Encerrando o março de lutas, lideranças de organizações feministas falam sobre obstáculos e superações para a defesa dos direitos das mulheres
Colaborou Marilene de Paula
A promoção dos direitos das mulheres ocupa um lugar central e permanente em nosso trabalho no Brasil, na Alemanha e em todos os mais de trinta escritórios internacionais da Fundação Heinrich Böll. No Brasil historicamente as mulheres, principalmente as negras e periféricas, têm seus direitos violados, mas esta tendência vem piorando drasticamente. Vivemos o aumento do feminícidio, cortes nos investimentos públicos para o enfrentamento à violência contra as mulheres, desmonte de políticas públicas pró direitos sexuais e reprodutivos, além do fortalecimento de uma narrativa conservadora fundamentalista. Agravando este quadro, os impactos da pandemia do COVID-19 tem dimensões de gênero relatadas no mundo todo, como o aumento da violência doméstica e a diminuição da capacidade de serviços de apoio para responderem a esses casos.
Durante o mês de março até o início do período de isolamento social, como ação para conter a pandemia, diversos coletivos feministas, ONGs, redes do movimento de mulheres, redes e organizações do campo antirracista promoveram mobilizações para denunciar as violações de direitos das mulheres e reforçarem suas demandas. Entre elas estavam parceiras da Fundação como AMB - Articulação de Mulheres Brasileiras, Católicas pelo Direito de Decidir, Cfemea Feminista, Marcha Mundial das Mulheres, Odara - Instituto da Mulher Negra, SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia. Convidamos algumas lideranças dessas organizações para falarem dos principais desafios que as mulheres enfrentam no Brasil e quais os caminhos estão sendo traçados para superá-los. Nossa coordenadora de direitos humanos, Marilene de Paula, também contribuiu com a perspectiva da Fundação na busca pela garantia dos direitos das mulheres.
Boa leitura!
Ana Gualberto - Mestra em Cultura e Sociedade no IHAC - Instituto de Humanidades Arte e Cultura Milton Santos na UFBA - Universidade Federal da Bahia, formada em História na Faculdade de Formação de Professores - FFP, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Coordenadora de ações com comunidades tradicionais da organização KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço
Fundação Heinrich Böll Brasil: Quais são os maiores desafios para a garantia dos direitos das mulheres de terreiro e quilombolas no Brasil hoje e como vocês os estão enfrentando?
Ana Gualberto: O maior desafio enfrentado nos últimos anos tem sido repensar estratégias de ação junto a sociedade, tendo em vista que a participação e o diálogo com o poder público tem se tornado cada vez mais distante. E essa foi uma aposta dos últimos 15 anos.
O aumento da violência contra as mulheres, nos âmbitos urbano e rural, os confrontos com os diversos grupos fundamentalistas, trazem para as mulheres quilombolas e de terreiros a necessidade de se fortalecer mais ainda. Estar em grupo, juntar experiências e expectativas, trocar informações e principalmente apoiar-se, não estar só, perceber-se como integrante de um projeto maior, que é de uma sociedade para todas as pessoas.
Outro ponto relevante é a manutenção dos processos de autonomia das mulheres, econômica, política e emocional também. Neste sentido, o aumento do conservadorismo ameaça diretamente os grupos organizados, bem como as diversas práticas conservadoras de diversas formas de organização social como as igrejas, associações, sindicatos, entre outros.
Para enfrentarmos este momento histórico de diminuição dos direitos com o aumento das diversas violências, apostamos no fortalecimento das redes e coletivos. Apostamos na aproximação de grupos, na construção de ações conjuntas e no revisitar estratégias já utilizadas por outros grupos e em outros momentos históricos. A resistência do povo negro se dá desde o momento do sequestro no continente africano e se mantém até o dia de hoje. Sobreviveremos e ficaremos cada vez mais fortalecidas.
Valdecir Nascimento e Naiara Leite – Odara Instituto da Mulher Negra
Valdecir Nascimento é coordenadora executiva do Odara Instituto da Mulher Negra. Ela é também Coordendora Executiva da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), do Fórum Permanente da Igualdade Racial (FOPIR) e idealizadora da Rede de Mulheres Negras do Nordeste. Ativista incansável da luta contra o racismo, sexíssimo e Lgbtfobias e articuladora da Marcha das Mulheres Negras (2015) e Parceira da Escola Transnacional e Decolonial de Feminismo Negro.
Naiara Leite - Coordenadora do programa de comunicação da Odara, educomunicadora e mobilizadora comunitária da Cipó Comunicação Interativa. Mestranda no Programa em Comunicação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (PPGCOM/UFRB).
Fundação Heinrich Böll Brasil: Quais são os maiores desafios para a garantia dos direitos das mulheres negras no Brasil hoje e como vocês estão os enfrentando?
Valdecir Nascimento e Naiara leite: Os maiores desafios para garantir os direitos das mulheres negras está centrado no reconhecimento de que existe uma estrutura que articula racismo e sexismo e, portanto, agudiza a situação de violência a qual nós estamos submetidas. Essa articulação afasta o sujeito mulher negra dos seus direitos. Enquanto a luta por direitos no Brasil for de base generalista as mulheres negras vão caminhar gritando para serem escutadas na sua afirmação de que esses direitos não as atingem.
Entender a articulação do racismo e do sexismo estrutural é fundamental para a construção de processos de lutas coletivas a fim de impactar essas sujeitas que estão na base da pirâmide. Por exemplo, no Brasil não é possível relacionar pobreza sem raça e gênero, violência sem raça e gênero; exclusão sem raça e gênero. Neste sentido, não é possível comparar com nenhum outro fenômeno de desigualdade as situações de violência e violações em que estão submetidas às mulheres negras brasileiras.
Portanto, historicamente o movimento de mulheres negras vem denunciando que ser mulher negra define o seu lugar na sociedade. Manter as mulheres negras mobilizadas na reivindicação da luta por direitos. Atuamos na luta pelo enfrentamento à violência, pela produção de novas narrativas. Essas são estratégias para assegurar esse reconhecimento social e político. Ou seja, feminismo sem combate ao racismo não garante direitos.
Natalia Mori - socióloga, com mestrado em Sociologia Urbana e ativista feminista. Desde 2003 é parte da equipe do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), uma organização não governamental feminista antirracista localizada na capital do País – Brasília. Natalia dedicou sua vida profissional para lutar pelos direitos das mulheres, advogando para a garantia de leis que melhorem a vida das mulheres, bem como assegurando recursos públicos para a implementação dessas leis.
Priscilla Brito - mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ) e Assessora Parlamentar do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).
Fundação Heinrich Böll Brasil: Quais são os desafios do feminismo no tema dos direitos sexuais e reprodutivos e como podemos superá-los?
Natália Mori: São muitos os desafios do feminismo nesse ano de 2020. As manifestações do 8 de março, em todo país, demonstraram a capacidade de mobilização das mulheres e o enraizamento do feminismo no Brasil, além de expressar as principais agendas do movimento. Com relação aos direitos sexuais e reprodutivos, um grande desafio é avançar na construção desta luta sem dissociá-la do enfrentamento ao conjunto do projeto (neoliberal, conservador e autoritário) do governo Bolsonaro. É um governo que destrói os direitos da classe trabalhadora, o direito à saúde e à natureza. Mesmo que apareçam tensões entre os poderes Legislativo e Executivo, é evidente que no Congresso Nacional se encontram fortes aliados de Bolsonaro, sobretudo aliados de seu projeto moral-conservador.
São muitos os projetos de lei propostos que retrocedem os direitos sexuais e reprodutivos. Temos acompanhado e analisado criticamente tais proposições, que reforçam a linha do “bolsa-estupro[1]”, e alguns projetos visam acabar com qualquer possibilidade de aborto legal. Chama a atenção que, na justificativa dos projetos, o foco é na maioria das vezes a criança, ou a figura da gestante, o sujeito mulher desaparece. Além dos projetos em âmbito federal, temos acompanhado como a mesma linha é organizada nos estados e municípios, com projetos de teor semelhante e ainda mais perversos. Tais projetos no Congresso estão em consonância com a moral conservadora e misógina de Bolsonaro.
Essa disputa, a nosso ver, se expressa em tais proposições, mas não se originam no Congresso, nem é este o espaço para nossa intervenção neste momento de defensiva. Há uma atuação incisiva para fechar os serviços de aborto legal, uma ofensiva nos municípios. Estamos atentas às clínicas que atuam para convencer as mulheres a não abortarem, que seguem a linha de setores antidireitos organizados internacionalmente, inclusive com indícios de financiamento norteamericano. Em São Paulo, no ano passado, enfrentamos uma situação muito complicada, quando o movimento Terço dos homens passou 40 dias na frente do hospital Perola Byton, que garante o direito ao aborto legal. Interpelavam as mulheres que tinham direito ao aborto legal, hostilizava as mulheres e constrangia os e as trabalhadoras do hospital. Frente à esta situação, nos somamos à outras organizações para manter uma presença feminista e de apoio às mulheres.
Renata Moreno e Nalu Faria – Sempreviva Organização Feminista
Nalu Faria é psicóloga, com especialização em Psicodrama Pedagógico (Getep) e em Psicologia Institucional (Sedes Sapientiae). Atua na Sempreviva Organização Feminista (SOF) desde 1986, na qual desenvolve atividades de assessoria e formação feminista com grupos de mulheres, ONGs e gestores públicos. Coordenou várias publicações da SOF
Renata Moreno é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Integra a equipe técnica da SOF desde 2005. Com Nalu Faria, organizou diversas publicações. Integra a Rede Economia e Feminismo (REF) e a coordenação nacional da Marcha Mundial de Mulheres.
Fundação Heinrich Böll Brasil: Quais são os desafios do feminismo no tema dos direitos sexuais e reprodutivos e como podemos superá-los?
Nalu Faria e Renata Moreno: Na SOF temos avaliado que um grande desafio é manter e ampliar a organização permanente das mulheres no feminismo, combinando formação e atividades de diálogo com a sociedade e construção de forças. Para isso temos visto como uma estratégia importante a produção de análises, de materiais educativos para a formação feminista e a construção de alianças que é fundamental tanto para a resistência, como para a construção de alternativas. Para enfrentar a política de Bolsonaro, os projetos de lei e a ação misógina e conservadora de grupos anti-direitos em todo o Brasil, é fundamental reconstruir, na sociedade, um processo de luta capaz de re-qualificar a política, que nos últimos anos foi muito desqualificada com fake news, ausência de debate real, perseguição e criminalização de organizações. Assim, nos enfrentamos com a conjuntura imediata, buscando colocar barreiras para mais retrocessos em geral, e nos direitos sexuais e reprodutivos em geral, mas tendo como horizonte a necessidade de reconstrução de um projeto de largo alcance, para que possamos retomar outros valores na sociedade e avançar nos direitos, no sentido da liberdade e autonomia das mulheres, com justiça social. Como o 8 de março demonstrou em todo o país, isso passa por enfrentar o governo Bolsonaro, e derrotá-lo como um todo.
Marilene de Paula - Fundação Heinrich Böll Brasil - Coordenadora de Programas e Projetos da Fundação, na área de Direitos Humanos. É historiadora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Organizou juntamente com instituições da sociedade civil campanhas e debates contra a brutalidade policial e pela defesa dos direitos humanos.
Fundação Heinrich Böll (comunicação): Como uma organização política internacional como a Fundação pode contribuir para a ampliação dos direitos das mulheres?
Entendemos que ter uma sociedade civil atuante e autônoma é condição essencial para o funcionamento da democracia e garantia de direitos humanos. Ao longo dos 20 anos com escritório aberto no Brasil, a Fundação tem apoiado diversas instituições e movimentos sociais brasileiros, com recursos financeiros, mas também na solidariedade e diálogo na Alemanha e na Europa. O apoio às organizações, movimentos sociais e coletivos trazem resultados concretos, contribuiu nos últimos anos para desenvolver projetos de cobrança das autoridades para construção de leis mais severas em termos de violência contra as mulheres, como a Lei Maria da Penha, e também para garantir direitos sexuais e reprodutivos, construir alianças políticas entre diversas organizações do movimentos de mulheres, além de outras iniciativas.
Temos hoje desafios tremendos que dizem respeito às consequências da ampliação dos discursos de ódio na sociedade, tendo as mulheres feministas como alvo, além de grandes retrocessos em termos daquilo que foi garantido por políticas e legislações a partir de uma luta histórica por direitos.
Nos próximos anos continuaremos monitorando as políticas para as mulheres, contribuindo com parceiros e aliados para impedir retrocessos sociopolíticos e isto significa nos posicionarmos contra a violência e o racismo estrutural que atinge as mulheres, em especial as mulheres negras.
[1] Chamado de “bolsa estupro”, o projeto de lei que existe desde 2007 e pretende auxiliar financeiramente mulheres estupradas que decidirem prosseguir com a gestação e dar à luz. A proposta prevê que a pensão alimentícia e outros custos do sustento da criança sejam pagos pelo estuprador. Caso ele não seja identificado, o custeio deve ser feito pelo poder público.