Do território ao caos

A colonização da Amazônia envolveu a fabricação de um caos fundiário baseado na ideia de que a região era “terra de ninguém”. Hoje, os interesses dos mesmos grupos seguem ameaçando a destinação de terras para modalidades de proteção e reconhecimento de direitos tradicionais.

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Do território ao caos

A Amazônia é reconhecida historicamente como um lugar onde as populações tradicionais, indígenas e originárias estão em constante risco em seus territórios, e contam com uma baixa presença do Estado para resolução de problemas socioambientais. De fato, mais do que qualquer outro bioma no Brasil, na Amazônia há terras públicas sem destinação e altos índices de conflitos de terra. Essas indefinições relacionadas à terra e ao território existem na Amazônia desde o período colonial, que tinha como peça fundamental a apropriação de territórios e violenta exploração da terra, das florestas e das águas.

Tal projeto colonial foi atualizado no século XX, durante a ditadura civil-militar do Brasil, e segue sendo sofisticado. Mas por que, então, com o retorno de governos democráticos, não houve a superação deste caos fundiário, mesmo com disponibilidade de novas tecnologias de georreferenciamento e de digitalização de registros de imóveis, além de planos de ordenamento territorial? Para responder, é preciso compreender melhor como estas indefinições fundiárias são produzidas e reproduzidas.

Desde o surgimento da propriedade privada no Brasil, em 1850, o acesso à terra passou a seguir um processo caro e burocrático que só permitia o registro de imóveis a pessoas capitalizadas (com capital social, político e monetário). Isso significava pessoas brancas, privilegiadas durante e depois da escravidão. Só que, após a Proclamação da República no Brasil em 1889, as formas de mapeamento e registros da propriedade pouco avançaram.

A adoção pelo Brasil de um sistema de registro de terras, que posteriormente se consolidou no modelo latino de direito registral, foi uma opção burocratizada e com procedimentos coniventes à estrutura classista e racializada da sociedade brasileira. A autoridade delegada pelo Estado para lavrar testamentos e escrituras era pertencente aos cartórios compostos por famílias que controlavam não somente os registros, mas o acesso à informação.

Sistematicamente são atualizadas as ofensivas que possibilitam que áreas públicas invadidas sejam regularizadas como imóveis privados.

Grilagem Premiada

A demanda por organização da terra a partir da intervenção estatal, ou seja, a governança de terras, segue no período republicano com o interesse de manter os latifúndios e de deslocar as famílias camponesas empobrecidas para outras regiões, mas principalmente para atender ao estabelecimento do colono imigrante europeu, notadamente “branco”. Como parte do projeto colonial surgido no Brasil Império, de desenvolver a futura nação brasileira embranquecida, a colonização surge com esses dois interesses: favorecer a imigração europeia e permitir a manutenção do latifúndio.

A relação entre a imigração europeia e o caos fundiário seria, portanto, uma iniciativa institucionalizada do Estado. As primeiras formas de colonização do século XX partiram do pressuposto de um vazio demográfico, de que o interior do Brasil era terra de ninguém (terra nullius) e que poderia ser “distribuído”. Isso impulsionou o projeto de ocupação das terras de beira de estrada por migrantes brancos, e, posteriormente, a entrega dessas terras para estabelecimento de empresas. Nesse sentido, a Amazônia foi palco da combinação da imigração, colonização e integração do Brasil, que vai desde a marcha para Oeste, com Getúlio Vargas, em 1938, aos governos militares de 1964-1985, responsáveis pelas aberturas de grandes rodovias e pela criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que distribuiu centenas de milhares de hectares – onde já viviam diversos povos tradicionais – para empresas e grandes proprietários.

 

A questão das terras não destinadas

Os governos estaduais são os principais responsáveis por terras não destinadas na Amazônia e a maioria das leis estaduais incentiva a contínua invasão de terras públicas.

A Amazônia como terra nullius é um discurso e uma prática reiterada de governos e das empresas que, de maneira eficaz, têm atendido aos seus interesses. Estabelecer a terra nullius é negar as presenças e relações ancestrais, tradicionais e de longo prazo com a terra. Isso impacta na negação de terras indígenas, territórios quilombolas, comunidades tradicionais e de posseiros.

Desde 1984, com o Plano Nacional de Reforma Agrária, e do status atribuído ao meio ambiente e aos direitos étnicos com a Constituição de 1988, a forma de pensar a terra e território mudou. As políticas de ordenamento territorial conduzidas desde então, contando ainda com a cooperação internacional, têm o desafio de superar o caos fundiário. Isso significa enfrentar grupos aristocráticos e empresas capitalistas emergentes. Esses grupos se beneficiaram das indefinições fundiárias na Amazônia para promover grilagem de terras.

No início dos anos 2000, houve um considerável avanço no combate a esta desordem fundiária com políticas de destinação de terras para diversas modalidades de Unidades de Conservação (UCs), como as chamadas Reservas Extrativistas, as Florestas Nacionais, os Projetos de Assentamento (sejam convencionais ou ambientalmente diferenciados), além de Terras Indígenas (TIs) e Terras Quilombolas (TQs). No entanto, os desafios continuam, especialmente sobre as tentativas de retrocessos, como a redução, requalificação e cancelamento desses instrumentos jurídicos de destinação de terras.

Algumas terras federais (glebas) arrecadadas na década de 1970 na Amazônia tiveram somente em 2022 seus registros atualizados, com georreferenciamento, pelo Governo Federal. A regularização (titulação) dessas áreas só ocorre quando o comprador inicia o oneroso e burocrático processo de registro, que ao final apaga qualquer forma anterior de relação com a terra. A terra nullius como discurso e prática é reiterada para a promoção da ideia de que o uso e destinação de terras seja sempre para determinados sujeitos, que têm classe e raça definidas.

O crime de grilagem de terras consiste na apropriação ilegal de terras públicas ou de terceiros através de títulos falsos de propriedades. O termo “grilagem” vem de uma prática antiga de colocar esses títulos em caixas com grilos, para que os insetos os deixassem amarelados, dando a impressão de serem antigos.

O livro branco da grilagem de terras