Por um Brasil Agroecológico - III ENA

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Mesa de Abertura do III ENA
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Mesa de Abertura do III ENA

A diversidade e a alegria marcaram o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Juazeiro (BA). Mais de duas mil pessoas de todo o Brasil debateram “Por que interessa à sociedade apoiar a agroecologia”, tema mobilizador das atividades, entre os dias 16 e 19 de maio. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), uma rede de organizações sociais do campo brasileiro, foi a realizadora do evento. Ao final entregaram ao ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, uma carta política com as reivindicações do movimento.
O III ENA é fruto de um processo mobilizador que se espalhou pelo país em meados de 2013, através das Caravanas Agroecológicas e Culturais, cujos 14 territórios visitados se expressaram na programação do encontro. Seminários temáticos também trouxeram à tona questões essenciais para o avanço da agroecologia no Brasil, resgatando as negociações da sociedade civil com o Governo Federal no processo da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, instituída no dia 20 de agosto de 2012. O Ano Internacional da Agricultura Familiar em 2014 também faz parte desse contexto.
O público composto por 70% de agricultores (as) e 50% de mulheres, além de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, dentre outros setores da sociedade, promoveu uma intensa troca de experiências em defesa de outro modelo de desenvolvimento ao país. “Cuidar da terra, alimentar a saúde e cultivar o futuro” foi o lema do encontro, que contou com a participação de diversos artistas representando as raízes da cultura brasileira e teve como atração principal Targino Gondim, músico famoso da cidade.
“Para alguns o lema pode ser apenas conseguir um alimento mais saudável para sua saúde, para outros o cuidado com a mãe terra, a água, o ar, a biodiversidade, cultura, autonomia dos territórios e por aí vai”, disse Noemi Krefta, do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), que representou a ANA na mesa de abertura. Segundo a agricultora, o objetivo do III ENA foi destacar as experiências agroecológicas espalhadas pelo país. “Trazem um enfrentamento organizado no partilhamento das sementes, nas plantas medicinais, no alimento saudável e lutas pela preservação da água e ambiente, além da luta contra os agrotóxicos e transgênicos, etc. A valorização das identidades nos territórios, a agroecologia como projeto de país, uma forma de vida”, concluiu.


Carta Política e reação do governo
Antes da mística de encerramento, que ocorreu às margens do Rio São Francisco, repleta de músicas, confraternizações e benzedeiras, houve a entrega da Carta Política do III ENA ao Ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República. O documento foi construído coletivamente, fruto dos relatórios e discussões das atividades programadas, e refletiu o Brasil Agroecológico almejado pela diversidade de movimentos da ANA. Apresenta respostas às crises atuais que a sociedade enfrenta, e a agroecologia como opção estratégica cada vez mais compreendida e difundida por diversos setores da sociedade.
O direito ao acesso a terra e ao território aparece como a principal necessidade das diferentes identidades étnico culturais rumo às mudanças estruturais que viabilizam a ampliação de escala das experiências agroecológicas. O repúdio aos transgênicos foi ovacionado pela plenária: “Dinheiro público não deve ser usado para compra de sementes transgênicas”, diz a carta aplaudida por todos. Os grandes mercados alimentícios, o monopólio da comunicação, dentre outras formas hegemônicas que compõem o agronegócio no país em aliança com o Estado Brasileiro, estão sendo rompidos graças às mobilizações da sociedade civil.
“O agronegócio constitui hoje o principal obstáculo para a agroecologia, e está cada vez mais clara a incompatibilidade de convivência desses modelos. O Brasil não pode continuar sendo o maior consumidor de agrotóxicos no mundo”, afirma a Carta. Os participantes do III ENA reivindicaram o fim da pulverização aérea e o banimento de agrotóxicos proibidos em outros países, devido aos muitos casos de intoxicação, câncer, suicídios, alterações hormonais, impactos ao ambiente etc.
O acesso e gestão das águas foi outra pauta, dentre outras, destacando não só a sua essência de bem comum público, mas também denunciando os projetos que vêm impactando diversas populações. Por outro lado, políticas públicas de estocagem de água, como as cisternas de placa no semiárido brasileiro em parceria com a sociedade civil, foram elogiadas.  O projeto de perímetro irrigado na Chapada do Apodi, que prejudica a vida de milhares de famílias no Rio Grande do Norte e Ceará, foi mais uma vez contestada: “Fomos completamente expulsos das nossas terras. Tivemos em Brasília duas vezes, mas as promessas nunca foram cumpridas. O governo nos garantiu que o projeto seria revisto. Por que para o agronegócio tudo sai rápido e para a agricultura familiar só chega destruição e veneno?”, criticou Francisco Neto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores (as) Rurais de Apodi (RN).
Também foram entregues ao governo diversas moções, dentre elas a dos povos indígenas com a assinatura de lideranças de quinze etnias. De acordo com o indígena Leosmar Terena, do Mato Grosso do Sul, para os povos tradicionais a agroecologia é algo muito mais amplo que a dimensão econômica, ambiental e social: um modo de vida cujo sistema fortalece a relação do ser humano com o passado e sua relação com o futuro, se preocupando com as próximas gerações. “Reforçamos a agroecologia como a única saída para a sociedade, acima de tudo um modo de vida. A agroecologia indígena é pensada no sentido da sustentabilidade em todas as suas dimensões, é o fortalecimento de valores tradicionais, de humanidade e solidariedade”, explicou.
Segundo o Secretário Nacional da Agricultura Familiar, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Valter Bianchini, a presidente Dilma lançará novidades nas políticas de crédito, de forma a atender melhor a agricultura familiar. Contraditoriamente aos compromissos firmados, foi anunciado pelo governo ao agronegócio R$ 136 bilhões no Plano Safra de 2014/2015. Para efeito de comparação, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica prevê R$ 8,8 bilhões, o equivalente a menos de 10% dos recursos destinados ao modelo hegemônico.
“Temos até 2015 para universalizar a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) a todos os agricultores que estão na agroecologia. Com as chamadas vamos iniciar um programa de construção do conhecimento, redes de agroecologia, mais de dois mil técnicos e uma rede de pesquisadores. Queremos horizontalizar os conhecimentos, rumo a um modelo que será responsável pela segurança alimentar”, disse.
O ministro Gilberto Carvalho recebeu a carta dos movimentos afirmando que as propostas do campo agroecológico integram um programa de governo. Segundo ele, o atual modelo de desenvolvimento está esgotado por ser baseado no consumismo e em princípios mortais para o futuro da humanidade e precisa ser revisto corajosamente.“É um novo modelo de sociedade que precisamos implantar. Esse encontro, de alguma forma, prefigura o modelo de sociedade que sonhamos(...) Vocês falam da relação com a natureza, o alimento, a saúde, o ambiente e as pessoas”, destacou
Mas sem uma reforma política essa carta, que o ministro se comprometeu a entregar à Presidenta Dilma, não se tornará realidade, complementou. Para ele, as propostas são de uma grande bondade, mas ainda não representam a maioria “A vanguarda precisa fazer uma estratégia de maiorias. Sem a reforma política essa carta não vai se tornar realidade, não há correlação de forças hoje para isso. Nas questões estruturais, enquanto houver a bancada dos latifundiários como maioria no Congresso Nacional, não conseguiremos avançar”, ressaltou.


Atos públicos
Foram realizados quatro atos públicos no último dia (19) para dialogar com a população local e pautar a imprensa nacional e regional. Ocorreram em lugares e momentos diferentes até se concentrarem na ponte que liga Juazeiro (BA) a Petrolina (PE), onde o trânsito foi interrompido durante quase uma hora e um painel de 8m de altura por 12 de largura pendurado: “Agrotóxicos e transgênicos matam. Apoio a agroecologia por uma vida saudável no campo e na cidade”, denunciava. “Essa é uma causa que a gente abraça pela libertação de um povo explorado por um sistema político dominante. Nós trabalhadores rurais precisamos lutar, nos unir contra um modelo de agricultura que só visa o lucro”, afirmou Miraci da Silva, 61 anos, agricultora do Mato Grosso.
O momento mais emocionante foi quando as cerca de 300 mulheres chegaram do ato que organizaram na porta da Embrapa Semiárido em Petrolina (PE), e se uniram ao protesto. Elas haviam entregado ao chefe-geral do Centro de Pesquisa Agropecuária do Semiárido, Pedro Gama, uma carta com as reivindicações do movimento. Mais cedo um grupo menor colocou diversas cruzes na porta da unidade de pesquisa da Monsanto, em Petrolina, local onde são feitos experimentos com milho e sorgo geneticamente modificados, simbolizando as mortes provocadas pelas substâncias da empresa.
Outra intervenção ocorreu no Mercado do Produtor, em Juazeiro (BA), para denunciar o uso de mosquito geneticamente modificado em testes no município sob a alegação de combate à dengue. Foram distribuídos panfletos informativos e um balão com o símbolo dos transgênicos e o desenho do mosquito colocado em cima do carro de som. Apesar de há meses os mosquitos transgênicos estarem sendo liberados na cidade,  a população desconhece o assunto. De acordo com Gabriel Fernandes, da AS-PTA, o  nosso país é o único a liberar a produção comercial desse mosquito, já testado no Panamá, Ilhas Caimã e Malásia. “Não temos como saber o risco de mutações genéticas e o desequilíbrio ambiental que isso pode gerar”, alerta.


Feira de Saberes e Sabores
Contornando a tenda central das principais atividades do III ENA, a Feira de Saberes e Sabores foi o ponto de encontro dos participantes. Dividida por delegações estaduais, os 35 estandes representaram a diversidade da produção agroecológica no Brasil. Alimentos e artesanatos de todo o país estavam expostos ao público, que teve a oportunidade de conhecer diversos produtos típicos que não são encontrados facilmente nas prateleiras dos grandes supermercados. Todos sem o uso de agrotóxicos ou sementes transgênicas.
Pupunha, coco babaçu, rambutão, buriti, cupuaçu, umbu e açaí eram alguns dos frutos à venda. O mel de diversas regiões do país, temperos e plantas medicinais também se destacaram. Toda compra ou conversa, recebia de tabela uma aula sobre os conhecimentos tradicionais envolvidos com os produtos e seus derivados. A troca de sementes também refletiu a diversidade nacional, com espécies de todas as regiões do país. A soberania em relação às sementes é um passo fundamental para a agroecologia, lembrou Lara Angelo, da Rede de Grupos de Agroecologia do Brasil (REGA), organizadora do espaço: “É um momento único onde os agricultores (as) além de espalharem e levarem para casa sementes antes desconhecidas, muitas delas guardadas há gerações, conversaram sobre seus usos e formas de cultivo. Também mostraram a incrível variedade que há em cada região do Brasil”, destacou.


Mulheres e Juventudes
Para garantir maior participação desses dois setores, foram promovidas plenárias específicas para tratar os temas. Cerca de 200 jovens alegraram o início do Encontro, dando ponta pé às discussões. Sempre animados, participaram intensamente das atividades culturais. O espaço foi construído a partir da Caravana Agroecológica e Cultural das Juventudes do Nordeste, realizada no sertão do Araripe (PE).
Discutiu a necessidade de se pensar um espaço nacional de articulação das juventudes do campo e da cidade nos mais diversos territórios. “A juventude não é dissociada das outras classes do país, estamos presentes na educação, nas discussões, nas mobilizações”, disse Beth, quebradeira de coco da região do Médio Mearim (MA).
O batuque de galões de plástico e latas, junto à palavra de ordem “sem feminismo não há agroecologia”, ficou tatuado na lembrança dos participantes. Ninguém passou pelo evento sem perceber a forte participação das mulheres, que ficou evidente em todas as atividades centrais do encontro. Além da plenária para discutir a desigualdade de gênero e o machismo, dentro e fora de casa, foram as protagonistas de alguns atos públicos. A autonomia das mulheres é, sem dúvida, uma das principais bandeiras da agroecologia.
Seus relatos trouxeram à tona desde a dificuldade de acesso às políticas públicas até as relações com maridos e filhos, evidenciando profundos reflexos da sociedade patriarcal na agricultura. A violência, não só física, ainda é a principal luta. Seja por conta das disputas territoriais e pela dificuldade de acesso ao crédito, ou pela agressão física e abuso sexual que muitas ainda sofrem.


Economia Verde
Outra atividade que ocorreu durante o Encontro foi a Oficina "Economia Verde e Agroecologia: O que está pegando?", promovida pelo Grupo Carta de Belém, na qual foi apresentado um informe dos temas em jogo na Conferência da ONU para Mudanças Climáticas (COP 20), que será realizada em Lima, no Peru, em dezembro de 2014. A oficina buscou diálogos sobre a economia verde e sua relação com a agroecologia. Segundo André Barreto, da Terra de Direitos, algumas questões como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e sua relação com o Novo Código Florestal foram debatidos.

“Falamos sobre a implementação do Código Florestal, críticas à vertente de mercado, os mecanismos de financeirização dos bem comuns. O REDD+ (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), por exemplo, foi criado dentro dessa conferência no plano internacional e precisamos refletir como se dá dentro da legislação brasileira. Os movimentos e organizações precisam lutar por alternativas agroecológicas e não usar esses mecanismos, buscando incentivos através de políticas públicas”, disse.

Perspectivas
O III ENA reafirmou o compromisso e disposição de luta pela transformação dos sistemas agroalimentares, e apontou a agroecologia como caminho e alternativa para a disputa contra a violência imposta pelo agronegócio e outras formas de expressões. A perspectiva é de continuidade dos diálogos e convergências entre redes e articulações do movimento agroecológico com a justiça ambiental, povos e comunidades tradicionais, a economia solidária, dentre outros setores. E a expectativa é aumentar a proximidade com a sociedade, através de uma comunicação que foi afirmada no encontro como direito à disseminação de um Brasil Agroecológico.


(*) Além do autor Eduardo Sá, colaboraram Alan Tygel, Camila Nobrega, Fernanda Cruz, e Gilka Resende, comunicadoras populares do evento.