda da ministra Damares nos primeiros 6 meses de reestruturação do Ministério, os temas prioritários foram: combate ao aborto, incluindo participação em reuniões de articulações internacionais contra o aborto, adoção, combate à pedofilia, violência contra mulher, comunidade terapêuticas e combate ao suicídio. Vale lembrar que todas essas pautas também são muito mobilizadas em igrejas e por políticos cristãos.

Já no Legislativo, dois parlamentares sintetizam a promoção dessa agenda pró-família, a partir de atuações na Comissão de Seguridade Social e Família e na Comissão dos Direitos da Mulher, espaços importantes de articulação sobre família, gênero e sexualidade. Ambos são eleitos pelo Rio de Janeiro e membros da Frente Parlamentar Evangélica: a deputada federal Flordelis (PSD/RJ) e o deputado federal Otoni de Paula (PSC/RJ). Nos primeiros dois anos da legislatura, Flordelis era titular na Secretaria da Mulher e na Subcomissão de Combate à Pedofilia, Adoção e Família e todos os nove projetos de lei e requerimentos de autoria da deputada em tramitação são sobre o tema. Já Otoni de Paula, primeiro vice-líder do Partido Socialista Cristão na Câmara, é também titular da Comissão de Educação e suplente da Comissão de Seguridade Social e Família. Seus projetos de lei e requerimentos estão relacionados a violência contra a mulher (PL 2282/2019), influência de jogos eletrônicos violentos no comportamento de crianças e adolescentes (REQ 104/2019 CE e INC 808/2019) e suspensão do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares (PDL 520/2019).

Essa reação pró-família nos poderes Legislativo e Executivo vem se aliando a outras pautas relacionadas ao conservadorismo e ao neoliberalismo. Sexismo, punitivismo, militarismo, anticomunismo e empreendedorismo passaram a convergir nesses espaços institucionais mesmo antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro. No conjunto, essas agendas sintetizariam um “novo conservadorismo”, conceito adotado por outros  estudos  que têm analisado esse processo não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. A centralidade que a reação à agenda de igualdade de gênero ganhou em diversos países - e sua relação com diferentes dimensões do neoliberalismo - é apontada como ponto articulador de forças políticas e definidor de contornos desse “novo conservadorismo” de bases religiosas.

O governo federal e as igrejas

Ao longo do último ano, representantes de grandes corporações evangélicas deram marcha à agenda do perdão da dívida das igrejas. Em setembro de 2020, uma comitiva de pastores de igrejas pentecostais e neopentecostais foi à Brasília orar pelo presidente Bolsonaro e reafirmar publicamente seu apoio. A agenda concreta dessa visita envolvia a discussão de dispositivos - inseridos no PL 1581/2020 - que perdoariam dívidas de mais de 1 bilhão de reais de igrejas com a União. A proposta foi criada pelo deputado David Soares (DEM-SP), filho do pastor R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, uma das principais devedoras na lista da União.​​ Devido à pressão da equipe econômica pelo impacto fiscal que a medida teria, após a aprovação geral da lei pelo Congresso, o presidente vetou os artigos específicos de perdão às igrejas.

Passados alguns meses, em março de 2021, a mesma comitiva voltou ao Planalto para orar pelo presidente. Nas palavras dos pastores, esse apoio renovado passa pela “abismal incompatibilidade entre a ideologia marxista [dos governos anteriores] e os princípios e valores cristãos”. Com vistas a 2022, os pastores ainda declararam: “Os evangélicos estarão com Bolsonaro, pois estamos certos de três coisas: a pauta de perversão dos costumes continuará paralisada, teremos um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal e a embaixada brasileira estará em Jerusalém". Apesar das declarações, na agenda estava, mais uma vez, o pedido de apoio ao dispositivo de perdão das dívidas das igrejas, então vetado pelo presidente. Dias após a nova visita da comitiva de pastores, a Câmara dos Deputados, presidida então por Arthur Lira (PP-AL), derrubou os vetos presidenciais, liberando anistia de  tributos devidos por igrejas para a União.

Apoio incondicional?

Mas nem tudo são flores entre políticos cristãos e o governo Bolsonaro. Basta deslocar nosso foco de observação para além dos direitos sexuais e reprodutivos para conseguir identificar conflitos entre políticos que defendem uma mesma base moral de sociedade. 

Quanto a discordâncias "intra-grupo", a própria Frente Parlamentar Evangélica é um exemplo disso. A queda de braço entre Silas Câmara e Sóstenes Cavalcanti quando da eleição pela presidência da frente, muito bem demonstrada em matéria da plataforma Religião e Poder, revela que seus interesses também são conflitantes. Em alguns casos, os membros da FPE discordam entre si sobre o apoio às pautas governamentais. O Decreto n 9.785/2019, que flexibilizou as regras para compra e uso de armas e munições, demonstra isso. Grande parte dos membros da Frente não apoia a pauta armamentista por considerá-la anti-cristã e anti-humana por se contrapor  à defesa da vida. Embora receba apoio de alguns parlamentares evangélicos, como Otoni de Paula (PSC-RJ) e Marco Feliciano (PODE-SP), outros integrantes da base do governo, como Sóstenes Cavalcanti (DEM-RJ) e o vice-líder da FPE, Cezinha de Madureira (PSD-SP), se colocam contra os decretos. Se a pauta era espinhosa em 2019, quando do primeiro decreto sobre o tema, tornou-se ainda mais em 2021, depois que Bolsonaro editou quatro decretos que ampliaram ainda mais o primeiro. Quatro dos mais de trinta projetos apresentados este ano para sustar os decretos de apoio às armas são de autoria da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que, embora não assine a composição de nenhuma das frentes parlamentares com identidade religiosa, é reconhecidamente evangélica.

Em outros casos, divergem em bloco contra o próprio governo. O Ministério da Educação, por exemplo, foi alvo de disputa desde antes da posse de Bolsonaro por ser considerado um lugar estratégico para condução da pauta moral e dos costumes. O primeiro nome, que nem mesmo chegou a ter sua indicação ao cargo oficializada, foi veementemente rejeitado por membros da FPE. Ricardo Vélez e Abraham Weintraub foram indicados pela chamada "ala ideológica" do governo e, embora ambos estivessem alinhados com a pauta dos costumes, não foram indicados pelos chamados "religiosos" da base de sustentação do governo e foram facilmente abandonados quando a substituição se fez necessária. A situação, no entanto, é bastante diferente neste momento em que o ministro é um pastor evangélico. Já a votação da Reforma da Presidência foi usada como barganha para discussão das regras tributárias aplicadas às igrejas. Nesse caso, membros da FPE acionaram seu capital político para fazer com que o Executivo discutisse uma pauta de interesse das igrejas.  

Uma outra pauta cara a Bolsonaro e rejeitada por evangélicos, incluindo a própria Damares, é a regulamentação de jogos de azar. Na fatídica reunião ministerial que culminou com a saída de Sergio Moro, a ministra se referiu à proposta de legalização de cassinos como "pacto com o diabo", quase que sepultando as chances de uma votação favorável nesse sentido.

A reação aos avanços conquistados em governos anteriores no campo dos direitos não é o único vetor da virada do Brasil à direita. Ela vem acompanhada, também, de uma habilidosa, crescente e orgânica ocupação de espaços estatais por atores com pautas religiosas. O grande problema, obviamente, não é o fato de pessoas religiosas ocuparem cargos públicos, mas, sim, desenvolverem políticas públicas orientadas por moralidades religiosas conservadoras, sem qualquer espaço para orientações contrárias. Apropriam-se da gramática cristã e até mesmo das estruturas das igrejas para colocá-las em prática. Ao longo desse texto, tivemos como intuito deslocar o foco de atenção de determinadas figuras políticas e religiosas mais midiáticas, demonstrando como esse movimento vem acontecendo de diferentes formas e é mobilizado por diferentes grupos conservadores e religiosos. Com a eleição do candidato de Bolsonaro à presidência da Câmara, os próximos dois anos podem se mostrar ainda mais desafiadores.