É preocupante a forma como o tema do “uso da terra” vem sendo incorporado às negociações climáticas. O que já foi decidido com respeito às florestas nativas sob o Marco de Varsóvia para REDD+ agora corre o risco de ser incorporado no novo acordo sob um mecanismo de mercado, visando a transferência de ‘resultados de mitigação’ [Art 3 bis]. A silvicultura industrial de espécies exóticas e nativas busca garantir suas atividades como opção custo-eficiente de mitigação no emergente mercado global da ‘restauração florestal’ e recuperação de áreas degradadas. Da mesma forma, vemos os interesses e as empresas que controlam as cadeias de integração do agronegócio global (a monocultura decommodities, rebanhos e produção de proteína animal) buscando garantir espaço entre as opções prioritárias de ações de mitigação para a ‘agricultura climaticamente inteligente’ (climate smart agriculture), ou o conceito não menos problemático de ‘agricultura de baixo carbono’.
Sob o mote da moda, a ‘paisagem’ (landscape), o avanço sobre as terras, territórios, recursos e populações ganha, de fato, outra escala. As oportunidades de investimentos e negócios vinculadas à terra são apresentadas e vendidos em um pacote, no qual adaptação, resiliência, gênero, subsistência (livelihoods) e até mesmo objetivos de desenvolvimento sustentável (!) são subsumidos aos resultados de mitigação (mitigation outcomes), antevistos como unidades negociáveis. Desta cepa são os ‘resultados de mitigação internacionalmente transferíveis’ (internationally transferable mitigation outcomes), cuja referência consta atualmente entre as opções do atual texto de negociação [Art 3 e Art 3 ter]. Isso é mais preocupante, ainda, quando tratam-se de ‘emissões líquidas’ (net emissions). Sob questionáveis equações de compensação (offset), vemos que de forma crescente a lógica carbonocêntrica subordina ou ignora a biodiversidade, colocando em risco não apenas a integridade ambiental, mas também as relações sociais que dela dependem. Neste contexto, entendemos também que o financiamento ao Desenvolvimento Sustentável não pode ser vinculado e condicionado à criação de um ‘mecanismo internacional’ que vise a produção de resultados sob esta mesma lógica reducionista e gerencial. Consideramos que isso é inaceitável.
Lembramos que não há uma coalizão ou voz unívoca que represente o ‘setor do uso da terra’ no Brasil. Os territórios, diferentemente do que pretende ser mostrado na linguagem artificial e estéril das negociações, estão permeados de conflitos, lutas e relações de poder. Além das mudanças climáticas, a violência cotidiana, real e simbólica associada à disputa pela terra atinge uma vasta parcela da população: povos indígenas, camponeses, quilombolas, ribeirinhos e populações tradicionais. Estes vivem da terra e na terra, onde os diferentes modos de vida e identidades são inseparáveis dos territórios. Reafirmamos aqui a defesa da agroecologia, da agricultura familiar, camponesa e indígena. No Brasil, como prevê a Constituição de 1988, a terra cumpre uma função social. A garantia dos direitos territoriais de povos e populações, assim bem como a reforma agrária, seguem sendo pilares fundamentais para a efetivação da democracia e a justiça social no Brasil. Contamos que a posição de negociação do Brasil oriente-se por garantir que nenhuma provisão decidida no âmbito de um acordo multilateral sobre o clima venha a socavar estes preceitos fundamentais.