Da Rio92 a Rio+20: a sociedade civil e a questão ambiental

Qual o legado de uma das mais importantes Conferências da ONU sobre meio ambiente do século XX? No início dos anos 1990, o mundo passava por mudanças sociopolíticas decisivas, gerando uma expectativa de novos ares. Nesse cenário, a Eco 92 – ou Rio 92-, tinha o objetivo de propor uma agenda climática mundial com metas efetivas, a fim de se evitar um colapso climático já vislumbrado na época. Moema Miranda, ex-diretora do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), e hoje da Ordem Franciscana Secular, participou da Rio 92 e foi uma das principais lideranças na construção da Cúpula dos Povos, evento paralelo da Rio+20. Ela conversa conosco sobre esses dois eventos, marcos das discussões sobre as mudanças climáticas.

Marcha a Ré da Rio+20: Manifestação da sociedade civil

Há 30 anos acontecia a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Rio 92. A Conferência reuniu 172 países e teve a presença de 108 chefes de Estado, um fato inédito para uma reunião global. O contexto da época é o da expectativa de novos ares para o Brasil e o mundo: o Brasil saía de uma ditadura militar, conquistando, após diversas manifestações populares, as tão sonhadas eleições diretas para presidente, além da Constituição de 1988; a Europa, por outro lado, vivia a queda do muro de Berlim, simbolizando o fim da Guerra Fria.

Foi também nessa época que os partidos verdes tomaram impulso no mundo, e a questão ambiental entra de forma contundente na agenda política. Uma nova e ampliada geração de ONGs também estava se estruturando justamente nesse período, passando de uma atuação assistencialista para uma abordagem mais política, e a solidariedade internacional se consolidava como uma agenda para os países financiadores do Norte.

Como um dos principais resultados da Rio 92, temos a inauguração do ciclo social da ONU, seja através das Convenções acordadas durante a Conferência para lidar com o clima, desertificação e biodiversidade, ou em outras grandes conferências que debateram e consagraram temas globais emergentes e mobilizaram a sociedade civil no mundo, transformando-a em ator importante dentro do debate geopolítico global. Dentre os exemplos, podemos destacar a Conferência da Beijing (1995) - no tema das mulheres - e a conferência de Durban (2001), sobre o racismo e a intolerância.

Nesse cenário, falamos com Moema Miranda, da Ordem Francisca Secular. Moema participou da Rio 92 como integrante do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Moema é antropóloga e doutoranda em Filosofia. Integra a coordenação da Rede Igrejas e Mineração. É assessora da Comissão Episcopal Pastoral Especial para Ecologia Integral e Mineração, CEEM/CNBB e membro da Coordenação Nacional do Serviço Inter-franciscano de Justiça Paz e Ecologia (SINFRAJUPE). Atua como na assessora na Rede Eclesial Pan-Amazônica, REPAM, tendo participado como Auditora no Sínodo para a Amazônia.

Confira abaixo a entrevista.

  1. Como foi sua participação na Rio 92? Recorda-se de algum episódio que marcou a conferência?

Em 1992, eu não estava ainda totalmente envolvida com essas temáticas. Eu tinha acabado de entrar no Ibase em fevereiro de 1992 e vinha de uma militância de luta por habitação. A questão ambiental não era uma questão central, e sim, ainda era uma coisa da galera que usava tanga em Ipanema... (risos). O Ibase era nessa época uma organização muito expressiva do que estava começando a ser a sociedade civil. As Ongs eram muito poucas, muitas inclusive não se identificavam com essa sigla. É aí que começa a ser pensada a ABONG [Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais], ou seja, é a conformação de um novo campo. A luta por moradia, por exemplo, não começa com as Ongs nem é uma invenção das Ongs. O assassinato de Chico Mendes tinha acontecido em 1988, trazendo consigo a pauta ambiental para o debate. A Eco 92 foi relevante por colocar esse tema absolutamente essencial para uma sociedade civil que estava avançando em sua constituição, que vinha da luta por direitos civis, contra a ditadura, se organizando em torno da justiça social e de acesso aos direitos. Havia a Isabel Carvalho, o Henri Acselrad que trabalhava junto com Jean Pierre, da Fase – realmente os grandes responsáveis dessa temática para o campo das ONGs no Brasil.

 

  1. Quais os impactos da Rio 92 e da Rio+20 na sociedade civil? Vc tem algum exemplo?

Importante pensarmos que esses 20 anos que separam a Rio 92 da Rio +20, viram a consolidação do processo democrático no Brasil, a instituição de governos democráticos populares e a transformação completa da temática ambiental aqui no Brasil. Primeiro porque muitos sujeitos emergiram dessa luta, por exemplo as quebradeiras de coco, que já pautavam o tema ambiental. Depois pela constituição essencial dos povos indígenas como um sujeito na política, embora já eram evidentemente um sujeito, mas ainda não estavam afirmados. De uma certa forma a Rio 92, aquela grande ideia de ocupação do Aterro do Flamengo, as tendas, espaços de diálogo democrático, a convivência da divergência, a construção de palcos comuns entre diversos atores, foi a grande inspiração para o Fórum Social Mundial que começaria em 2001. Se você pensa 1992 até 2012, a questão ambiental se conforma como um tema fundamental da política e inclusive passa a determinar novos padrões de incidência, como no tema da desigualdade. Havia um confronto com o governo Lula e a lógica do progressismo, do desenvolvimentismo, já que muitas das forças sociais as quais a gente representava tinham tido incidência para eleição desse governo.

 

  1. Alguns analisam que a Cúpula dos Povos, evento paralelo da Rio +20, demonstrou uma fragmentação da sociedade civil, com muitos conflitos internos. E que, de certa forma, a hegemonia das grandes ONGs estava sendo também criticada. Vc vê dessa forma?

A nossa inspiração para fazer a Rio +20 tinha sido a luta da África do Sul contra o apartheid. Mandela recebe uma carta com 10 pontos de consenso, mas com a ressalva de que depois podiam divergir em tudo. Esse momento foi fundamental para tudo que aconteceu posteriormente na grande luta contra o apartheid, fortaleceu a grande capacidade de mobilização que os ativistas tiveram. Para nós esse era o ponto de diferença em relação ao processo do Fórum Social Mundial.

A Rio+20 foi diferente do Fórum: foi muito mais democrática, muito mais aberta e participativa. Havia um comitê organizador com 100 organizações de todo o Brasil, das mais diferentes naturezas. Por exemplo, grupos de várias religiões tinham uma tenda imensa; religiões afro, o mundo protestante estava representado. Havia toda uma expressão grande dos indígenas. Então a ideia era ter uma pauta comum que juntasse desde MST e os movimentos de luta pela terra, os movimentos articulados em torno da Alba [Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América], os ambientalistas e foi um processo de afirmação de uma identidade de sociedade civil do sul, um diálogo sul – sul. Constituir uma agenda, a partir dos conflitos que estávamos vivendo nos territórios do Sul. Foi o último grande evento da sociedade civil mundial. Mas não conseguimos no final da Rio+20 fazer nem uma reunião de avaliação juntando todo mundo. Dali em diante as agendas do desenvolvimentismo, as grandes ongs que entravam com uma agenda muito mais conservacionista acabaram com esse espaço de articulação coletiva. Saímos muito frustrados.

 

Mas houve coisas interessantes, não é mesmo?

A Rio +20 tocou no conjunto das formas de pensar e estruturar o mundo. Foi um momento claro da dimensão da crise de civilização na qual estamos agora. Porque não é uma crise de projeto político; não é uma crise de modelo de esquerda ou de direita. É de fato a entrada em colapso de um processo civilizatório. E na Rio +20 foi o que antevíamos, embora ainda não usássemos a frase colapso ambiental.

A minha interpretação do que vivemos hoje é de que o colapso ambiental representou uma dissonância cognitiva com o grande projeto da modernidade que pensando de forma muito abrangente, começa lá no século 16, 17, na revolução científica, no início do capitalismo, da colonização, ou seja, toda uma lógica que está baseada num princípio de dominação da natureza. Toda ciência que se constrói daí é uma ciência de dominação da natureza. E a partir de 1945, com o fim da guerra, com a organização do mundo bipolar, as diferenças do projeto socialista e do projeto capitalista tinham, entretanto, a mesma base modernista comum. É essa lógica antropocêntrica de que o ser humano é quase um ser superior ao conjunto da natureza, como diz Claude Lévi-Strauss ao falar do mito da dignidade exclusiva da espécie humana. O desenvolvimento do Marxismo e de todo o espectro da esquerda também está dentro dessa lógica modernista do domínio da natureza. Esse grande projeto supôs que, ao dominar a natureza, os seres humanos teriam condições de garantir para sua espécie condições dignas para todos.

 

Esse grande projeto deu errado então...

Sim, se mostrou uma falácia porque na verdade nós somos seres integrados. Nós somos seres do planeta terra. Não há um plano B para a espécie humana. Temos que rever esses conceitos, quase que dar uma ré. Temos que reaprender a viver nesse planeta. E isso significaria dizer: será então que os indígenas é que estavam certos? Será que eram os quilombolas que sabiam o que estavam dizendo? Será que eram aquelas mulheres quebradeiras de coco que achávamos serem a vanguarda do atraso que estavam certas? Aquela galera que achava que a árvore tinha espírito? Será que eram eles que estavam certos? Do ponto vista religioso seria uma conversão, pois é uma ferida narcísica imensa para o homem branco.

 

Mas então o que podemos pensar sobre o atual projeto de civilização?

Para mim, hoje, a maior incógnita é saber qual é o projeto de vida das elites mundiais. Porque só vejo projetos de morte. E aparentemente não há um projeto de vida, inclusive para eles. O Elon Musk pensa que vai comprar bolsa Louis Vuitton e usar na passarela em Marte? Colonizar Marte e ir pra lá? E isso como possibilidade real não está dado e não vai estar nos próximos 100 anos. Essa coisa de que você vai viver numa estação lunar fora da terra e deixar isso aqui para escória, não há tempo material de construir isso tudo. Então qual é o projeto comum?

O Papa Francisco escreveu uma encíclica chamada Fratelli Tutti, na qual afirma que a história dá sinais de regressão. Isso é uma contradição, porque sempre pensamos a partir do progressismo, também a esquerda, como o Super Homem – mas a história regride. E a segunda questão que ele levanta, que coincide com o Bruno Latour, em seu livro “Onde Aterrar” é que perdemos um senso comum de história. Durante a história recente as elites pensaram para si um projeto de poder que colonizava o resto do mundo, mas o integrava na sua própria história, seja como escravo, seja como zona de sacrifício, mas a elite atual não tem mais esse projeto. Eles resolveram abrir mão do resto do planeta e aí não tem mais mundo para todo mundo, como diz Ailton Krenak. Então a única lógica possível para as elites hoje acaba sendo uma lógica exterminista. No projeto político nazista o Hitler não ganhou as eleições dizendo: vou criar campos de concentração para os judeus virarem cinza. Mas eles estavam fazendo, implementando. Ou seja, faz na prática, mas não formula como projeto político. Acho que na Rio+20, apesar de vivermos isso na prática, não tivemos todas as palavras para compreender esse momento. Embora já estivéssemos vivendo o grande colapso ambiental.  O que é mais desesperador é pensar que dá para todo mundo viver tranquilamente, pois nunca a humanidade foi tão capaz de viver bem nesse planeta. Em um ano tivemos uma pandemia como o Covid, criaram-se as vacinas rapidamente, e é possível vacinar todo mundo, mas não acontece. É desesperador, mas então qual é a nossa política?

 

  1. Na Rio 92 foi realizado também o Planeta Fêmea. 30 anos depois vc vê a agenda ambiental dialogando com a pauta feminista? E se não o que deveria ser feito?

Eu não sou ligada ao movimento feminista, então falo com muito respeito desse movimento e não quero de forma alguma ser porta voz, mas acho indiscutivel sua importância, por exemplo quando vemos o protagonismo de uma Sônia Guajajara. Acho que de fato os movimentos de mulheres tiveram muita sensibilidade e capacidade de interpretação dos desafios que estavam vindo. E talvez por isso, as mulheres tenham conseguido avançar em pautas concretas. Mas na crise que vivemos as pautas das mulheres ficam mais difíceis de serem transformadas em algo para além do imediato.  Acho que em muitos lugares, por exemplo as quebradeiras de coco conseguiram encontrar formas de pautar suas questões, mas elas têm de estar integradas, pois não há como garantir vida digna para mulheres, se não garante vida digna para a população; não se pode garantir escola de qualidade para os afro descendentes se não tiver escola de qualidade; não tem como garantir saúde indígena, se não tiver saúde. Então todas as pautas identitárias e específicas acrescentam a grande luta por um mundo de justiça e paz, mas elas têm de estar integradas à lutas que são universais ou pluriversais.  Houve um avanço incrível nas cotas para as universidades, mas aí houve corte imensos nesse setor.

  1. Hoje temos um cenário completamente diferente daquele de 1992: a extrema direita está forte no mundo, o tema ambiental foi capturado pelo mercado, a agenda das desigualdades (raciais, de gênero, econômicas) que cruza com a ambiental está sob ataque, os valores da democracia estão sendo questionados. Mas você vê espaço para uma “nova” Rio 92?

A Natalia Sierra, uma socióloga do Equador, tem desenvolvido uma teoria dos pequenos caracóis. Todos os caminhos que tentamos de esquerda fracassaram. Ela enfatiza que não é essa forma retilínea, para cima ou para baixo, mas uma forma que volta sobre si mesma, que se refaz numa espiral e não numa reta. Próximo, por exemplo, do movimento indígena, de um tempo que é mais circular. Natalia tem desenvolvido que precisamos dessas pequenas arcas de Noé. Desses pequenos espaços caracóis, dessas pequenas comunidades de confiança nas quais é possível sobreviver no meio do caos; olhar no meio do caos e ver onde estão os espaços de cultivo da vida. Durante a pandemia isso aconteceu muito. Gente que se ajudou mutuamente, às vezes no prédio, às vezes para comprar comida para alguém que está ali. Não é um grande gesto heróico de enfrentar fome, mas é ajudar sua vizinha que é mais velha e não pode. Muitos pré-vestibulares durante a pandemia distribuíram comida, fizeram compras coletivas, movimentos como o MST começaram a fazer cozinha comunitária.

Acho que uma outra iniciativa é tentar olhar para o caos e ver onde a vida está brotando, porque hoje ela não vai estar acontecendo nos grandes espaços, e sim nas brechas, nas quebradas, nos espaços de interstício. Embora ao mesmo tempo não devamos deixar de atuar na grande esfera pública. É a iniciativa, por exemplo, do movimento das mulheres indígenas de ocuparem espaço nos parlamentos estaduais e no Congresso. Devemos tentar nos somarmos ao máximo. Ao mesmo tempo abrir essas conexões com o pessoal que está fazendo arte, cinema, produzindo show. Eu fiquei super impressionada, dessa escritora negra, Chimamanda, que esteve no Maracanãzinho e se juntou uma fila imensa de gente para escutar uma mulher negra, escritora, e a Djamila Ribeiro fazia o diálogo com ela. Essa extrema direita foi mais capaz justamente de tirar a confiança de que um outro mundo melhor é possível; é também desempoderar o discurso de que não há alternativa, de impedimento de outras possibilidades de futuros e reafirmar outros futuros possíveis.