Este artigo foi originalmente publicado na revista Perspectivas, editada em português e espanhol.
Primeiro país independente da América Latina (1804) e primeira nação negra soberana no hemisfério ocidental, o Haiti enfrenta desde então instabilidades políticas e sociais que prejudicam seu desenvolvimento econômico. Com cerca de 10,7 milhões de habitantes, é o país mais pobre do continente americano e um dos mais pobres do mundo.[1] Além disso, também está sujeito a catástrofes naturais como o terremoto que deixou 200 mil mortos em janeiro de 2010 e o furacão Matthew, que afetou cerca de 1 milhão de pessoas. Migrar para outros países é uma opção comum para haitianos que reúnem condições financeiras para essa aposta. Em torno de 4,5 milhões de haitianos (quase metade da população) vive no exterior.[2] E nos últimos anos, o Brasil também virou uma opção, somando-se a destinos tradicionais como Estados Unidos, Canadá e República Dominicana. Embora recente, a migração haitiana trouxe transformações importantes para o debate do tema no Brasil.
O Brasil como opção
O terremoto que atingiu o Haiti em janeiro de 2010 e praticamente destruiu a precária infraestrutura existente no país foi um motivo a mais para a migração de haitianos. Com um bom cenário econômico na época, o Brasil – presente no Haiti como chefe da MINUSTAH, a Missão das Nações Unidas para Estabilização do país após a queda do presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004 – também atraiu haitianos que migram em busca de melhores condições de vida. As obras feitas para a Copa do Mundo de 2014 e para a Olimpíada de 2016, por exemplo, serviam como atrativo para haitianos e outros imigrantes, embora não tenha existido uma política governamental para atrair imigrantes de qualquer nacionalidade.
Mesmo sem incentivos, entre 2010 e 2015 o Brasil recebeu cerca de 80 000 haitianos, de acordo com o Ministério da Justiça, sendo que 70 000 continuam no país. Destes, 45 000 têm emprego formal, segundo o Ministério do Trabalho, especialmente no abate de animais em frigoríficos, na construção civil e no setor de serviços. Com esses números, os haitianos são a nacionalidade estrangeira mais numerosa no mercado formal de trabalho brasileiro.
Precariedades e necessidade de mudanças
Até meados de 2015, a principal rota de entrada de haitianos no Brasil era por meio do Estado do Acre, depois de passarem por Peru ou Bolívia. Ao chegarem, procuravam se dirigir a outros Estados, em especial São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em todos os momentos da jornada, mas especialmente nos trechos terrestres, era comum a ação dos chamados “coiotes”, que cobravam até US$ 5 000 para levar os imigrantes ao território brasileiro. Após a rota, haitianos e outros imigrantes enfrentavam – e ainda enfrentam – um longo processo de regularização migratória. O modo mais rápido para os que chegam sem documentação é a solicitação de refúgio junto à autoridade migratória nas cidades de fronteira. Ele gera um protocolo que permite ao imigrante obter documentos provisórios, enquanto a solicitação é analisada pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare).
Esse processo pode levar meses e até mesmo anos para ter uma resposta definitiva, e o Brasil não reconhece a situação no Haiti como um fator que justifique um pedido de refúgio. Para tentar amenizar esse limbo e dar uma resposta à chegada crescente de haitianos, o governo brasileiro, por meio do Conselho Nacional de Imigração (CNig), criou em 2012 um visto de permanência concedido aos haitianos por razões humanitárias, o chamado “Visto Humanitário”, que possui validade de cinco anos. Com essa permissão, inicialmente emitida pela Embaixada brasileira no Haiti e limitada a 1 200 vistos por ano, o haitiano poderia vir diretamente para o Brasil em situação regular. Mas o limite e a burocracia para se obter o visto manteve ativa a rota migratória pelo Acre. Ela só começou a perder força quando uma nova medida do CNIg, publicada em 2013, revogou o limite de emissão de vistos por parte da Embaixada brasileira no Haiti e autorizou a emissão por Embaixadas brasileiras em outros países. Embora o visto humanitário seja considerado um paliativo do governo brasileiro, ele também é reconhecido dentro e fora do país como uma forma de responder rapidamente a questões migratórias urgentes, como foi o caso da migração haitiana.
Trabalho e crise
Outro fator que contribuiu para reduzir o fluxo de haitianos pelo Acre e para o país é a crise econômica que o Brasil enfrenta desde 2015, atingindo também os imigrantes. Um relatório do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) [3] mostra que, em 2015, foram 54 086 imigrantes admitidos no mercado formal brasileiro, contra 48 039 demissões. Mas o saldo fica negativo se considerados os três últimos meses do ano – 9 687 contra 11 481. A tendência é parecida entre os haitianos, com 28 920 admissões e 21 918 demissões em 2015, mas dezembro já apresenta números negativos (1 357 contra 1 729) que devem ser agravados no balanço de 2016. O estudo não traz dados exatos sobre qual o destino dos imigrantes demitidos, mas pesquisadores acreditam que eles busquem a economia informal ou uma nova migração – no caso dos haitianos, pode ser dentro do Brasil, de volta para o Haiti ou até mesmo para outros países.
“Se em 2010 até 2014, esses haitianos que já estavam no Brasil incentivavam aos que ficaram no Haiti, na República Dominicana ou em outros países a virem para o Brasil, por sua vez, em 2015 e 2016, boa parte deles passou a desaconselhar aos familiares e conhecidos a virem para o Brasil, entre outros fatores, devido ao desemprego no país e pelo fato de se decepcionarem quando aqui chegaram, pelo baixo salário que ganham no país, bem como pelas discriminações raciais e pelas agressões verbais, psicológicas e físicas sofridas”, destacou o pesquisador haitiano Joseph Handerson, professor-adjunto da Universidade Federal do Amapá e estudioso da diáspora de sua terra natal.
Handerson lembra ainda que a desvalorização da moeda brasileira, o real, em relação ao dólar foi outro fator que atingiu os haitianos (a cotação do real chegou a quase a US$ 4 em 2015, uma depreciação de quase 100 por cento em relação a 2013). “Tal situação foi prejudicial, para os migrantes enviarem remessas de dinheiro para a manutenção dos familiares que ficaram no Haiti, e em outros países, onde residiam antes de decidirem vir ao Brasil”.
Transformações no Brasil
Embora não haja uma tendência de crescimento da migração haitiana para o Brasil para os próximos anos, tal presença já foi suficiente para gerar transformações e ajudou a mudar o debate sobre migrações no Brasil. Para a professora Rosana Baeninger, do Núcleo de Estudos da População da Universidade de Campinas, a presença haitiana ajudou a revelar uma série de contradições e lacunas existentes no Brasil em relação à temática migratória. “A migração haitiana foi protagonista para o Brasil se enxergar como um país que não oferece direitos. Nesses últimos cinco anos ela mostrou um Brasil despreparado, improvisado e pouco comprometido com os direitos sociais”.
A legislação em vigor atualmente no país, conhecida como Estatuto do Estrangeiro, é considerada um marco desse despreparo do Brasil em lidar com os fluxos migratórios, explicitado em parte pela migração haitiana. Instituído em 1980, o Estatuto prevê apenas deveres a serem seguidos pelo imigrante, restringe o acesso aos serviços públicos e ao mercado de trabalho e o vê como uma potencial ameaça à soberania nacional. As reivindicações para mudança dessa lei remontam à década de 1990, mas a presença haitiana e os problemas para regularização e atendimento dessa população nos serviços públicos ajudaram a reforçar o clamor de diversas entidades da sociedade civil organizada pelo fim do Estatuto.
Desde 2013 tramita no Congresso Nacional uma proposta, que contou com colaboração da sociedade civil, que cria uma nova Lei de Migração. Ela reconhece direitos e deveres dos imigrantes no Brasil, diminui burocracias e também prevê possibilidade de aplicação do chamado visto humanitário para outras nacionalidades, de acordo com a necessidade. Em 2015 ela foi aprovada pelo Senado e depois foi à Câmara dos Deputados, onde foi alterada e aprovada em 2016. Com essas alterações, precisou voltar ao Senado para nova avaliação. Entre as entidades que acompanham o tema existe a expectativa da lei ser aprovada este ano, mas não é possível precisar exatamente quando será a aprovação.
Outra mudança provocada em grande parte pela migração haitiana foi a presença da temática na mídia. Sem grande familiaridade com o assunto, ainda é comum ver em veículos de comunicação brasileiros os imigrantes e refugiados serem retratados como “fugitivos” ou “invasores”. No entanto, há ações que vão no sentido contrário. Uma delas é o Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil, [4] cartilha lançada em 2013 e que orienta meios de comunicação e profissionais a darem um tratamento mais humano à migração.
Lições para o presente e para o futuro
A aprovação da nova Lei de Migração pode ajudar a criar um ambiente mais propício para politicas locais voltadas à população imigrante, servindo até como contraponto às ações restritivas que têm sido adotadas em países desenvolvidos. Mas ainda sem uma diretriz nacional, são poucos os governos locais que criam mecanismos voltados para os imigrantes. Em geral, essas tarefas ainda recaem sobre entidades da sociedade civil ou religiosas. “Seria o momento oportuno de os governos municipal, estadual e federal iniciarem em conjunto a articulação de políticas migratórias eficientes, tal como a construção de uma Casa de Acolhida para migrantes e refugiados que chegam ou transitam pelo Acre, visto que se trata de uma região fronteiriça com Bolívia e Peru. Independente da diminuição atual do contingente de migrantes haitianos, sempre haverá outros migrantes circulando pelo Estado”, exemplifica Handerson.
Pode-se dizer que a migração haitiana ajudou a mostrar que o Brasil não está à parte no cenário migratório mundial e também precisa responder às demandas que surgem em seu território. Agir de forma coerente no âmbito global, nacional e local com o discurso humanitário que em geral apresenta em conferências internacionais é um dos grandes desafios do Brasil como nação e como sociedade nos próximos anos.
As lutas e conquistas de Júlia, a síntese de uma mulher migrante
por Glória Branco
Salários menores, preconceito e o acúmulo do trabalho reprodutivo e não remunerado. O desafio é ainda maior para as mais de 117 milhões de mulheres migrantes no mundo – 320 mil no Brasil– que buscam no trabalho o meio de alcançar uma vida digna.
Aos 51 anos, Júlia trabalha em um hospital há 12 anos como auxiliar de limpeza. Não foi fácil para ela deixar para trás seu passado de órfã na fronteira da Bolívia com o Peru. Seu primeiro trabalho foi no Brasil, quando chegou à cidade de São Paulo em 1982. Sem saber uma palavra de português, a jovem foi recebida por uma família para trabalhar como babá.
Trabalhava sem registro, apenas em troca de comida e um lugar para dormir. Os poucos amigos que fez, e que até hoje são a sua família no Brasil, eram nordestinos e assim ela já não se sentia tão só, pois eles também eram migrantes em São Paulo. Foram esses amigos que ensinaram Júlia a falar o português, andar e se adaptar à cidade e cozinhar.
Júlia casou com um brasileiro alguns anos depois e sua vida não ficou mais fácil. Fazia dupla jornada de trabalho e lutava para manter tudo em ordem. Com muita dificuldade conseguiu comprar um terreno em um bairro da Grande São Paulo. Construíram uma casa e logo depois a filha nasceu.
Trabalhou até os nove meses de gestação e vinte dias após o parto, voltou às atividades. Saia todos os dias de madrugada de sua casa num percurso de mais de duas horas até outro bairro da cidade para trabalhar, carregando a filha consigo, pois precisava amamentar. Dias seguidos nessa rotina levaram Júlia ao hospital com estafa. A orientação médica foi trabalhar menos, mas Júlia não tinha outra escolha. Ou era isso ou ela e sua família poderiam passar fome.
Quando a filha completou 5 anos, Júlia se separou do marido e deixou tudo para trás. Foi acolhida por suas amigas nordestinas e depois de quatro meses conseguiu alugar um cômodo. Na mesma época com o apoio de uma amiga brasileira, Júlia procurou pelo Consulado da Bolívia e conseguiu regularizar seus documentos. Como ela também havia retomado os estudos pode, pela primeira vez, trabalhar com registro em carteira.
Júlia se formou como auxiliar e técnica de enfermagem, mas ainda não exerce a profissão. A filha, hoje com 24 anos, estuda arquitetura na FAU/ USP. Segundo suas próprias palavras, “a vida do imigrante é sempre de muita luta, mas também de muitas vitórias”.
______________________________
[1] Segundo dados do Banco Mundial, Haiti registrou em 2015 um GDP de US$ 1 757 per capita, um dos mais baixos do mundo, em patamar semelhante ao de certas nações africanas. Disponível em: World Bank Haiti (2016): http://www.worldbank.org/en/country/haiti, [consultado em: 15 fevereiro 2017].
[2] Baeninger, Rosana (Org.) (2016): A Imigração Haitiana no Brasil, Paco Editorial, 1ª ed., Campinas, SP.
[Nota do editor: estes números diferem dos números indicados no mapa interativo dos Fluxos Migratórios Globais, elaborado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), com base no qual foi desenvolvido o infográfico da página 20. Estas diferenças se devem, provavelmente, ao tipo de fontes usadas pela pesquisadora Rosana Baeninger e pela OIM, à data da consulta e às discrepâncias inerentes à estimativa da migração ilegal].
[3] Observatório das Migrações Internacionais - OBMigra (2016): Relatório Anual. Disponível em: http://obmigra.mte.gov.br/index.php/relatorio-anual, [consultado em: 09 fevereiro 2017].
[4] Cogo, Denise; Badet, Maria (2013): Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores - Migrantes no Brasil. Bellaterra: InCom-UAB/IHU, São Leopoldo, RS. Disponível em: http://www.andi.org.br/documento/guia-das-migracoes-transnacionais-e-di…, [consultado em: 05 abril 2017].
Rodrigo Borges Delfim
Jornalista brasileiro especializado em temas relacionados a migrações, direitos humanos e políticas públicas. É fundador e editor do site MigraMundo, focado em noticias e debates sobre migrações no Brasil e em outros países.
http://migramundo.com/
Glória Branco
Jornalista brasileira com 15 anos de experiência e especialização em Relações Internacionais pela FESPSP. Escreve sobre direitos humanos, principalmente sobre refúgio e migração para o site de notícias independente MigraMundo. No passado, escreveu para a Revista Fórum e trabalhou como assessora de imprensa para grandes empresas nacionais e internacionais.