Tradução: Tatiana Oliveira
O Acordo de Paris entrou em vigor no dia 4 de novembro de 2016, dois dias antes da sessão de abertura da Conferência do Clima em Marrakesh. A maioria dos países havia ratificado o acordo junto aos legislativos nacionais. Nunca antes tantos países aderiram a um acordo internacional em tão pouco tempo – apenas dez meses. No último discurso do seu mandato, que aconteceu durante o encontro, o secretário-geral da ONU Ban Ki Moon elogiou a determinação dos países. Pouco tempo depois – a dois dias do início da reunião – o clima de excitação desapareceu abruptamente. A clara vitória eleitoral de Donald Trump – que havia chamado as mudanças climáticas de uma fraude perpetrada pelos chineses, além de questionar o leque de compromissos internacionais assumidos pelos EUA – deprimiu o clima em Marrakesh. O temor justificado de que Trump desse para trás no Acordo de Paris e revertesse todas as conquistas alcançadas junto ao seu antecessor, Barack Obama, ou até cancelasse a adesão dos EUA à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), dominou quase todas as discussões. O tema principal da conferência – as alterações climáticas na África – foi colocado na geladeira.
Havia muito em jogo para o continente: A África já sofre pesadamente os efeitos das mudanças climáticas. Os governos africanos estão demandando apoio financeiro e técnico, bem como assistência para a construção de capacidade institucional voltada para a implementação dos planos climáticos nacionais – e não só no que diz respeito à proteção do clima, mas, sobretudo, na questão muito mais urgente da adaptação às mudanças climáticas.
O “livro de regras” de Paris
“Você deve se lembrar disso/ ... / As coisas fundamentais se aplicam / Com o passar do tempo. ”
A maior parte das negociações em Marrakesh girou em torno da interpretação do acordo de Paris e da reiteração do “livro de regras” de Paris – uma espécie de manual operacional para a implementação de decisões variadas. Por trás de questões aparentemente técnicas e complexas espreitam, no entanto, conflitos altamente políticos.
Especificamente, discutiram-se como os países deveriam reportar seus respectivos esforços nacionais nas áreas de proteção climática, adaptação, financiamento do clima, transferência de tecnologia e construção de capacidades para o secretariado da UNFCCC. Além disso, como os países se responsabilizariam pela falta de implementação (implementation) ou observância (compliance).
Um banco de dados internacional deve ser criado para garantir a transparência e estabelecer alguns critérios para a comparação dos resultados alcançados. As negociações sobre esta questão foram, todavia, duras e carregadas de emoção: muitos países argumentaram que os elementos incluídos nos planos nacionais de mudanças do clima são voluntários e que a apresentação de relatórios sobre o progresso em sua concretização também deveria estar sob o seu critério. Além disso, um monitoramento excessivamente rigoroso foi avaliado como interferência na soberania nacional. Os países industrializados solicitaram que todos os países documentassem os resultados concretos da sua política climática. Muitos países em desenvolvimento só concordariam com isto caso fossem estabelecidas regras de reporte diferenciadas para países industrializados e para os em desenvolvimento. Entretanto, os países industrializados descartaram essa hipótese. Eles consideram a superação da divisão do mundo entre dois campos opostos de países como a maior conquista do Acordo de Paris. O tema da justiça climática (“equidade” no sentido de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” ou CBDR) está, portanto, ainda longe de ser eliminado como um ponto de discórdia no âmbito dos acordos alcançados em Paris.
Outro ponto para o livro de regras de Paris é a questão sobre como os países podem ser encorajados a manter suas promessas. Esta não é uma resposta fácil para um regime construído de baixo para cima, como o Acordo de Paris, que se baseia em compromissos voluntários em vez obrigações compulsórias negociadas no âmbito do CBDR. O acordo anterior, o Protocolo de Quioto, ainda oferecia algumas alternativas de ação a este respeito. Mas no mundo climático parisiense, a anuência às normas deve ser comprovada principalmente por meio da transparência e da prestação de contas. Em Marrakesh, no entanto, as circunstâncias das negociações foram completamente novas: a categorização usual de todas as Partes do acordo como países em desenvolvimento ou industrializados sob a UNFCCC fora suavizada pelo Acordo de Paris. Mesmo que formalmente a divisão persista, todos os países devem agora apresentar contribuições nacionalmente determinadas (NDCs). Ao contrário, portanto, do Protocolo de Quioto, todas as 197 partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas se comprometem com os objetivos climáticos – embora os países em desenvolvimento dependam de uma generosa ajuda financeira dos países mais ricos para realizá-los com êxito.
Para a sociedade civil internacional que esteve na Conferência, uma questão foi particularmente importante para elucidar as regras de implementação do Acordo de Paris: em que medida será possível criar as precondições para garantir que a duramente conquistada e vital linguagem dos direitos humanos, da igualdade de gênero, de uma transição justa e outros princípios-chave presentes no preâmbulo do Acordo de Paris sejam incorporados às várias etapas da sua implementação, bem como aos seus instrumentos, como, por exemplo, no critério da transparência? E quais países estão dispostos a defender esta agenda como campeões (champions) de direitos humanos? Aparentemente ainda não o suficiente. As questões relacionadas aos direitos humanos progrediram de maneira apenas incremental em Marrakesh, por exemplo, quando se faz referência aos direitos humanos nas discussões sobre o apoio aos países durante o seu processo de construção de capacidades ou sobre a inclusão destes direitos como diretriz para o monitoramento das NDCs.
Em contrapartida, os esforços fora do Acordo de Paris para o período até 2020, que visam estender o programa de trabalho sobre gênero e mudanças climáticas, estabelecido em 2014 na COP 20, em Lima, foram mais bem-sucedidos. O programa, inicialmente previsto para dois anos, foi prorrogado por mais três e o seu mandato inicial, cujo objetivo primordial buscou alcançar o equilíbrio de gênero nas delegações, foi intensificado e alargado. Ao se concentrar na formação de negociadores em todas as áreas de atuação da UNFCCC, o programa de trabalho visa fortalecer a integração de gênero, especialmente nos órgãos técnicos e naqueles vinculados a mecanismos de financiamento, assim como promover uma maior responsabilização de todas as partes e órgãos de negociação a este respeito. Contudo, ainda não foram firmados compromissos financeiros concretos para a execução do programa de trabalho.
Os temas foram discutidos em vários grupos, como o "Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre o Acordo de Paris" (APA, por sua sigla em inglês de Ad Hoc Working Group on the Paris Agreement) e os órgãos subsidiários (SBSTA e SBI) da Convenção. A "Conferência das Partes na qualidade de reunião das Partes no Acordo de Paris" (CMA) também se reuniu pela primeira vez em Marrakesh. Tudo isto foi, principalmente, uma solenidade e mera formalidade, no entanto, enquanto o CMA aprovou algumas das primeiras regras procedimentais em Marrakesh, as decisões realmente importantes não são esperadas sob o CMA antes de 2018. Vale a pena notar que as partes do Protocolo de Quioto também se reuniram em Marrakesh sob a sigla CMP.
O próximo marco crucial da política climática internacional está previsto para 2018. Três eventos coincidirão: Em primeiro lugar, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apresentará seu relatório especial sobre a meta de 1,5 °C. O segundo elemento é a apresentação conclusiva do "livro de regras" acima referido para o Acordo de Paris. Em terceiro lugar, haverá uma revisão dos objetivos e compromissos nacionais – as NDCs. Um dos objetivos de Marrakesh foi determinar como garantir que todos os países – e especialmente os países desenvolvidos – refinem e elevem os compromissos anteriormente assumidos pelo menos uma vez. Seja como for, da maneira como vão as coisas hoje, o conjunto dos compromissos assumidos no âmbito das NDCs ainda nos colocam num caminho que vai à direção de 3°C de aquecimento, indo, portanto, na direção inversa dos 2 °C ou 1,5 °C definidos metas.
Existem vários marcos para a revisão das contribuições. Um deles foi o "Diálogo de Facilitadores" de 2016 (Facilitative Dialog, em inglês), que se resumiu a pouco mais do que uma rodada de acusações mútuas e a delações. O próximo diálogo deste tipo, que está previsto para 2018, terá de ser muito mais abrangente e melhor preparado. Particularmente preocupante é o fato de que a COP 24, também em 2018, acontecerá mais uma vez na Polônia – o coração do carvão na Europa. Depois disso, em 2023, terá lugar o primeiro “Balanço Global” (Global Stocktake, em inglês) do Acordo de Paris – equivalente a uma espécie de revisão que deverá acontecer a cada cinco anos.
O fim do carvão e os planos de transformação a longo prazo
"Sinto que este é o início de uma bela amizade."
Marrakesh viu o lançamento das chamadas "parcerias-NDC", nas quais os países industrializados pretendem ajudar os países em desenvolvimento do Sul a concretizarem suas contribuições para o clima, as NDCs. Países como Maldivas, Indonésia e Uganda têm interesse. Do lado dos industrializados, Alemanha, França, Estados Unidos e Canadá ofereceram ajuda. Um longo período de planejamento será necessário para pavimentar o caminho, um país de cada vez, para uma economia global e um estilo de vida que respeite o limite de 2°C. Em Paris, todos os países apresentaram seus objetivos, ao passo que em Marrakesh alguns deles se adiantaram em apresentar planos de longo prazo para sua implementação.
Para a Alemanha, a ministra do Meio Ambiente, Barbara Hendricks, desferiu um golpe contra a opinião pública com a apresentação do primeiro plano de ação climática do país para o ano de 2050. Depois de enfrentar meses de críticas domésticas que alegavam que o plano equivalia a uma "ação climática envergonhada", a reivindicação de um calendário vinculante para abandonar o carvão foi contornada, e a comunidade internacional do clima aplaudiu. Os Estados Unidos seguiram o exemplo da Alemanha um pouco mais tarde, apresentando seu próprio plano de ação climática para 2050 – embora este plano provavelmente acumule poeira nas mesas da administração Trump nos próximos anos.
Outros países como México e Canadá seguiram o exemplo. A fraqueza destes objetivos e dos planos subsequentemente apresentados certamente se relaciona com a sua natureza voluntária – o que foi, inicialmente, uma condição prévia para a conclusão do Acordo de Paris, poderia agora muito bem ser a chave para a sua sobrevivência na era Trump. A diluição do plano de ação climática da Alemanha pelos ministérios conservadores da CSU, mas também pelo ministro da Economia e Energia, Sigmar Gabriel, no que diz respeito às exigências para se abandonar o uso do carvão, mostra como é difícil mesmo para os chamados pioneiros estabelecerem um caminho para a transformação.
Destaca-se, neste sentido, o anúncio feito pelos 47 países fortemente impactados, quase todos membros do Fórum de Vulnerabilidade Climática (CVF, na sigla em inglês). Os países anunciaram a intenção de fazer a transição para 100% de energia renovável o mais rápido possível – até 2030 ou, o mais tardar, 2050. Eles foram, por isto, muito adequadamente celebrados pela sociedade civil e pela mídia. O anúncio, no entanto, representa uma gota no oceano do clima global, tendo em vista que as emissões de gases de efeito estufa por parte dos membros CVF são irrisórias numa escala mundial. No plano político, entretanto, estes países desempenham um papel importante nas negociações – ainda que alguns observadores considerem que eles enfraquecem a possibilidade de construção de uma frente unitária entre os países em desenvolvimento contra ambições modorrentas e promessas descumpridas dos países industrializados. Curiosamente, a COP 23, do próximo ano, será realizada sob a presidência de Fiji – porém, com sede em Bonn, já que o pequeno estado insular não possui recursos para realizar a conferência.
Os setores agrícola e florestal no regime climático
“Oh, por favor, senhor. É um pequeno jogo que jogamos. Eles incluem isto na conta, eu rasgo a conta. É muito conveniente.”
A agricultura e as florestas desempenham um papel fundamental na implementação do Acordo de Paris e, por isto, foram objeto de vários grupos de trabalho e discussões em Marrakesh. Algumas soluções e instrumentos que foram discutidos ali poderiam ajudar a desencadear a transformação na agricultura, na proteção do direito à terra, além de deter o desmatamento. Por outro lado, eles também podem contribuir para intensificar a agricultura industrial e a silvicultura, levar a novas expulsões dos povos indígenas e das comunidades locais de seus territórios, além de abrir novas portas para compensar as emissões de combustíveis fósseis por meio de medidas duvidosas. Muito está em jogo e as questões políticas cruciais são muitas vezes ocultadas por trás de itens complicados e aparentemente técnicos da agenda.
Os solos e as florestas podem absorver quantidades significativas de CO². Contudo, as medidas nos setores da agricultura e da silvicultura não devem ser utilizadas sob nenhuma circunstância para justificar a inércia em outros países. A janela de emissões de CO² que a comunidade internacional estabeleceu em Paris não deixa margem para compensações (offsetting). Em outras palavras, os países industrializados não serão capazes de documentar a sua falta de ambição na transição de combustíveis fósseis por meio de projetos de redução de emissões mais baratos em países em desenvolvimento ou em outros setores, como agricultura e silvicultura.
As regras contábeis do Protocolo de Quioto continham um erro significativo no cálculo das emissões dos setores agrícola e florestal. De acordo com o IPCC, teoricamente seria possível considerar a queima de biomassa como neutra em termos de carbono caso fosse possível estabelecer um sistema de contabilidade separado para as emissões liberadas durante a produção de biomassa – isto é, durante o cultivo, a colheita, o roçado e similares. No Protocolo de Quioto, no entanto, não existe a figura de um carbono emitido, porém não contabilizado – seja na fonte seja durante a combustão. Numerosas organizações da sociedade civil e alguns países lutaram arduamente em Marrakesh para garantir que os erros do Protocolo de Quioto relacionados às regras para registro e reporte de emissões do setor agrícola não fossem repetidos. Estas regras devem garantir a transparência em relação à natureza das emissões e a sua origem tanto quanto do local e de como os gases de efeito estufa são novamente sequestrados por sumidouros como solos e florestas. O avanço do desmatamento não pode tornar-se invisível por meio da sua compensação com projetos de reflorestamento em outros lugares. As emissões agrícolas de outros gases de efeito estufa que não o CO², como o metano, também não devem ser ocultadas pela compensação de CO² sequestrado nos solos. A bioenergia não deve ser considerada neutra em termos de carbono, como a UE gostaria de ver.
A proteção do clima é muito mais do que o CO². Por isso, é crucial que, no âmbito de exigências globais em matéria de transparência e informação, os países não apenas declarem as toneladas de CO² e de CO² equivalente que liberam, mas também sejam responsabilizados pela forma como integram as considerações dos direitos humanos em geral à preocupação com a contabilização do carbono, sobretudo no caso dos povos indígenas e das mulheres. O mesmo deve valer para questões como a segurança alimentar e todos os outros assuntos levantados em Paris. Tais aspectos devem ser considerados, não só no que tangem as contribuições determinadas a nível nacional (NDCs), mas também na revisão conjunta que ocorrerá no curso do diálogo de facilitação de 2018 e do inventário global de 2023.
O debate sobre os riscos da integração dos setores agrícola e florestal no comércio de emissões também não é novo. Uma questão-chave em Marrakesh foi assegurar que as comportas não fossem abertas para compensações segundo a concepção do recém-criado Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (SDM). Um debate importante (fora da UNFCCC, mas claramente relacionado a isto e que afetou as negociações em Marrakesh) dizia respeito à decisão da Organização da Aviação Civil Internacional de criar o CORSIA, um novo mecanismo de mercado global para as emissões da aviação. É possível supor que a maior demanda por compensações (também dos setores agrícola e florestal, isto é, incluindo as compensações de REDD+) será, no futuro, proveniente das companhias aéreas.
As negociações oficiais sobre o clima e agricultura estão completamente emperradas, já que os conflitos de interesses entre países industrializados e em desenvolvimento são simplesmente muito grandes. Os principais países agrícolas do G77, como Brasil, Argentina e Índia, não desejam negociar agricultura num contexto de proteção climática sob nenhuma hipótese, porque consideram este assunto apenas como um aspecto da adaptação às mudanças climáticas. Os países industrializados e a UE veem o problema de forma diferente e também querem que o sector agrícola contribua para o objetivo de “neutralização do carbono” por meio da polêmica produção de biocombustíveis – um argumento que atraiu pesadas críticas da sociedade civil em Marrakesh. Algumas ONGs apelaram para um programa de trabalho sobre agricultura e segurança alimentar que abrangesse a proteção do clima e a adaptação tanto quanto garantissem que os objetivos gerais acordados – a recusa à compensação, uma agricultura ecológica em vez de fábricas agrícolas, os direitos humanos e a ênfase sócio ecológica – permanecessem em primeiro plano. No entanto, estas negociações foram interrompidas e adiadas para maio de 2017.
A Agenda Global para Ação Climática
“Voltemo-nos para os suspeitos usuais.”
Uma vez que os planos nacionais de ação climática não têm demonstrado um grande progresso, a comunidade internacional também está contando com a ação voluntária do setor privado – como, aliás, acontece em outras áreas – para a proteção climática. Desde a COP 20 em Lima, que aconteceu em 2014, a apresentação de ações climáticas por não-atores (além do setor privado, a categoria inclui cidades, governos regionais e ONGs) tem sido parte essencial dos encontros. Às plataformas já existentes da Agenda para Global para Ação Climática (que envolve tanto a Agenda de Ação de Lima-Paris, liderada pelos Estados, como a plataforma climática NAZCA, protagonizada por atores não-estatais) adicionou-se outra em Marrakesh: Os "Campeões do Clima", Laurence Tubiana e Hakima El Haité, lançaram a Parceria de Marrakesh para a Ação Global contra o Clima.
A sua mensagem é que as empresas, a sociedade civil e os tomadores de decisão só podem resolver a crise climática em conjunto. Assim, o intercâmbio de exemplos de boas-práticas pode servir para o encorajamento mútuo e para promover uma "corrida ao topo". Nos eventos extraoficiais que acontecem em paralelo à COP – mas completamente integrados às instalações oficiais – aconteceu, mais uma vez, uma explosão de anúncios. Entre estes anúncios sempre há aqueles cuja preocupação tem menos a ver com a proteção do clima do que com “esverdeamento” das corporações, que arcam com a maior responsabilidade para a crise climática. Captação e Armazenamento de Carbono (CCS) foi um grande sucesso em Marrakesh – não só como o trunfo das empresas de combustíveis fósseis para preservar seus modelos de negócios num futuro de baixo carbono, mas também como a tecnologia chave para gerar "emissões negativas", por muitos considerada crucial para ficar dentro do limite de 1,5 °C.
Em princípio, estabelecer um limite de 1,5 °C no acordo climático é um marco, já que se trata de uma questão de sobrevivência para muitos pequenos Estados insulares. Enquanto isso, muitos cientistas do clima acreditam que teremos excedido nossa carteira de emissões para ficar abaixo do limite de 1,5 °C em tão pouco tempo quanto cinco anos. Os cenários contidos no quinto relatório de avaliação do IPCC de 2014 se baseiam, por conseguinte, no conceito de "emissões negativas" (em grande medida, isto também se aplica à meta de 2 °C). Em outras palavras, o aquecimento do planeta em mais de 1,5 ou 2 °C deverá ser permitido, desde que sejam criados sumidouros o suficiente até o final do século a fim de fazer este índice retroceder ao limite inicialmente fixado. Os sumidouros de carbono são vistos principalmente em termos tecnológicos – por exemplo, na forma de combustão de biomassa combinada com armazenamento subterrâneo de CO² (bioenergia + CCS = BECCS). Isto, no entanto, exigiria pelo menos uma vez e meia a área de terra da Índia para cultivar as plantações energéticas necessárias, o que provavelmente levaria a um aumento nos preços dos alimentos e à grilagem. Outra forma de criar sumidouros de carbono seria o reflorestamento mundial em grande escala, que também competiria com o cultivo da terra para a alimentação – tornando-se, ademais, um desastre ecológico, uma vez que a realização deste tipo de iniciativa está principalmente vinculada à plantação de monoculturas. Caso prevaleça a ideia de que podemos nos permitir exceder temporariamente as metas de temperatura, seriam abertas as comportas para todas as formas de geoengenharia, tais como guarda-sóis gigantes ou a imitação de vulcões naturais. Isso traria consequências nada manejáveis para o planeta e nos confrontaria com questões fundamentais da democracia: quem controla o clima global?
Particularmente preocupante é que muitas abordagens polêmicas que se estendem à agricultura industrial com monoculturas, ao uso intensivo de fertilizantes e à engenharia genética estão abrindo passagem no debate climático através da porta traseira da Agenda de Ação Climática. Os principais atores do agronegócio estão se aproveitando disso para apresentarem "soluções" como a BECCS e a "Agricultura Climaticamente Inteligente".
A pergunta de 100 bilhões de dólares
“Liebchen, oh, querida – que horas são?” – “Oh, dez relógios.” – “Tudo isso?”
Como em anos anteriores, o financiamento climático foi uma das questões mais controversas em Marrakesh – aliás, como vem acontecendo desde a conferência de Copenhague, de 2009, ocasião em que os países industrializados se comprometeram a ajudar os países em desenvolvimento com 100 bilhões de dólares anuais até 2020. O objetivo deste anúncio foi ajudar os países em desenvolvimento tanto na redução das suas emissões quanto na adaptação às mudanças climáticas. Em vez de se comprometer com o aumento rápido e significativo da promessa que já havia sido feita Copenhague, o Acordo de Paris reduziu ainda mais a responsabilidade dos países industrializados no que se refere à concessão de financiamento de longo prazo aos países em desenvolvimento e convidou todas as partes do acordo a contribuir para o cumprimento das obrigações financeiras. A COP 22 em Marrakesh foi, assim, um teste decisivo do quão seriamente os países industrializados assumiriam as suas obrigações financeiras depois da entrada em vigor do Acordo de Paris, em especial no que diz respeito ao financiamento para a adaptação, o eterno enteado do financiamento climático. A resposta foi clara: aparentemente, não há muito compromisso.
Os países da OCDE finalmente publicaram um plano passo a passo, pouco antes de Marrakesh, de acordo com o qual seus fundos públicos para o clima direcionados aos países em desenvolvimento devem crescer para 67 bilhões de dólares e, em última instância, podem crescer entre 93 e 133 bilhões de dólares, contando com a alavancagem de fundos privados. Os países em desenvolvimento e a sociedade civil internacional vêm pedindo isto há anos. No entanto, a contabilidade otimista usada pelos países da OCDE atraiu críticas generalizadas, razão pela qual a decisão da COP 22 sobre financiamento de longo prazo nem sequer menciona este roteiro e rejeita a tentativa dos países industrializados de aplicar o método de contabilidade da OCDE para relatar o apoio financeiro no âmbito do Acordo de Paris.
E numa "COP Africana", como tinha sido grandiosamente promovido pela presidência marroquina, a promessa dos países industrializados de dobrar o financiamento para a adaptação para cerca de 20 bilhões de dólares até 2020 apenas lançou luz sobre a sua inadequação. Quando o Acordo de Paris estipulou um "equilíbrio" entre mitigação e financiamento da adaptação, os países em desenvolvimento estavam pensando mais na linha dos 50:50 do que 80:20. Assim, voltando a esta orientação inicial, os países em desenvolvimento pediram que o orçamento para medidas de adaptação aos impactos das mudanças climáticas fosse quadruplicado em 40 bilhões de dólares. Esta é uma razão adicional que exemplifica o motivo pelo qual se fixou o compromisso de o Fundo Verde para o Clima (GCF) destinar mais de metade de seus 10 bilhões de dólares para medidas de adaptação. Deste montante, entanto, cerca de 2,5 bilhões de dólares dizem respeito a um saldo devido pelos EUA, e cuja quitação agora põe-se em dúvida numa administração Trump.
Enquanto alguns novos compromissos financeiros para a adaptação foram feitos em Marrakesh, eles permaneceram na casa de apenas dezenas de milhões, e não de bilhões. A disposição da Alemanha de empenhar 50 milhões de Euros ao Fundo de Adaptação, que luta constantemente pela sobrevivência financeira, é certamente louvável. No entanto, um apoio verdadeiramente generoso à adaptação dos países em desenvolvimento possui outro perfil. O fato de o Fundo de Adaptação ter de se reapresentar na COP, ano após ano, a fim de “passar o chapéu” é sintomático. Este é, precisamente, o Fundo que mais se distinguiu, trazendo inovações e apoio a projetos concretos para adaptação ao clima, como o acesso direto ao financiamento para instituições nacionais de países em desenvolvimento.
O Fundo de Adaptação foi estabelecido no âmbito do Protocolo de Quioto, que expira em 2020, mas passará a estar sob a égide do novo Acordo de Paris – uma vitória para os países em desenvolvimento. Com cerca de 81 milhões de dólares investidos pela Alemanha e outros países da UE em Marrakesh, o déficit de recursos do fundo está fechado por enquanto – ao menos até a próxima COP? Em última análise, seria preferível elaborar uma estratégia de financiamento a longo prazo para o Fundo de Adaptação. Inicialmente, ele deveria ser financiado por uma taxa sobre os certificados de redução de emissões do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Um apoio de financiamento similar através da nova SDM está sendo considerado. Mesmo isto, no entanto, não pode substituir o aumento significativo dos fundos climáticos públicos dos países industrializados para medidas de adaptação nos países mais duramente atingidos. O financiamento privado para investimentos em adaptação, por exemplo, através da iniciativa de seguro InsuResilience lançada pela presidência alemã do G7 em 2015, só pode servir como complemento e não como substituto dos fundos públicos.
O MDL é um programa da ONU que permite aos países industrializados investir em projetos de proteção climática em países em desenvolvimento, em vez de reduzir as emissões em casa. No entanto, essa abordagem de mercado não funciona: a demanda por certificados relevantes quase não é mensurável – uma tonelada de CO² está sendo negociada atualmente em 40 centavos de dólar. As receitas obtidas pela taxação desse tipo de negociação são, portanto, insignificantes. Além disso, muitos projetos de MDL – como os que envolvem energia hidrelétrica ou florestal – são controversos. A organização Carbon Market Watch estima apenas cerca 40% das reduções de emissões declaradas representam economias reais. O ressurgimento do debate sobre a inclusão de projetos de Captura e Estocagem de Carbono no MDL foi outro tema em Marrakesh. O futuro do MDL para além de 2020 é atualmente incerto.
Outro tópico da COP desde a perspectiva do Sul foi o acesso a recursos financeiros do Fundo Verde para o Clima (GCF) e outros fundos. A África tem várias organizações nacionais e regionais (do Marrocos, Senegal, Quênia, Togo, Nigéria e Etiópia) que são certificadas pelo GCF e podem acessar e implementar fundos diretamente. No entanto, uma grande parte dos fundos continua a ser mobilizada por bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD), que também financia projetos de exploração e investimentos no setor de combustíveis fósseis. Os padrões fiduciários e de transparência que muitas agências e organizações nacionais ainda não alcançam representam alguns dos maiores obstáculos do acesso aos recursos. É, por isto, urgente reforçar a criação de capacidades institucionais, bem como uma priorização das entidades nacionais de execução através do processo de acreditação do GCF.
Um enfoque especial de Marrakesh foi sobre a Iniciativa de Energia Renovável da África (AREI), um programa que foi lançado em Paris em dezembro de 2015, tendo sido especificamente mencionado nas resoluções da COP 21. A AREI está sob o mandato da União Africana. O seu Conselho de Administração é composto por representantes de várias instituições africanas, como o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), que também atua como administrador. A AREI estabeleceu o ambicioso objetivo de construir 300 mil megawatts (MW) de capacidade adicional de geração de energia renovável na África até o ano de 2030. Pelo menos 10 mil MW estão programados para estarem prontos até 2020.
O espírito de Varsóvia
“Esta ainda é uma história sem final. E agora?”
Casas em ruínas, mortos e feridos, sobreviventes indigentes – violentas tempestades e inundações trazem destruição generalizada. Não será mais possível evitar completamente os efeitos das mudanças climáticas provocadas pelo homem, mesmo com medidas radicais, mas apenas para atenuá-las. As perdas e danos causados pelo clima já são uma realidade para milhões de pessoas em todo o mundo.
Enquanto o dinheiro não pode compensar todos os danos e destruição, a questão de quem vai pagar essa conta, no entanto, surge recorrentemente. Os países em desenvolvimento no Sul global estão sofrendo as consequências desta devastação. No entanto, os fundos para o clima que já lhes foram prometidos têm, de fato, outros fins – destinam-se à redução das emissões e à adaptação. No entanto, as "perdas e danos" refere-se precisamente às consequências das mudanças climáticas que não podem mais ser evitadas pela adaptação.
Os Estados membros da ONU têm discutido durante anos se um financiamento adicional dedicado para este fim é necessário. Especificamente, uma questão em Marrakech foi o futuro do Mecanismo Internacional de Varsóvia para Perdas e Danos (WIM, sigla em inglês). O WIM foi adotado na capital polonesa em 2013, tendo sido reapresentado, agora, para revisão. Embora os países industrializados tinham a intenção de verificá-lo o mais rápido possível, os países em desenvolvimento queriam uma revisão minuciosa e detalhada. E eles vão conseguir, mas não antes de 2019. Pelo menos ficou decidido que o WIM também deve englobar a questão do financiamento de perdas e danos a partir de 2017 – um grande avanço que muitos países industrializados tinham resistido ferozmente. O ano de 2017 deve, portanto, dar um novo impulso a esta importante questão ambiental – não menos importante devido à presidência da pequena ilha de Fiji na COP 23. Fiji está muito familiarizada com as perdas e danos causados pelas mudanças climáticas: No início de 2016, o ciclone Winston Matou 44 pessoas e destruiu 40.000 casas, bem como infraestruturas cruciais, como escolas, portos e linhas de energia.
Em meio as mudanças climáticas
“- Águas? Que águas? Estamos no deserto.”
O Norte de África já está lutando com inúmeras consequências das mudanças climáticas. O litoral está ameaçado pelo aumento do nível do mar e da erosão, enquanto a desertificação está aumentando. O clima está se tornando mais seco e mais quente, mas quando chove, as chuvas são frequentemente tão pesadas que os esgotos não conseguem suportar. Cidades e regiões inteiras estão sendo inundadas cada vez mais com maior recorrência. As colheitas são destruídas e a atividade econômica para.
A população, no entanto, dificilmente vê uma conexão com a mudança climática, como lamentam os ambientalistas marroquinos. A COP 22 deu, pelo menos, um pequeno incentivo para as atividades climáticas da sociedade civil marroquina. Três dias antes da COP, ativistas internacionais se reuniram com numerosos grupos marroquinos na Conferência "Mude o Sistema, Não o Clima" em Safi, que foi organizada pela Attac Marrocos. Nesta cidade, o ar, os solos e a costa foram fortemente impactados pela poluição das indústrias de cimento, areia e fosfato. Na Declaração de Safi, os grupos pedem que os combustíveis fósseis permaneçam no solo e enfatizam que os efeitos das mudanças climáticas reforçam a desigualdade social da população local, particularmente em relação às mulheres.
Esta mensagem ainda não chegou ao nível parlamentar, contudo: O Marrocos tem trinta partidos. Por volta de uma dúzia deles consegue chegar ao Parlamento – e nenhum tem a proteção ambiental e climática em sua agenda.
Em contrapartida, a importância da política ambiental está aumentando na Tunísia, outro país da região. É crescente o interesse dos partidos políticos por este novo campo porque ele pode ser usado na abordagem de questões relacionadas à qualidade de vida nas cidades e regiões industriais. Há também um número crescente de iniciativas da sociedade civil no âmbito da proteção ambiental, da captação de recursos e, desde a Cúpula de Paris, da política climática.
Os ativistas do clima estão agora construindo redes em todo o Mediterrâneo e no mundo árabe. Um exemplo é o Ain Soltan Call of Mediterranean Youth. Antes da cimeira de Marrakech, a organização tunisiana RAJ reuniu jovens representantes de ONGs de ambos os lados do Mediterrâneo. A nota, assinado por participantes da França, da Espanha, da Itália, da Tunísia, do Egipto e da Argélia, apela para uma maior transparência na composição das delegações, mais influência da sociedade civil, melhor comunicação dos planos climáticos nacionais em casa, e, por último, mas não menos importante, uma preparação mais aprofundada e uma estratégia de negociação.
Este último ponto foi particularmente significativo em Marrakesh, à luz da influência que os negociadores experientes da Arábia Saudita tradicionalmente exercem sobre os outros Estados árabes. Enquanto o Estado do petróleo quer diversificar seu mix de energia até 2030 e adotou o Acordo de Paris pouco antes da COP, a Arábia Saudita ainda parece estar ganhando tempo e bloqueando o progresso da política climática entre os países árabes. Em contraste, um país como a Tunísia que teria muito a ganhar nas negociações foi representado por um único diplomata climático.
Longe das barracas da COP, ativistas de todo o mundo se reuniram em Marrakesh no “Espace auto-geré” (Zona Autônoma) para trocar ideias. O resultado foi um duro clamor pela justiça climática, pela meta de 1,5 °C e pela garantia de 100% de energia renovável – combinados com o respeito ao direito humano a um ambiente saudável. Os participantes concentraram-se principalmente em movimentos locais como Stop Pollution (Pare a Poluição), um grupo de Gabes, Tunísia, que está organizando oposição à indústria química e de fosfatos. Eles se aliaram em Marrakesh com grupos antifracking em Ain Salah, na Argélia, e Imider, no Marrocos, assim como com movimentos mais conhecidos no Ocidente, como o Standing Rock, dos Estados Unidos, e Notre Dame des Landes, da França.
O que fica de Marrakesh
"Toque uma vez, Sam, pelos dos velhos tempos."
Marrocos fez grandes esforços como anfitrião da COP e a organização da conferência foi um sucesso. O seu papel de pioneiro da política climática e energética do Magreb e da África foi particularmente notável no setor de energia. No entanto, no cumprimento do objetivo real de fazer a transição do fornecimento de eletricidade do país para as energias renováveis o mais rápido possível, as considerações sociais e ecológicas estão ficando para trás em projetos como a usina solar concentrada de Ouarzazate. O futuro vai mostrar se os Ubers e as bicicletas elétricas permanecerão e se os numerosos convites para proteger o meio ambiente em outdoors espalhados por todo o país têm um algum efeito. O sucesso também deve ser medido pelo grau em que as pessoas se sentem incluídas nesses projetos.
Com a sua Proclamação de Ação de Marrakesh (chamada de Marrakesh Call nas negociações), a presidência da COP quis deixar a sua própria marca na conferência. Inicialmente, vários países em desenvolvimento expressaram preocupação de que o documento poderia envolver um processo semelhante ao que causou o fracasso das negociações de 2009 em Copenhague. Naquele caso, a presidência da COP coordenou o Acordo de Copenhague com alguns poucos países em paralelo aos árduos esforço coletivos da negociação oficial. Em Marrakesh, tal temor logo se mostrou infundado. A declaração final do encontro, no entanto, contém pouco mais que palavras calorosas e confirmações exageradas dos compromissos e promessas já feitas.
Para a comunidade internacional, é importante saber que todos os Estados estão por trás do acordo climático de Paris. Mesmo que Marrakesh não tenha sido uma conferência disruptiva, ela manteve o ímpeto de Paris. O que resta – também em vista da eleição de Trump – é a mensagem de que continuaremos a avançar juntos.