Políticas para as mulheres no governo Bolsonaro: notas para reflexão

Protestos de mulheres em Belo Horizonte (MG) contra a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Foto: Mídia NINJA / Cobertura Mulheres Contra Bolsonaro #EleNão

“Escolhemos uma à outra

e as fronteiras das batalhas de cada uma


a guerra é a mesma

se perdermos

um dia o sangue das mulheres coagulará

sobre um planeta morto

se vencermos

não há como saber

procuramos além da história

por um encontro mais novo e mais possível.”

(Outlines- Audre Lorde)[1]

Analisar as questões relativas aos direitos das mulheres no atual contexto não é tarefa simples, pois não bastassem às imensas dificuldades de vivermos sob um governo de extrema direta - e, portanto, completamente oposto aos sentidos das nossas lutas - nos encontramos no já longo tempo da trágica pandemia do Covid 19, uma vivência inédita, dolorosa, difícil e que nos afeta em todas as dimensões das nossas existências individuais e coletivas, inclusive na capacidade de pensar. Digo isso porque o ato de pensar requer de nós horizontes mínimos de futuro, um tempo, um lugar, um modo de vida que represente o nosso ponto de chegada. Ou nas palavras de Lorde o “encontro mais novo e mais possível”.

A sensação cotidiana que já estamos em “um planeta morto” por vezes nos paralisa de tal maneira que o correr dos dias parece ser apenas a coagulação eterna do mesmo instante. Contudo, um olhar mais atento nos faz defrontar com a perversidade da permanência agravada das estruturas das desigualdades na sociedade brasileira, na qual são negadas para grande maioria da população todas as possibilidades do cuidado, proteção e segurança que o enfrentamento da pandemia exige. Seguimos no Brasil reiterando a negação de existências, seguimos vivendo sob o signo da morte em suas dimensões concretas e simbólicas.

E essa tragédia nossa de cada dia foi, e segue sendo, agravada pelos modos como o governo federal vem lidando com a pandemia. Por vezes pode até parecer estranho afirmar que há algum tipo de ação pública sendo realizada por tal esfera de governo, entretanto, a estratégia do bolsonarismo – aqui colocado como sinônimo do conjunto da extrema direita brasileira - faz da dimensão ideológica o lugar por excelência da sua ação. Ou seja, não é apenas acaso, incompetência, estupidez, incapacidade de gestão, mas sim um projeto político que orienta toda lógica da intervenção do governo federal, como poderemos constatar também na análise relativa aos direitos das mulheres nos últimos dois anos.

Antes de iniciarmos a análise é importante destacar que, em que pese histórica luta dos movimentos de mulheres no Brasil, nunca tivemos um amplo conjunto de direitos assegurados, tanto no sentido de que há poucas legislações e/ou políticas públicas específicas, quanto pelo fato de que mesmo os diretos que estão garantidos pela lei não são efetivamente usufruídos pela grande maioria das mulheres.

Aqui o exemplo mais evidente é em relação à trabalhadora doméstica, pois só em 2013, através da denominada PEC das domésticas, é que se tornou legalmente estabelecido que essas trabalhadoras tivessem os mesmos direitos que as/os demais trabalhadoras/es brasileiras/os. Uma sociedade que assegurou tais direitos a menos de uma década é, sem sombra de dúvidas, uma sociedade profundamente racista e patriarcal! Dados de pesquisa do Ipea (2019)[2] indicam que apenas 28,3% das pessoas que estão no emprego doméstico tinham carteira de trabalho assinada. Nunca é demais destacar que essa categoria profissional é a que ocupa mais mulheres no Brasil, formando um contingente de 5,7 milhões de mulheres, sendo que destas 3,9 milhões são negras.

Não por acaso as empregadas domésticas foram um dos segmentos profissionais mais impactados pela pandemia, tanto em função da pressão para que continuassem trabalhando mesmo nos momentos de fechamento de todas as atividades não essenciais- o que provocou a contaminação e morte de trabalhadoras e suas famílias- quanto por terem sido dispensadas de seus trabalhos, perdendo assim a remuneração já escassa. Essa segunda situação atingiu grande parte das diaristas que são o segmento com menor índice de carteira assinada, apenas 9,7% do total.

No campo dos direitos sexuais e reprodutivos os avanços em relação à liberdade e autonomia das mulheres ainda são mais raros e aqui não é preciso dizer muito, basta constatar que a legislação sobre o aborto ainda é a mesma de 1940, havendo apenas dois permissivos legais para a interrupção de uma gravidez, além da jurisprudência, criada no começo da segunda década dos anos 2000 a partir de posicionamento do Supremo Tribunal Federal, para os casos de fetos com anencefalia. É importante ressaltar, contudo, que algumas portarias e normas técnicas do Ministério da Saúde têm sido um campo importante de conflitos- seja no sentido da qualificação positiva dos processos de atendimento, seja no sentido da restrição de direitos- como veremos mais adiante.

O enfrentamento à violência contra as mulheres, diferente dos dois campos acima destacados, tem tido na última década avanços legislativos importantes como são os casos da Lei Maria da Penha (criada em agosto de 2006) e a Lei do Feminicídio (criada em março de 2015) e é interessante constatar que o atual o governo federal tem incidido nessa esfera com uma frequência considerável.

Por isso, tomaremos as alterações legislativas do atual governo no tocante ao enfrentamento a violência contra as mulheres como ponto de partida para compreender a premissa que fundamenta a presente análise: é no campo ideológico que se constroem e aprofundam os riscos e ameaças aos direitos das mulheres.

De acordo com informações do site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, do início de 2019 a abril de 2020, o governo aprovou 14 mudanças legislativas relacionadas aos direitos das mulheres, sendo 08 alterações na Lei Maria da Penha. As seis restantes se referem ao auxílio emergencial para mulheres provedoras de famílias monoparentais de R$1.200,00; a garantia de realização de mamografias para prevenção do câncer de mama no SUS; a política de desenvolvimento e apoio às atividades das marisqueiras; o direito das mães amamentarem filhos/as durante a realização de concursos públicos; a ampliação das restrições ao casamento infantil; e a instituição da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente.

As alterações na Lei Maria da Penha ainda que relativamente numerosas não produziram modificações substanciais, nem restringiram ou ameaçaram os direitos das mulheres. As alterações foram: a notificação compulsória nos casos de suspeita de violência doméstica em atendimentos no serviço público de saúde; permissão para que a autoridade judicial ou policial requeira medidas protetivas para mulheres em situação de violência e registro da medida protetiva no banco de dados do Conselho Nacional de Justiça; garantia de matrícula de filhos/a de mulheres em situação de violência em escolas próximas da nova residência mesmo na ausência de vagas; agilização de processos de divórcio para mulheres vítimas de violência; obrigatoriedade para inclusão da informação sobre a mulher vítima se violência ser portadora de deficiência.

Duas outras alterações se referem ao agressor e têm elementos um tanto quanto polêmicos e que revelam nas suas lógicas, diretrizes mais amplas das concepções ideológicas do bolsonarismo, dado que em uma delas se estabelece como medida protetiva de urgência a frequência do agressor a centro de reabilitação, enquanto a segunda responsabiliza o agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados à saúde da vítima no serviço público, bem como com relação aos dispositivos de segurança por ela utilizados. No caso dos centros de “reabilitação” o que está em jogo são as comunidades terapêuticas notadamente de cunho cristão fundamentalista e conservador que são extremamente valorizadas pelo governo federal, notadamente pela ministra Damares Alves. Já a obrigatoriedade do ressarcimento vai de encontro à obrigação do Estado em cuidar e proteger as vítimas de violência, além de instituir a cobrança de serviços públicos que devem ser gratuitos e universais.

À primeira vista, além das duas observações acima destacadas, não haveria grandes problemas nas ações do governo federal com relação aos direitos das mulheres, parecendo que não houve inclusive mudanças significativas quando comparadas com processos anteriores. Mas tal percepção não se sustenta além da mera aparência, pois todas as ações governamentais, desde a formação do próprio ministério que é responsável por esse campo de direitos, já assinalavam o sentido ideológico forte a partir do qual se estruturariam as ações voltadas para as mulheres: antes da nomeação de uma pastora houve a inclusão do termo “família” na definição do ministério e isso diz tudo. Diz muito.

É sempre bom recordar que diferentemente de outros processos de dominação e exploração- como é o caso da brutalidade das estruturas racistas não abre espaço para positivações das populações negras - a estrutura patriarcal da nossa sociedade opera criando imagens, ideias sobre as mulheres boas, as que têm valor, as que devem ser protegidas e cuidadas. As outras todas que diferem dessas imagens e, mais ainda, as que recusam tais imagens não são sequer consideradas mulheres e por não serem a solução é ou tentar “convertê-las” ou excluí-las das possibilidades de existência com dignidade e direitos. Não preciso dizer que a “mulher” a ser protegida e cuidada é branca, cisgênera, heterossexual e que deve ser mãe. Como decorrência, o lugar por excelência para a mulher é a família, seu ponto de partida e de chegada.

Assim sendo, a inclusão do termo família na nomeação do ministério não é um significante qualquer, um adendo sem muita intencionalidade (como evidentemente é a expressão direitos humanos presente no mesmo título), é o eixo pelo qual se travará toda a disputa discursiva e prática da estratégia do governo Bolsonaro destinada às mulheres. Dentro dessa lógica restrita de “valorização” das mulheres não teria como não haver algum nível de atuação relacionado ao enfrentamento da violência contra as mulheres até mesmo porque esse é um problema considerado de alta gravidade pela quase totalidade da população feminina, entretanto, há algumas sutilezas que demonstram o peso conservador e opressor da estratégia.  Um exemplo nítido foi o mote da campanha, lançada em julho de 2020, no contexto do agravamento dos casos de violência contra as mulheres. Vejamos o que ele diz: “Denuncie a violência doméstica. Para algumas famílias o isolamento está sendo ainda mais difícil”.

O que chama a atenção é que a palavra mulheres está ausente do slogan, deslocando o sofrimento produzido pela violência para as famílias. E mais ainda, de acordo com Cibely Silva e Jorge Henrique Barbosa[3], durante o lançamento da campanha a ministra Damares Alvez afirmou que as peças publicitárias incluíam também imagens de agressoras, ressaltando que é necessário lembrar que a mulher também pratica abusos sexuais. Silva e Barbosa apontam ainda que “o presidente Bolsonaro nem chegou a falar durante a cerimônia, mas a ministra se referia a ele como aquele que autorizou tudo, que mandou resolver os problemas detectados e ao final, na curta fala da primeira dama a primeira oração proferida é ‘bom dia, marido!’, seguida de um sorriso.”

A estratégia ideológica do governo federal empurra as mulheres para o lugar de desimportância como existência em si, reforçando, quando parece combater, as práticas patriarcais que fizeram com que os índices de feminicídios não parassem de crescer nos últimos meses. Não há um dia sequer que não vejamos notícias de assassinatos e violências diversas nos principais veículos de comunicação. Um aparente paradoxo, pois enquanto a morte de mulheres, os abusos e assédios se tornam motivos de denúncias fortes, de mobilização intensa das mais diversas movimentações de mulheres, o governo gera discursos e imagens que em realidade antagonizam com exatamente tais movimentações e não com os violadores dos direitos das mulheres! Aparências, nada mais.

Do nosso ponto de vista há um equívoco nas análises que afirmam ser a ministra Damares uma peça quase folclórica do governo, sendo suas declarações uma espécie de cortina de fumaça para “distrair” a sociedade do que efetivamente interessaria o governo. Acreditar em tais versões é não entender o quanto as dimensões “morais”, patriarcais e racistas são fundamentais no projeto político de longo prazo da extrema direita brasileira, pois são exatamente tais dimensões que produzem a legitimidade que o sustenta. Não nos enganemos, não são as frases tolas como “menino veste azul e menina veste rosa” que definem as ações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pois basta uma rápida olhada no site do mesmo para nos defrontarmos com os caminhos muitas vezes discretos e, mais uma vez, aparentemente inofensivos, através dos quais a estratégia conservadora e antagônica aos direitos das mulheres vem se estruturando.  Um simples exemplo: um dos programas do MMFDH se intitula “Município Amigo da Família” e tem como objetivo “implementar nos municípios ações que valorizem a família, a proteção social e o fortalecimento de vínculos conjugais”.

Sim, o governo Bolsonaro tem uma política pública para fortalecer os vínculos conjugais! E, por decorrência óbvia, as famílias monoparentais chefiadas por mulheres não se enquadram nas lógicas de tão estranho programa. Não bastasse o fato de que os tais vínculos conjugais sejam muitas vezes um dos fatores causadores da violência doméstica, os arranjos domiciliares que apresentam os maiores índices de pobreza são aqueles formados por mulheres negras sem cônjuge e com filhos/as menores de 14 anos. Segundo o IBGE[4] em 2019 “24% dos moradores desses arranjos familiares tinham rendimentos domiciliar per capta inferior a US$ 1,9 e 62,4% inferior a US$ 5,5”. Mas segundo o pensamento da ministra Damares “o Brasil só conseguirá buscar o desenvolvimento se investir em ações e políticas públicas voltadas ao fortalecimento dos vínculos conjugais”[5] e, portanto, de acordo com essa lógica estúpida do governo Bolsonaro a situação de pobreza a que as mulheres negras estão submetidas não é resultante das estruturas brutalmente desiguais de raça, gênero e classe, mas sim pelo fato de que essas mulheres não têm maridos!

Se a centralidade da família nos discursos e práticas do governo federal aprofunda as relações de opressão e submissão das mulheres, o campo dos direitos sexuais e reprodutivos segue constantemente minado na tentativa de impedir quaisquer avanços, por mínimos que sejam. Aqui, evidentemente o tema do aborto ocupa um lugar estratégico.

Recentemente, no dia 27 de outubro de 2020, o governo Bolsonaro lançou o decreto “Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031”. Do ponto de vista prático, no sentido da elaboração de políticas públicas, o documento não tem nenhum efeito diferente de tudo o que conhecemos e sequer tem força de lei, é apenas “um museu de grandes novidades” que aponta diretrizes, desafios e metas. Contudo, chama a atenção de que no Eixo Social, em um de seus desafios, “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, esteja a diretriz: “promover o direito à vida, desde à concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”. A reiteração constante da defesa da vida associada à concepção e sendo definidora da efetivação dos direitos humanos não é apenas uma retórica vazia, mas um posicionamento profundamente ideológico do projeto político de longo prazo não apenas para as ações governamentais, mas para a sociedade brasileira e em articulação forte com a extrema direita global.

Não há novidade alguma no fato de que o aborto legal seja o terreno no qual se dão as principais disputas e ofensivas em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, na medida em que aqui o controle patriarcal dos corpos e desejos das mulheres, ao se ancorar na confluência de pressupostos religiosos com a imputação de um crime (demonstrando que o negacionismo em relação à ciência não começou em 2020) adquire a aparência de um “bem maior”. Além disso, muitas das dimensões relativas às questões sexuais e reprodutivas requerem transformações no terreno das dinâmicas sociais, ou seja, novamente no campo ideológico. Já o direito ao aborto, sua expansão ou restrição, requer ações legislativas, jurídicas e de normatização dos serviços de saúde.

Assim sendo, não é de se estranhar que até setembro de 2020 a Câmara Federal tenha recebido 22 projetos de lei que tratam do aborto, um aumento da ordem de 83% em relação ao mesmo período de 2019, e destes 16 são formulações de deputados/as que pretendem restringir ainda mais as já mínimas possibilidades de aborto previsto em lei. Não por acaso 08 projetos foram protocolados após o grave e violento caso da criança de 10 anos, que teve seus direitos violados tanto pelo serviço público de saúde, quanto pela Justiça do Espírito Santo.

A trágica história dessa menininha foi construída durante todos os dias de sua vida, pelos impactos violentos das estruturas das desigualdades de raça, gênero e classe no seu corpo e possibilidades de existências. E o governo federal, a partir da atuação ativa e perversa da ministra Damares, fez tudo para lhe retirar o direito de realizar o aborto previsto em lei já que era uma gravidez resultante de um estupro, agravada pelo fato de ser ela uma criança de 10 anos.

Como a macabra manobra não teve o resultado esperado - em função da articulação ágil, eficaz e política de movimentos de mulheres e profissionais de saúde comprometidas/os com as lutas dos direitos das mulheres - as forças obscuras e fatais da extrema direita brasileira e sua representação no governo federal seguiram em suas estratégias, dessa vez mais discretas, incidindo para dificultar o acesso ao aborto legal. Isso foi feito através da portaria 2282, de 27 de agosto de 2020 (dias após o caso da criança de 10 anos), do Ministério da Saúde que obrigava o serviço de saúde a oferecer para a mulher em situação de abortamento legal a ultrassonografia do feto como uma das etapas do procedimento. Além disso, obrigava também, como um passo necessário à realização do procedimento que profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento notificassem à autoridade policial os casos em que a gravidez foi resultante de estupro.

Em função da crítica e mobilização de amplos setores da sociedade brasileira ao conteúdo da portaria, em especial o constrangimento violento às mulheres em terem que olhar um ultrassom, a mesma foi revogada, mas imediatamente outra foi criada, com a exclusão da apresentação do exame de imagem, mas mantendo a notificação obrigatória à autoridade policial, notificação esta que além de ir contra a autonomia das mulheres em decidir ou não pela denúncia, pode ter o efeito de afastar as mulheres que temem por suas vidas, caso a autoridade policial seja notificada.

Longe de ser um caso isolado, a difícil experiência de uma menina de 10 anos trouxe para cena pública não só os modos de ação do governo federal, mas também o quão longe ele pode ir para atingir seus objetivos, pois menos que impedir a realização de um aborto legal a ministra Damares buscava um caso paradigmático para ser utilizado em sua cruzada conservadora, construindo uma narrativa de “conversão” pela fé, ao demonstrar que mesmo uma gravidez resultante de violência sexual contra uma criança poderia gerar algum tipo de “família fortalecida e harmônica”. Isso confirma que atuar através de estratégicas ideológicas, mais do que a ação direta na produção de leis ou políticas públicas, traz vantagens táticas importantes na medida em que podem ser desenvolvidas de modo independente, sem negociar com outros sujeitos políticos, como também por permitir agilidade nas disputas nos campos discursivos e na difusão de sua mensagem em contraponto às ações e mobilizações dos vários movimentos e segmentos sociais.

Desta vez, felizmente, a estratégia deu errado, por muitos motivos, desde a desmedida da crueldade dos atos da ministra e suas alianças, passando pela utilização de recursos totalmente ilegais para tentar evitar a aplicação de um direito garantido, mas principalmente pela ação dos movimentos de mulheres e suas alianças. E tal ação também foi paradigmática das estratégias de resistência à perda de direitos ao demonstrar não só a capacidade rápida de reação, mas também a importância das apostas de longo prazo em sensibilizar e construir articulações com setores fundamentais para a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos.

A garantia dos direitos da menininha só foi possível porque desde os anos 1990 o movimento feminista desenvolve uma estratégia consistente de formação de profissionais de saúde para o atendimento dos casos de abortamento. Um trabalho intenso, cotidiano que se baseia não apenas nas dimensões técnicas e legais, mas principalmente na reflexão sobre as desigualdades de gênero e seus efeitos perversos na vida das mulheres. Uma aposta de longo alcance que possibilita que todos os dias mulheres tenham seus direitos assegurados.

A menininha só pode ter novas possibilidades de existência porque organizações e coletivos de mulheres, tanto no Espírito Santo quanto em Pernambuco, atuou agilmente em rede e de modo incrivelmente estratégico para criar condições de segurança e cuidado para que ela pudesse exercer o seu direito, tanto no momento da transferência de um estado para ou outro, quanto na mobilização na frente do serviço de saúde pernambucano para conter mais uma violência perpetrada por supostos/as defensores/as da “ da família” contra uma criança.

Em síntese, a resistência às políticas de morte do governo federal se faz no cotidiano, em estarmos atentas e fortes, ou nas palavras de Audre Lorde, “significa trabalhar ativamente pela mudança, às vezes sem nenhuma garantia de que ela esteja a caminho. Significa fazer o trabalho tedioso e nada romântico, ainda que necessário, de formar alianças relevantes, significa reconhecer quais alianças são possíveis e quais não. (...) Significa combater o desespero”.

 

 

[1] LORD, Audre. Irmã Outsider. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.

[2] RIBEIRO, Luana; LIRA, Fernanda; REZENDE, Marcela; FONTOURA, Natália. Os desafios do passado no trabalho doméstico: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínua. In: Textos para Discussão, n. 2528, nov. 2019, Ipea, Rio de Janeiro.

[3] SILVA, Cibely Eugênia & BARBOSA, José Henrique. Análise do discurso oficial de lançamento da campanha do governo Federal contra a violência doméstica no contexto da pandemia do covid-19. In: Revista Espaço Acadêmico, n 224, set/out 2020.

[4] IBGE- Síntese de Indicadores Sociais: uma análise da população brasileira 2019. Rio de Janeiro, IBGE, 2019.