COP 26: da exclusão às vozes das ruas e do dever de casa ao futuro

Manifestação do Dia de Ação Global em Glasgow, na Escócia. Na frente, vemos lideranças indígenas do Brasil com cartazes coloridos que chamam a atenção para as ações contra a mudança climática.

A 26ª sessão da Conferência das Partes (COP26) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, sigla em inglês) foi realizada em Glasgow, no Reino Unido, e foi concluída há uma semana. Sua grande repercussão mundial e relevante participação de organizações da sociedade civil apontaram a importância do tema climático para as agendas presentes e futuras no campo das lutas por direitos. Esse artigo tem por objetivo compartilhar impressões acerca da conjuntura em que essa COP 26 foi realizada e da participação da sociedade civil, que realizou atividades dentro e fora da conferência.

Panorama do caminho para COP 26

Com a entrada em vigor do Acordo de Paris e o adiamento do fechamento do Livro de Regras do acordo por duas conferências (COP 24 de Katowice e COP 25 de Madrid), as atenções se voltaram para a busca de consenso para concluir o Livro de Regras[1] que vai reger o acordo, nos artigos 4º, 6º e 13º, relativos ao marco temporal de revisão das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC’s, sigla em inglês), aos mecanismos de mercado e não mercado, e por fim, ao quadro geral de transparência. Para essa missão foram escolhidos como presidência e vice-presidência da COP26 o Reino Unido e a Itália, respectivamente. Esta conferência deveria ter sido realizada em 2020, mas por conta da pandemia do COVID-19 foi adiada.

A COP 26 e a Cúpula dos Povos

Ao longo da realização das COPs de clima é comum a realização de eventos paralelos ao oficial, sendo que durante algumas conferências e dependendo do vigor e articulação da sociedade civil local, os espaços das Cúpulas dos Povos vêm se tornando referência no debate contra hegemônico ao caráter de feira de negócios que os espaços das COPs vêm se tornando. Nesse sentido, a Coalizão COP26[2], formada por organizações sociais e ativistas do Reino Unido e apoiados por um comitê internacional, organizou a Cúpula dos Povos para Justiça Climática, entre os dias 07 e 10 de novembro de 2021, em um formato presencial e digital, garantindo assim maior participação da sociedade, com registro aberto para a população de qualquer país, o que permitiu uma grande diversidade e amplitude das vozes e dos debates ali realizados. A Cúpula contou com eventos promovidos por diversas organizações e movimentos da sociedade civil, explorando temas relacionados a questão climática como reparação, justiça e dívida climática e ampliando as reflexões sobre direitos da natureza, tribunal dos povos e vetores do desmatamento e dos impactos socioambientais, assim como muitos debates giraram em torno das falsas soluções as mudanças do clima, com denúncias sobre as propostas sobre a mesa de negociação oficial. Os eventos contaram com a participação de mais de 12 mil pessoas[3] e permitiram a orientação das discussões em torno de uma visão critica em relação as questões climáticas com um foco na população, nos atores da linha de frente, e não nos governos e lideres mundiais.  

Cabe destacar o Dia de Ação Global como um momento emblemático da luta por justiça climática. Com mais de 100 mil pessoas em marcha pela cidade de Glasgow, os manifestantes se juntaram a população local levando cores, música e distintas vozes, com especial atenção à participação de lideranças indígenas do Brasil, cuja delegação contou com quarenta representações de etnias indígenas, e do mundo; assim como a participação de jovens ativistas que estavam em peso na cidade, e de movimentos e organizações sociais de todo o mundo. Sem sombras de dúvida foi a maior manifestação das ruas de todas as edições das Conferências das Partes realizadas até aqui.

Durante a COP26 uma Conferencia dos Povos se reuniu para discutir Justiça Climática, a decisão tomada por eles foi entregue a ONU, em um documento de nome “The People’s COP26 Decision for Climate Justice” que demandou o pagamento da dívida climática pelos países do norte global, uma meta global de adaptação, que se lidasse com a injustiça climática e o pagamento por perdas e danos, que cada pais faça a sua parte, a rejeição das falsas soluções, que não se faça um trade off com os direitos humanos, a remoção dos grandes poluidores dos processos negociadores, que se faça a transição justa, que tenha cooperação e solidariedade e não se exclua o povo.

Críticas à presidência da COP 26 e vozes da sociedade civil

Com todas as restrições para entrar no Reino Unido em virtude das regras do governo frente à pandemia, assim como pela desigualdade em matéria de recursos para o enfrentamento da mesma e as distintas situações sobre como cada país estava em relação à cobertura vacinal, diversos representantes de governos Partes da UNFCCC e da sociedade civil e academia, encontraram dificuldades para participar da COP26. Apesar da presidência da COP propagar que essa seria a COP da inclusão, no fundo, muitos países enviaram pequenas delegações e tiveram dificuldades em conseguir fundos para viabilizar a participação da sociedade civil na Conferência[4], o que gerou denúncias por parte da sociedade civil, pedindo por seu adiamento[5], inclusive em cartas e declarações emitidas antes da COP, o que não teve respaldo do Reino Unido. Nesse sentido, o governo do Reino Unido chegou a flexibilizar algumas medidas para atender, por um lado, a pressão e crítica sobre as severas restrições, como quando reduziu o número de países na lista vermelha e o tempo de quarentena para cinco dias, além da aceitação de comprovantes de todas as vacinas disponíveis no momento no mundo.  Mas, por outro, algumas promessas sobre vacinação de delegados e as incertezas relativas a quarentena em caso de infecção e outras perguntas sem resposta, fizeram com que muitas delegações do Sul Global chegassem em tamanho reduzido. Ao mesmo tempo, o próprio secretariado da convenção reduziu o número de credenciados como observadores e restringiu praticamente todo o acesso as salas de negociação para representantes somente de delegações oficiais, o que fez efetivamente essa COP ser uma das mais excludentes da história.

Devido as dificuldades mencionadas, essa conferência foi marcada pelo encolhimento do espaço de participação e, por consequência, do espaço de incidência na agenda política, gerando um questionamento sobre a legitimidade das decisões tomadas. Apesar dessas circunstâncias, a sociedade civil brasileira, conseguiu de forma expressiva, levar representantes para a COP, com representantes indígenas, do movimento negro, feminista, de juventude, sindicais, ongs ambientalistas, de mídia alternativa, dos movimentos sociais e de redes e articulações que atuam na defesa da justiça climática na denúncia das soluções de mercado à crise do clima. Além disso, a Conferência também foi amplamente criticada pelo caráter corporativo assumido, sendo chamada pelo setor empresarial de COP “corporativamente diversa”[6], uma vez que o setor empresarial financiou e compareceu em peso, diversos CEO’s estiveram presentes na COP26 devido a um aumento das iniciativas do setor que se dizem climáticas ou ambientais. Devido a uma intensa cobertura da mídia, foi possível contabilizar que a maior delegação que foi para a COP era composta de empresas do setor de combustíveis fosseis, maior que qualquer delegação das Partes da convenção de clima.

E apesar dessa intensa cobertura da mídia tradicional, ela ainda falhou em dar voz aos grupos que estão na linha de frente do combate as mudanças climáticas e que deveriam ser incluídos nos processos de negociação. Para preencher essa lacuna, a Coalizão COP26 em parceria com o Mídia Ninja fizeram uma cobertura colaborativa da COP que liberou o acesso de conteúdo da conferência a diversas pessoas da sociedade civil, para que essas compartilhassem os conteúdos com o maior número de pessoas possíveis, democratizando as discussões da COP e fazendo frente assim a exclusividade da conferência.

Com o começo da conferência, as críticas se intensificaram uma vez que a realidade comprovou os receios da sociedade civil sobre o baixo efetivo. Os líderes mundiais chegaram para a Conferência logo nos primeiros dias, e buscaram firmar o maior número de acordo referentes a diferentes questões ambientais, acordos feitos sem a consulta aos setores da sociedade que serão afetados por ele. 

Atuando como um espaço de debate plural e acessível, a Coalizão COP26 também organizou assembleias durante todas as noites da Cúpula, cujo objetivo era levar aos participantes da Cúpula as discussões e negociações que estavam acontecendo na COP26, em uma tentativa de democratizar o acesso da sociedade as decisões que os líderes estavam tomando sobre o futuro climático de seus países, e do mundo como um todo, e diminuir o grande déficit democrático da conferência.

Andar nos pavilhões e corredores de negociação da COP26 e pelos lugares dos eventos da Cúpula dos Povos possibilitou uma forte percepção sobre as diferenças entre os dois espaços, em termos de diversidade e público, e a interação com diferentes grupos, cujos pensamentos refletem a queda de braço entre as distintas forças políticas sujeitos da sociedade e dentro de seus países. Sonia Guajajara, líder indígena brasileira, em entrevista sobre a COP26 corroborou os argumentos traçados: “Ambiente da COP é muito segregado, muito separado, onde as negociações ocorrem ninguém chega perto. Nós levamos nossa mensagem para lá por meio do Caucus Indígena, nós temos nossa representação lá, mas é muito pouca, muito pequena.” Ao falar em segregação, Sonia Guajajara trata da separação entre negociadores e sociedade civil, e da ausência de representantes desta nos espaços que tomam decisões que afetam o futuro do mundo, em especial, dos povos indígenas e comunidades tradicionais.

Tudo isso contribui para muitos questionamentos sobre a COP como um espaço no qual as mudanças climáticas vão ser efetivamente combatidas, uma vez que as soluções discutidas se baseiam no mesmo modelo capitalista predatório que causou a crise climática. Ao mesmo tempo, por ser um problema global, o enfrentamento das mudanças climáticas depende de um arcabouço cooperativo multilateral que junte os principais emissores de gases de efeito estufa, para juntos poderem de fato, mudarem a trajetória para o qual a humanidade caminha. Mas se falta vontade política, falta mais ainda ações concretas. Durante as marchas que ocorreram na cidade e na própria COP, com a saída dos representantes da sociedade civil para uma Assembleia nas ruas no que seria o último dia das negociações, diversos cartazes e clamores dos participantes denunciavam o corporativismo da conferência e apontavam que o poder de mudança da atual conjuntura climática está no povo e não dentro dos salões de negociação da conferência. Vemos que é certo que as alternativas estavam do lado de fora, não de dentro. Resta avançar em consensos também na sociedade civil organizada para buscar caminhos comuns sobre o devir e como pôr em prática tantos saberes compartilhados.

Referências

CONFERENCE OF PARTIES. Glasgow Climate Pact. UNFCCC, novembro 2021. Disponivel em: <https://unfccc.int/sites/default/files/resource/cop26_auv_2f_cover_deci…;. Acesso em: 22 novembro 2021.

COP26 COALITION. COP26 Coalition, 2021. Disponivel em: <https://cop26coalition.org/&gt;. Acesso em: 22 novembro 2021.

COP26 COALITION. Counter summit – People’s Summit for Climate Justice kicks off with 12 thousand registrations. COP26 Coalition, novembro 2021. Disponivel em: <https://cop26coalition.org/counter-summit-peoples-summit-for-climate-ju…;. Acesso em: 22 novembro 2021.

COP26 COALITION. The People’s COP26 Decision for Climate Justice. COP26 Coalition, 2021. Disponivel em: <https://cop26coalition.org/the-peoples-cop26-decision-for-climate-justi…;. Acesso em: 22 novembro 2021.

LO, J. Frustrations mount at Covid barriers to participation in Cop26 negotiations. Climate Home News, 2021. Disponivel em: <https://www.climatechangenews.com/2021/11/02/frustrations-mount-covid-b…;. Acesso em: 22 novembro 2021.

YI, B. L.; ROWLING, M.; FOUNDATION, T. R. Global South climate activists doubt COP26 participation over vaccine delay. Reuters, 2021. Disponivel em: <https://www.reuters.com/article/climate-change-politics-coronavirus-idU…;. Acesso em: 22 novembro 2021.

 

[3] De acordo com o site da COP26 Coalition, 12 mil pessoas se registraram para os eventos digital e presencial da Cúpula dos Povos.

[4] O diretor da Rota pelo Clima da Costa Rica, Adrián Martánez, mencionou que a sua equipe teve que encarar diversos desafios logísticos para chegar em Glasgow, incluindo a decisão de quem iria e se iria alguém da organização.

[5] A Climate Action Network International divulgou no dia 07 de setembro de 2021 uma declaração trazendo os argumentos para sustentar a necessidade de adiamento da COP26. https://climatenetwork.org/2021/09/07/can-cop26-postponement-statement/

[6] De acordo com Marina Grossi do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), em um side event da COP26 sobre Neutralidade Climática no dia 11 de novembro de 2021.