Quando avistou a sereia na ponta da praia, ele ficou encantado. “Estava de costas para nós, cabelo cumprido, eu e meus amigos vimos ela claramente.” Foi justamente nesse local que ancorou o barco da Caravana Agroecológica, promovida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) onde a beldade molhada teria enfeitiçado o jovem Carmelino Batista de Oliveira e dois amigos que estavam pescando no rio Tapajós, no final da tarde, bem perto de Surucuá, comunidade de ribeirinhos a quatro horas de barco de Santarém. Esta tarde foi certamente memorável, tanto que Carmelino nunca a esqueceu, apesar desse quase-encontro ter ocorrido há mais de 70 anos. Quando a mãe soube, temeu pelo filho, uma vez que as sereias costumam levar os rapazes enfeitiçados para o fundo do rio. Para acabar com o feitiço chamou o cigarreiro, como se chamava o curandeiro local. O tratamento foi bem-sucedido, do ponto de vista da mãe. Carmelino sempre que ia pescar não parava de observar a ponta da praia, a procura do ser encantado, mas nunca mais viu a sereia.
Eu também não a vi quando fui me banhar nas águas mornas, quase-quentes, do rio Tapajós, exatamente naquela ponta onde a sereia teria ficado sentada, no topo da pequena duna. Mas entre as companheiras da Caravana houve quem temesse que o boto, famoso personagem das lendas amazônicas, poderia aparecer para levar o gringo que ousou nadar na escuridão.
Carmelino hoje tem 95 anos. É o morador mais antigo da comunidade de Surucuá, uma de três que visitamos dentro da Reserva Extrativista (Resex)Tapajós-Arapiuns. Surucuá leva o nome indígena de um pássaro, mas não se considera indígena, enquanto as de Solimões e Santo Amaro, de nomes portugueses, há alguns anos se auto-reconhecem como indígenas. Como muitos, Carmelino veio do Nordeste brasileiro, nasceu no Ceará e foi o surto da borracha que levou sua família ao Pará. Hoje, a extração de látex das seringueiras é uma atividade quase parada entre as comunidades da região, por falta de preço adequado e também porque os jovens já não querem se submeter à dureza desse trabalho. Carmelino pescou tantos anos que enjoou de peixe, prefere a carne que as filhas trazem de Santarém e gosta mesmo é do seu radio que lhe traz o canal Rural, “só escuta isto, é o professor dele”, conta a filha Nilza que junto com a irmã Maria Esperança toma conta do pai, hoje completamente cego.
Indígenas ou não, as comunidades vivem comercialmente da farinha de mandioca. Todas as 105 famílias em Surucuá têm casa de farinha e cada uma vende a produção média de um saco por semana individualmente ao atravessador. Recebem atualmente uns R$160 por saco. Em Santo Amaro, instalou-se a Oficina da Farinha que nos recebeu com mesas lindamente decoradas de frutas, de farinhas, de beijus (molhados e secos). Um exemplo de implementação concreta da agroecologia: junta a sabedoria tradicional e as normas e técnicas modernas de higiene e qualidade impostas pela Conab (Companhia Nacional de Desenvolvimento). As mulheres de Surucuá nos ofereceram a farinha amarela em várias qualidades, todas ótimas, e nunca antes ela me foi tão saborosa como naquela tarde. Como garantem as normas estatais da Conab, conseguem um preço melhor.
A pesca é basicamente para a subsistência, assim como o açaí, o abacaxi, a melancia, manga, jambo e outras frutas regionais. Teria mercado? Teria, mas para comercialização as frutas precisam ser processadas e o produto guardado em freezers. Não há energia para isto, reclamam os moradores. Há geradores a óleo diesel, que não dão conta, o consumo é caríssimo. O governo promete luz para todos através da construção de hidroelétricas no rio Tapajós, no rio Madeira, no Xingu, no Teles Pires e em muitos outros rios da Amazônia brasileira, peruana e boliviana. Mas é o Tapajós que aparece como a grande aposta entre as bacias da Amazônia candidatas a geradoras de energia hidrelétrica para o país,com pelo menos sete grandes hidrelétricas planejadas. Em audiências públicas, comunidades já declararam a sua resistência, outras estão em dúvida. Afinal, todos querem energia. Em Santo Amaro, ninguém me falou das placas solares; achei-as por acaso. Algumas, pequeninas, que alimentam o rádio e as lâmpadas a noite. Três em cima da casa da agente de saúde, suficiente para luz, TV e outros eletrodomésticos, mas não para um freezer. Como explica Emanuel, o filho adolescente da família, para utilizar um freezer precisa-se de quatro placas 100 Watt e quatro baterias. A placa sai por R$ 1.200, a bateria por R$700, cada uma. Muito dinheiro. Mas presumivelmente pouco, comparado com os imensos custos sociais e ambientais, diretos e indiretos, de uma usina hidrelétrica. Falta o governo fazer uma opção política à energia solar e incentivar o seu uso e a produção do equipamento no Brasil, assumindo a distribuição como uma tarefa de exercício de cidadania. Por ora falta qualquer tratamento especial, de incentivo. O preço máximo da energia solar fixado para o próximo leilão da Agência Nacional de Energia Elétrica marcado para o dia 13 de dezembro deixa clara a falta total desta opção: Com R$ 122 por megawatt/hora está abaixo até do teto de algumas hidrelétricas no mesmo leilão e no mesmo patamar da energia eólica que hoje já conta com condições muito mais favoráveis.
Durante a troca de experiência com os moradores, escutei duas preocupações importantes: a segurança da posse da terra e a necessidade de – e ainda falta de – políticas públicas adequadas. Há 10 anos as comunidades da Resex (criada em 1998) esperam pelo Plano de Manejo, condição para desenvolver assistência técnica de produção e comercialização, programas de energia etc. Até hoje a comunidade só tem um plano de uso. O que as comunidades do Tapajós precisam é da garantia dos seus direitos e condições que lhes permitam optar por uma vida econômica e social de cuidado da natureza, que é a base de vida destas pessoas. E a agroecologia é a proposta mais avançada e mais adequada para isto. Mas o Estado deve providenciar o que é obrigação do Estado: atendimento de saúde com qualidade e quantidade suficientes. Atualmente a Resex tem 20.000 moradores vivendo em 677 mil hectares e dois postos de saúde.
O nível de escolaridade ainda é muito baixo; enquanto o ensino fundamental é oferecido em todas as comunidades, só poucas têm ensino médio. As expectativas de ter educação de nível médio e a posse da terra finalmente garantida (através da demarcação de um território indígena para eles, processo complicado dentro da Resex com comunidades indígenas e não indígenas) fortalece a decisão das comunidades que recentemente se auto-reconheceram como indígenas. O Bolsa Verde – programa similar e complementar ao Bolsa Família – tem sido discutido de forma controversa. Para uns, simplesmente “paga a faculdade para as minhas quatro filhas”. A família continua produzindo e usando o dinheiro para a educação. “Esta é a idéia”, diz Isolina Lopes de Souza, que ajuda as comunidades a melhorarem a qualidade da farinha e já trabalhou no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém. “Mas muita gente deixa de produzir, cruza os braços.” A esperança é que o Plano de Manejo traga um melhor acesso a programas públicos, principalmente de assistência técnica, mas também de créditos. E espera-se que garanta legalmente a manutenção dos sistemas tradicionais agroextrativistas.
A preocupação é tentar minimizar um outro modelo de desenvolvimento que se aprofunda na região. Um modelo que não parte das necessidades da população, nem do equilíbrio entre homem e natureza na Amazônia. Uma edição especial do jornal Valor Econômico sobre o Pará, de novembro de 2013, revela que R$ 130 bilhões de investimentos públicos e privados aportarão no Pará até 2016. A metade vai para a região de Carajás, área de mineração. R$ 32 bilhões são destinados à região de Tapajós para “projetos hídricos”. Prometem-se 160 mil novos empregos, mas como o próprio jornal evidencia, a maioria dos trabalhadores fica apenas para construção do empreendimento. Não são empregos estáveis, e a pobreza, mesmo dos trabalhadores, continua: 40% das pessoas empregadas no estado ganham apenas até um salário mínimo. Estabilidade se encontrará, no entanto, nos impactos sociais e ambientais das grandes obras, e no domínio efetivo da terra. Como lembrou Guilherme Carvalho, coordenador do programa regional da Fase na Amazônia, “assistimos à disputa pelo território”. E os participantes da Caravana ouviram e viram, do lado das populações afetadas, e que matérias como as do Valor, pelo lado das forças da comercialização da natureza nos fazem entender: a disputa será cada vez mais ferrenha. E quem sairá ganhando não será o respeito aos direitos humanos dos povos
Dawid Bartelt é diretor da hbs Brasil. Ele participou da Caravana Agroécologica de Santarém dentro do grupo que foi à Resex Tapajós-Arapiuns. Foram três noites no barco. Ao chegar em Santarém, comprou uma rede no mercado. Mas ficou aliviado ao perceber que no barco tinha beliche para dormir.
- A Fundação Heinrich Böll foi uma das organizações que apoiou a caravana
- Saiba como foi a Caravana de Santarém que visitou a Flona Tapajós e a região do Planalto
- Visite o site da Articulação Nacional de Agroecologia
- Vejas as fotos da Caravana
- Leia o artigo “Um Brasil desconhecido por muitos brasileiros – agroecologia como solução para a crise alimentar, ecológica e social.”