Uma Vila que existe porque resiste e insiste

Vila Autódromo
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Comunidade está vivendo entre entulhos

O caso da Vila Autódromo é um tema que em nada reflete o espírito olímpico e que ganha cada vez mais espaço na cobertura mundial dos jogos de 2016, que acontecem daqui a quatro meses no Rio de Janeiro. Apenas chegar à Vila já é considerado um desafio. O acesso a comunidade, que fica em Jacarepaguá, zona Oeste do Rio, está camuflado entre canteiros de obras e é preciso praticamente inventar um caminho para avistar a placa que dá as boas-vindas à comunidade. Compondo este cenário, há na Vila algumas poucas casas espaçadas, ruínas, entulhos, grande movimentação de veículos de grande porte usados nas obras locais, tudo isso na vizinhança de uma construção de um moderno hotel cinco estrelas.

No último sábado (27/2), cerca de 300 pessoas entre estudantes, pesquisadores, políticos, integrantes de movimentos sociais e ONGs aceitaram o desafio de chegar à comunidade para acompanhar o lançamento da quinta versão do Plano Popular da Vila Autódromo, uma proposta de desenvolvimento urbano, econômico e cultural para garantir condições de moradia e acesso a serviços públicos às 50 famílias que querem continuar a viver no local, apesar de toda pressão e precariedade decorridas das remoções iniciadas em 2014, quando haviam 500 casas no local. O deslocamento das famílias que vivam ali inicialmente foi justificado pela construção do Parque Olímpico

Essas pessoas e outras continuam mobilizadas agora pessoalmente na comunidade ou virtualmente pelas redes sociais, já que foi autorizada judicialmente a imissão de posse da casa de Maria da Penha Macena (50), uma das lideranças locais, o que quer dizer que a qualquer momento um mandado pode ser emitido e mais uma pilha de escombros, do que um dia foi uma moradia, será criada na Vila Autódromo. Perguntada sobre da onde vem a força para superar todos os problemas e seguir morando ao meio dos escombros das casas dos ex vizinhos, Penha diz primeiro que vem de Jesus e depois de "acreditar que temos direito de estar aqui e de ser informados do que acontece com a nossa comunidade."

O Plano popular

O direito de permanecer na comunidade e a reivindicação para que a área fosse urbanizada fez com que os moradores ganhassem como aliados o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ) e o Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense (Nephu/UFF), que os assessoraram na construção do Plano Popular da Vila Autódromo - Plano de Desenvolvimento Urbano, Econômico, Social e Cultural. A nova proposta lançada é a quinta atualização, que foi ajustada de acordo com o andamento do conflito.

A primeira foi lançada em 2012 e premiada com o Urban Age Award, prêmio da Alfred Herrhausen Gesellschaft do Deutsche Bank, em parceria com a London School of Economics, de USD$80mil, planejado para ser usado na construção de uma creche comunitária. 

Segundo o professor da UFRJ Carlos Vainer, o plano é uma criação coletiva dos moradores com a assessoria dos professores e estudantes. Os moradores que decidiram os objetivos e quais mudanças gostariam no espaço. Além disso, o documento é a expressão da resistência que afirma o direito a permanência. Para o professor, o hotel que está sendo construído ao lado da comunidade não deseja ter como vizinho os moradores da Vila, mas a comunidade quer se integrar a cidade. "O plano popular no ensina que há um enorme saber nas camadas populares, um saber revolucionário. A vila existe por conta dos moradores", afirmou Vainer, durante o evento de lançamento.

Sobre a união de professores e estudantes com os moradores, o deputado federal Chico Alencar (Psol), que esteve no lançamento do plano e declara apoio a causa da Vila Autódromo, acredita que se trata de "uma aliança  bonita, que reúne saberes e fecunda a terra para uma outra cidade." Esta seria uma das explicações para a importância do caso da Vila na luta pelo direito à cidade, segundo Alencar.

O plano prevê a construção de creche, áreas de espaço multiuso, espaços para recreação, centro cultural, horto comunitário e local para reciclagem de resíduos. Além disso, é incluída a necessidade de regularização dos serviços públicos, a instalação de redes de água, esgoto e drenagem.

Segundo o documento do plano, o saneamento básico é a principal demanda para o projeto de urbanização. Não existe atendimento por rede pública de água e de esgotamento sanitário. A infraestrutura atual foi instalada pelos próprios moradores e o problema com a água se agravou  devido à ruptura das tubulações existentes, causada pelo intenso tráfego de veículos a serviço das obras do Parque Olímpico, e às demolições das casas removidas.

Segundo a pesquisadora da UFF, Regina Bienenstein, este plano mostra que é possível urbanizar a área. A professora lembrou que não existem justificativas técnicas que afirmem que a Vila não pode permanecer onde está. Ao longo de 20 anos foram usados sete argumentos para explicar porque a comunidade deveria ser removida.

 

Vila e rede mobilizadas

Diversas ações estão sendo promovidas para pressionar pela urbanização da comunidade. As ações tem se baseado na afirmação do prefeito Eduardo Paes que disse que aqueles que desejam permanecer na Vila, poderão ficar.  Nesse sentido está em curso a campanha "#urbanizajá", na qual pessoas perguntam ao prefeito, em vídeo, "quando a Vila Autódromo será urbanizada?" Diversas pessoas se juntaram à campanha, entre elas atores como Camila Pitanga, Gregório Duvivier e o deputado Marcelo Freixo (Psol). O pedido de urbanização da Vila também pode ser feito através da ferramenta Panela de Pressão da ONG Meu Rio. Além disso, a mobilização Ocupa Vila Autódromo está promovendo diversos eventos na comunidade. No dia 5 de março, a professora de arquitetura e urbanismo da USP, Raquel Rolnik, lançará seu livro "Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças" na comunidade.

Prefeitura campeã em remoções

O caso da Vila Autódromo simboliza o recorde de remoções da história da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com informações da Secretaria Municipal de Habitação (SMH), reunidas no livro "SMH 2016: remoções no RJ Olímpico", publicado pela Mórula com apoio da Fundação Heinrich Böll, entre 2009 e 2013, 20.299 famílias, o que corresponde a cerca de 67 mil pessoas, perderam suas casas por determinação da Prefeitura. A justificativa são as recentes intervenções urbanas, como as vias para o BRT, e localização das casas em zonas de risco. Os números ultrapassam os dos governos de Carlos Lacerda (1961-1965; 30 mil remoções) e de Pereira Passos (1902-1906; 20 mil remoções).

Na Vila as últimas remoções aconteceram no dia 25 de fevereiro e causaram grande impacto emocional na comunidade. A sede da associação de moradores, além da casa e também do terreiro de candomblé de Heloísa Helena Costa Berto, a mãe de santo Luizinha de Nanã, foram demolidas. Heloisa Berto contou que o juiz deu autorização para a derrubada de sua casa cerca 23:30h da terça-feira e sua casa foi demolida no dia seguinte. Ela disse que foi ofendida pelas funcionárias que estavam conduzindo a demolição, o que foi gravado pela repórter da Pública Mariana Simões. "Disseram que as minhas coisas iam ser consideradas lixo, foi uma coisa horrível", lamentou a mãe de santo. Segundo Heloísa, que tem quatro filhos, dos quais três assistiram a demolição da casa, o processo de indenização está sendo negociado com ajuda da Defensoria Pública.

 

As remoções na comunidade começaram em 2014, em março daquele ano 200 moradores aceitaram a proposta de prefeitura de se mudarem para apartamentos no Parque Carioca. O conflito se estendeu e em junho de 2015 oficiais de justiça, escoltados pela Guarda Municipal, foram para a comunidade para remover uma casa sem aviso prévio. Os moradores protegeram a residência e os guardas municipais avançaram com violência deixando feridos. A demolição foi impedida. Segundo o documento com o plano popular, a Guarda Municipal é acusada de presença ostensiva,que desviando-se de suas funções, impede a circulação livre dos moradores.

Origem da Vila e histórico do Conflito

Uma ocupação de pescadores e população de baixa renda às margens da Lagoa de Jacarepaguá que se iniciou há cerca de 30 anos explica a origem da Vila Autódromo. A Associação de Moradores, Pescadores e Amigos da Vila Autódromo foi criada nos anos 80 para reivindicar infraestrutura e investimentos públicos, mas alguns anos seguintes a Prefeitura do Rio de Janeiro iniciou as tentativas de remover a comunidade utilizando como primeiro argumento o de que a comunidade estaria causando dano “estético, ambiental e paisagístico,” segundo Giselle Tanaka, urbanista e uma das assessoras do plano popular, em artigo publicado aqui no site da Fundação Heinrich Böll. Na gestão do prefeito César Maia foram concedidos incentivos para a valorização desta área da zona Oeste, tendo como subprefeito da região o atual prefeito Eduardo Paes. A mobilização da comunidade com a defensoria pública na época e outros apoiadores manteve a permanência.

 

A nova onda de pressão para a remoção foi reiniciada com o anúncio dos projetos de intervenções na região. Assim, desde 2011 até agora a negociação com a prefeitura para que a comunidade permanecesse passou por várias reviravoltas. O prefeito chegou a dizer que a comunidade poderia ficar se houvesse uma alternativa em relação a construção do Parque Olímpico. Este foi incentivo para que os moradores se aliassem às universidades e fizessem o Plano Popular. Outro momento de esperança de fim do conflito aconteceu com as mobilizações de junho de 2013, quando milhares de brasileiros foram às ruas para reivindicar direitos. As manifestações das ruas fizeram com que a prefeitura passasse a dar respostas sobre as remoções e mais uma vez houve uma rodada de negociações entre a comunidade e as autoridades, que foram, no entanto, encerradas bruscamente, conta Tanaka.

A Fundação Heinrich Böll apoia o Ettern no projeto de assessoria a comunidade Vila Autódromo