Quando nos perguntam qual o compromisso da Fundação Heinrich Böll com os movimentos de mulheres buscamos na história de sua formação a resposta. A Böll nasce do movimento ambientalista, mas também de dois outros movimentos, o LGBT (como era chamado na época) e o movimento de mulheres. Vinculada ao Partido Verde alemão, ela nasce desses movimentos, tornando o compromisso com as pautas que envolvem o feminismo e a promoção dos direitos das mulheres eixos fundamentais e cotidianos. Falar de Direitos Humanos e democracia é garantir que vozes silenciadas sejam ouvidas na sociedade, e assim que possam ser inspiração de políticas e ações para o fim das desigualdades de gênero.
Nesses 22 anos de atuação no Brasil apoiamos diversas organizações dos movimentos de mulheres. Atuantes, esses movimentos têm sofrido com a criminalização, violência política e preconceito. Não está fácil trabalhar por causas importantes, como a descriminalização do aborto, o fim do racismo estrutural e a preservação das florestas e seus povos, em especial nos anos de governo Bolsonaro. Foram anos difíceis. Mas também de redirecionamento de forças e de construção com outros atores. A experiência desses tempos na área de gênero gerou novos saberes, outras reflexões, que podem agora, no atual momento político serem utilizadas para o monitoramento e formulação de políticas, além de proporcionar um novo olhar para o diálogo com a sociedade, já que estamos lidando com discursos de ódio e polarização da sociedade. A tarefa agora é construir junto com outros atores caminhos para desqualificar os discursos da extrema direita no debate público, revelar seus apoiadores financeiros e monitorar os parlamentares fundamentalistas.
Importante ressaltar também que as mulheres deram uma contribuição decisiva para a democracia nas últimas eleições. Segundo DataFolha[1] o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva tinha 50% das intenções de voto do eleitorado feminino, contra 41% do adversário. Para alguns analistas foram mulheres, negros e pessoas pobres que deram a vitória a Lula. Algumas de nossas parceiras se engajaram em campanhas para fortalecer que o eleitorado votasse em candidaturas femininas, vinculadas às pautas pelos direitos e justiça social.
A renovação dos movimentos de mulheres
Ao longo dos últimos anos temos observado o surgimento de novos coletivos feministas, vinculados aos movimentos culturais das periferias das cidades; grupos formados dentro das universidades devido a inserção de uma juventude que chega na esteira das políticas de cotas; coletivos de favelas formando novas organizações – institucionalizadas ou não. Foram esses grupos, junto com instituições já consolidadas que foram para as ruas mostrar seu descontentamento com o conservadorismo fundamentalista e as políticas vinculadas a essa perspectiva.
A prática nas comunidades e periferias dos centros urbanos e rurais são o grande propulsor da renovação do pensamento feminista brasileiro hoje, que busca agregar outras visões que não aquelas produzidas pelo eurocentrismo. A visão decolonial construída na América Latina bebe também da expansão e renovação do feminismo, com contribuições importantes da teoria queer e do feminismo negro contemporâneo. E são elas, as mulheres negras, que estão na base da pirâmide social e sofrem de forma perversa o racismo cotidiano que têm dado lições de resiliência e apontado perspectivas para o futuro. Neste sentido, desde seu começo apoiamos o Julho das Pretas, uma iniciativa do Odara Instituto da Mulher, que ao longo de oito anos reuniu milhares de mulheres negras para discutir futuro, racismo, violência, direitos, cultura e política, em rodas de conversa, debates e oficinas. O debate contra o racismo está nas redes sociais, nas ruas, nas delegacias, promovendo políticas que agora estão sendo retomadas pelo governo atual. Num Brasil que silencia as minorias, esse é um feito notável.
A ação desses grupos nas periferias das cidades foi fundamental para a ajuda humanitária durante a pandemia. A solidariedade criou laços para diminuir o flagelo da fome e da violência contra as mulheres.
A crise ambiental e o papel das mulheres
As mulheres estão ao mesmo tempo preservando o meio ambiente e sendo criminalizadas. Esse é o diagnóstico apontado por nossa parceira Articulação Pacari: “as raizeiras são centrais à preservação do Cerrado, mas constantemente têm suas práticas de produção de remédios caseiros criminalizadas”. Todas as parceiras e parceiros com os quais a Fundação atua ressaltam que o caminho para a transição para uma economia pautada na sociobiodiversidade depende da conexão com o território e as pessoas e comunidades que nele habitam. A crise ambiental só será de fato combatida caso esses grupos e comunidades sejam ouvidos e façam parte das soluções. Não são folclóricos ou um estorvo ao progresso. Eles são fundamentais para a preservação das florestas, das águas, de um modo de vida que respeita o meio ambiente e o preserva, porque eles existem a partir do território.
Os direitos sexuais e reprodutivos e a violência contra as mulheres
Parece que sempre no 8 de março, dia Internacional das Mulheres, voltamos a histórias antigas: a violência contra a mulher ou, de forma geral, o quanto avançamos em relação a políticas de promoção de direitos para esse grupo. Ainda sofremos com a violência, que nos anos da pandemia aumentou sensivelmente. A lei que autoriza as mulheres a fazerem o aborto no Brasil está sofrendo constantes ataques por parlamentares da extrema direita, que querem criminalizar o aborto de todas as formas. Houve um desfinanciamento nos anos Bolsonaro para o tema do aborto e da violência. Lembrando que o abortamento é a 4ª causa de morte materna no país. Os recentes casos veiculados na mídia de que meninas grávidas por conta de estupro foram expostas, tiveram seus direitos violados pelo Judiciário, mostram de forma contundente o quanto o tema ainda é tabu. Mesmo quando está em jogo o caso de uma menina parte da sociedade segue inflexível.
A Fundação apoia há mais de 20 anos duas parceiras feministas que estão vinculadas aos avanços nas políticas para coibir a violência contra as mulheres: o CFEMEA e o SOS Corpo. Essas organizações foram impulsionadoras de processos de acompanhamento do orçamento público para garantir políticas para as mulheres e responsáveis pela mobilização dos movimentos de mulheres na construção de redes de solidariedade e autocuidado. Muito dos avanços que vemos avaliamos como positivos nesse 8 de março se deve ao conjunto de organizações como essas que apoiamos.
A violência política contra as mulheres
A partir da onda bolsonarista grupos radicais conseguiram se organizar e hoje colocaram as feministas como inimigas a serem combatidas, a partir de discursos misóginos e racistas. Não é toa que a violência política cresceu. A Fundação tem apoiado o Instituto Marielle Franco para construção de ferramentas legais contra a violência política. O Instituto construiu um documento com 37 recomendações apresentadas ao Tribunal Superior Eleitoral e à Procuradoria Geral da República (PGR). Nessa interlocução o TSE abriu um canal para as pessoas fazerem denúncias ao Ministério Público Eleitoral. Constituiu-se simbolicamente a Bancada Marielle, com 100 parlamentares nas três esferas (municipal, estadual e federal) comprometidas com as práticas e pautas sistematizadas na Agenda Marielle Franco, que diz respeito a implementação de políticas e legislações voltadas para o respeito a pessoas LGBTQI+, combate ao racismo estrutural e à violência contra a mulher. Em 2023, 32 deputadas federais e estaduais tomaram posse, das quais podemos citar nas Assembleias Estaduais as deputadas Laura Sito (PT-RS), Dani Balbi (PCdoB-RJ), Dani Portella (PSOL-PE) e Leci Brandão (PCdoB-SP) e na Câmara Federal, Benedita da Silva (PT-RJ), Erika Hilton (PSOL-SP), Carol Dartora (PT-PR) e Jack Rocha (PT-ES).
Os casos de violência política, seja contra parlamentares ou o assédio sofrido pelas organizações da sociedade civil, algumas delas parceiras da Fundação, sinalizam que é necessário implementar protocolos de segurança e cuidado. Seja no digital ou na vida real, a Fundação realizou apoios para oficinas de autocuidado entre ativistas, ou cuidados digitais para que os coletivos e organizações pudessem construir ferramentas e argumentos contra os discursos de ódio que viraram a tônica das relações nas redes sociais, ou mesmo como proteger as defensoras de direitos humanos.
O feminismo que olha o mundo e seus problemas
Muito do trabalho da Fundação e das organizações que apoiamos é sempre um exercício de renovação de forças, redirecionar estratégias e construir soluções para os problemas estruturais e cotidianos que enfrentamos. Neste sentido, pôr fim às desigualdades de gênero é uma tarefa comum a todos nós. Sempre será um processo complexo de gerar o incômodo, a reflexão, exigir que políticas sejam implementadas na sua totalidade e mostrar que o feminismo é uma lente poderosa na busca por um mundo mais justo e democrático.
Que em mais um dia 8 de março possamos olhar para trás e ver os caminhos que percorremos e pensar: o que podemos fazer para que no próximo 8M possamos perceber que caminhamos um pouco mais?