Em 2017 e 2019 foram lançadas duas edições do webdossiê Flexibilização da legislação socioambiental, que analisaram o cenário grave e progressivo de desregulação da agenda socioambiental no país. Desde então, esse quadro vem se intensificando: seja pela contínua desestruturação e reestruturação normativa e institucional analisada pelos dossiês, seja por suas consequências, já expressas pelo aumento exponencial dos incêndios florestais, do desmatamento na Amazônia e da violência no campo.
Esses efeitos apontam uma conexão, talvez não tão evidente, entre a problemática ambiental e a estrutura fundiária e de ocupação e uso da terra no país. Não por acaso as principais fontes de emissão de gases de efeito estufa no país decorrem de mudanças de uso da terra, que incluem, fundamentalmente, a derrubada de florestas para dar lugar à pecuária e à produção agrícola em larga escala.
Dinâmica que, historicamente, acompanha o modelo expansionista de ocupação territorial no Brasil, em que ganhos de produtividade são alcançados por meio da ampliação da escala de produção e do consequente avanço sobre novas fronteiras. Para se viabilizar, esse modelo sempre se apoiou na ausência de uma política efetiva de reforma agrária e de desconcentração da propriedade da terra, impondo-se por meio de um processo histórico de exclusão da maioria dos cidadãos do acesso à terra.
Se não bastasse o fato de que apenas 1% do total de estabelecimentos rurais concentra 47,52% das terras agrícolas do país[1], o permanente avanço sobre novas fronteiras acirra a disputa por terras públicas, destinadas e devolutas.
As primeiras, compreendem as terras já destinadas aos usos que a Constituição Federal estabelece como prioritários. Estima-se, no entanto, que pelo menos 64,5 milhões de hectares[2] de terras públicas ainda não foram destinados e são compostos principalmente por florestas, pertencentes aos estados ou à União. Florestas comumente ocupadas por povos indígenas, comunidades tradicionais e camponeses excluídos do acesso estável à terra.
As devolutas abarcam as terras presumidamente públicas, embora seus limites exatos e localização ainda não sejam conhecidos pelo poder público. Estima-se que pelo menos 17% do território brasileiro[3] têm domínio ou propriedade desconhecido pelo Estado brasileiro. Assim como as demais terras públicas, as terras devolutas, além de tradicionalmente ocupadas por agricultores familiares e povos e comunidades tradicionais, são pressionadas permanentemente pela grilagem, prática que consiste na apropriação privada, irregular e criminosa de terras públicas, geralmente acompanhada de desmatamento, fraude de documentos e violência contra as comunidades que tradicionalmente as ocupam.
Ao lado da desapropriação de terras privadas para fins de reforma agrária (medida fundamental para desconcentrar a terra no país), a Constituição estabelece que a destinação de terras públicas deve atender aos propósitos de democratização do acesso à terra e também à criação de espaços ambientalmente protegidos.
Concretamente isso significa que dentre as prioridades de destinação das terras públicas estão: as políticas de reforma agrária e de reconhecimento de direitos territoriais a povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais e de proteção ambiental. Essas destinações as mantêm – de forma temporária ou permanente – fora do mercado, como terras públicas designadas à conservação ambiental e/ou ao usufruto dos seus destinatários (assentados da reforma agrária, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais). Um dos objetivos, ao retirá-las do mercado, é garantir maior segurança fundiária a esses sujeitos e, assim, evitar que, sob pressão de interesses econômicos, percam suas terras.
No entanto, desde 2016, e especialmente após a eleição de Jair Bolsonaro, em 2019, se intensificaram as tentativas de liberar, de maneira acelerada, terras públicas ao mercado. Isso tem colocado em risco as possibilidades de democratização da terra e a própria conservação ambiental no país, já que sua mercantilização deverá transferi-las para as mãos de empreendimentos que representam alguns dos principais vetores do desmatamento no país.
Este webdossiê traça um panorama das estratégias institucionais por meio das quais isso vem ocorrendo. As análises aqui reunidas revelam um esforço organizado contra toda uma trajetória de conquistas legais e de aprendizado de políticas públicas ambientais e fundiárias. Tendo como pano de fundo um movimento veloz e agressivo de valorização da terra, o dossiê evidencia um processo permanente de desestruturação e reestruturação do aparato normativo e institucional.
De um lado, são paralisadas as políticas de reconhecimento de direitos territoriais, reforma agrária e de apoio à agricultura familiar, ao mesmo tempo em que é facilitada a regularização fundiária de terras griladas. De outro, é priorizada a entrega massiva de títulos de propriedade em assentamentos de reforma agrária que deverá estimular a venda de terras pelos assentados, em um contexto de cortes orçamentários em programas destinados à agricultura familiar e de sobreaquecimento do mercado de terras.
Em sentido semelhante, projetos de lei estão sendo apresentados para flexibilizar as normas ambientais a fim de facilitar a entrada de empreendimentos econômicos em terras destinadas. Aos ataques constantes aos órgãos ambientais se somam tentativas permanentes de intimidar e incriminar indígenas, movimentos sociais e organizações socioambientais e de desqualificar a atuação dos servidores e as normas ambientais. Além disso, novos dispositivos normativos - baseados puramente em mecanismos de mercado - são criados com intuito de privatizar bens comuns, como as florestas e unidades de conservação.
Na medida em que essas estratégias avançam, ampliam-se os conflitos e atualizam-se as formas historicamente truculentas de captura de terras, já vivenciadas pelo aumento exponencial dos conflitos agrários nos últimos 5 anos.
Caso esse processo venha a se consolidar, assistiremos a um novo ciclo de concentração fundiária no país, com graves consequências sociais e ambientais. A transferência ao domínio privado de um volume gigantesco de terras públicas, que deveria ser destinado à democratização do acesso à terra e à proteção ambiental, aprofundará as desigualdades sociais e, seguramente, ampliará os níveis de desmatamento e perda de biodiversidade no país.
Acesse o Webdossiê Flexibilização da Legislação Socioambiental Brasileira - 3ª edição na íntegra