Após duas semanas de negociações em Lima, a 20ª sessão da Conferência das Partes (COP) da Convenção Marco das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC, sigla em inglês) terminou na madrugada do último domingo (14/12) tendo como resultado de maior destaque o documento Chamado de Lima para Ação Climática.[1] Previstas para terminar na sexta-feira (12/12) à tarde, as negociações se estenderam madrugada adentro, em um processo tenso e que alcançou um sério impasse na manhã de sábado (13/12), quando os países em desenvolvimento, manifestando posição através de blocos de negociação e também em suas capacidades individuais, rejeitaram o texto editado e proposto pelos chairs do ADP (sigla para o grupo de trabalho da Plataforma de Durban para Ação Fortalecida).
O ADP é o trilho de negociação estabelecido em 2011 (durante a COP 17 realizada em Durban) e que tem o mandato de elaborar os elementos para um “protocolo, instrumento jurídico ou resultado acordado com força legal”, que sob a Convenção será aplicável a todas as partes. É neste trilho de negociação que foi elaborado o ‘Rascunho Zero’ dos elementos que devem constar no novo acordo climático. Este ‘rascunho’, ou melhor, uma extensa lista (37 páginas) de opções no âmbito da mitigação, mas também da adaptação, financiamento, desenvolvimento e transferência de tecnologia, capacitação e transparência para ações e para o apoio, foi incorporado como Anexo ao Chamado de Lima. Além disso, o ADP também trata de como aumentar a ambição pré 2020, sobre as ações de mitigação que os países podem tomar entre 2015 e 2020, antes da entrada em vigor do novo acordo.
Resultado de um processo tortuoso ao longo da última semana de negociações, no qual, desconsiderando as contribuições dos países, tentou-se impor um texto ‘desequilibrado’ no entender de muitos e que ameaçava reescrever a Convenção, flexibilizando ou até mesmo eliminando suas provisões e princípio norteadores, como equidade e as Responsabilidades Comuns, Porém Diferenciadas. Os debates em plenário reiteraram duras críticas à condução das negociações, chegando a evocar o colonialismo (Malásia, falando em nome dos LMDC, like minded developing countries) na origem do mundo real e visivelmente ‘diferenciado’ e dividido entre Norte e Sul, desenvolvidos e em desenvolvimento. Os Estados Unidos reagiram com um chamado duro à necessidade de um resultado ‘substantivo’ em Lima e que garantisse o caminho até Paris, uma vez isso colocava em jogo não apenas a própria UNFCCC e o regime climático internacional, como também o futuro do multilateralismo. A Austrália reagiu falando dos vários ‘ratos mortos’ (dead rats) que os países ‘deveriam engolir’, referindo-se a necessidade de ceder.
Sobre o impasse criado, e as longas horas de negociação que se seguiram conduzidas pela presidência da COP na figura do Ministro do Meio Ambiente do Peru, Pulgar Vidal, o texto de consenso obtido ao final - embora não tenha sido satisfatório para ninguém, países desenvolvidos e em desenvolvimento - representou uma mudança em termos de processo. Em que pesem as suas profundas e inegáveis diferenças entre si, tanto em termos de emissões como dos interesses (nem sempre evidentes) que representam, o mundo em desenvolvimento esteve unido como há muito não se via.
Por outro lado, ficou evidente que os países desenvolvidos buscam por todos os meios introduzir de maneira substantiva mecanismos de mercado e geração de meios de ‘compensar’ suas emissões em ações empreendidas nos países do Sul, mas não aceitam se comprometer com o cronograma de financiamento para cumprir com compromissos já assumidos, como integralizar no Fundo Verde do Clima (GCF, por sua sigla em inglês) US$ 100 bilhões ao ano a partir de 2020 para as mudanças climáticas. Aliás, cada vez é mais difícil identificar e classificar o que é ‘financiamento para o clima’ (um tema quente nos debates em Lima) uma vez que todo o escopo da cooperação internacional e as carteiras dos mais variados projetos passam a ser agora – todos – classificadas e contabilizados sob a rubrica de ‘clima’.
Não apenas os países desenvolvidos, mas o próprio secretariado da Convenção tem uma posição quase militante com respeito à importância dos países sob o novo acordo criarem o meio propício (enabling environment) para abrir oportunidades de mercado, atrair e alavancar (com dinheiro público) o ‘investimento privado’ nas finanças climáticas. Além disso, os países desenvolvidos tampouco aceitam discutir transferência de tecnologia e abrir mão dos direitos de propriedade intelectual (mesmo que seja para ‘salvar o planeta’), tampouco aceitam colocar os recursos nas ações com as quais já se comprometeram (como no marco das ações de redução do desmatamento e degradação, REDD+) criando neste processo camadas sucessivas de requerimentos e informações adicionais e condicionantes para que os países em desenvolvimentos recebam os ‘pagamentos baseados em resultados’ pela redução de emissões. Este foi o caso no âmbito das negociações no SBSTA (órgão técnico subsidiário da Convenção) na primeira semana da COP com relação à decisão de informações e orientações adicionais ao sistema nacional de salvaguardas, que já integra as decisões no marco de Varsóvia para REDD+ (acordado em 2013) que - sem acordo – será retomado na próxima sessão em junho de 2015. O Marco de Varsóvia é claro sobre a não possibilidade de geração de créditos de compensação (offset) para as ações sob a abordagem de REDD+, um ponto que vem sofrendo forte investida de lobby para que o financiamento interino (entre 2015 e 2020) aceite esta opção e, na mesma linha, que ações de REDD+ integrem o novo acordo, a partir de 2020, como um mecanismo de mercado.
O que saiu de Lima ?
Ao final, o resultado da reunião de Lima efetivamente deixou as bases – mesmo que mínimas - para o processo que ao longo de 2015 que deverá culminar com um compromisso em Paris. O enviado especial dos EUA, Todd Stern reconheceu: os elementos fundamentais foram incorporados e o processo está nos trilhos. Mas o que isso significa ? Efetivamente, a COP de Lima foi altamente política e produziu embates e resultados, como por exemplo a decisão (no Artigo 2) do Chamado de Lima para a Ação Climática de que novo acordo deverá incorporar de modo equilibrado, ‘mitigação, adaptação, financiamento, desenvolvimento e transferência de tecnologia, capacitação e transparência de ação e apoio’ – abrindo um espaço importante em um marco até então centrado na mitigação.
Além disso decidiu-se (Artigo 6) que o grupo de trabalho sob o ADP deverá intensificar seu trabalho de modo a produzir uma primeira versão do texto de negociação antes de maio de 2015. Importante lembrar que a nota de rodapé número 1 do Anexo ao Chamado de Lima (Elements for a Drafting Negotiating Text) alerta que os elementos aí listados não são definitivos: os países podem, em tese, acrescentar ou retirar dali o que quiserem e a lista não deve servir para prejulgar o que, de fato, entrará no texto do novo acordo no ano que vem. Contudo, uma vez que estes ‘elementos’ de um rascunho zero se transformem em uma primeira versão do texto base de negociação, resta ver o quanto de margem haverá para incluir e descartar opções. Um embate grande que ocupará a próxima reunião do ADP (de 8 à 13 de fevereiro de 2015 em Genebra).
O mandato do ADP para Lima nunca foi ‘fechar um acordo’ muito menos adotar metas e ações ambiciosas para salvar o clima. Era limitado a identificar as informações necessárias para que os países se orientassem na elaboração de metas de redução e estratégias de mitigação em suas ‘intenções de contribuições nacionalmente determinadas’ (INDCs, sigla em inglês) que todos os países são ‘convidados’ a apresentar para a Convenção antes da COP 21 em Paris. Aos países que assim puderem, até o final de primeiro trimestre de 2015. Com isso, espera-se poder fazer em novembro uma soma agregada da ambição conjunta do que os países se comprometem a fazer, para, sobre o que ‘falta’ em termos de redução de emissões necessárias para fechar a brecha de carbono (em referência ao ‘gigaton gap’ ou às gigatoneladas de carbono, limite de emissões que devem ser reduzidas ou evitadas para impedir o aumento da temperatura média do planeta para além de 2º Celsius em relação ao período pré-industrial), para, a partir destes parâmetros, negociar os compromissos que devem ser atribuídos de forma diferenciada aos países.
O Brasil levou para a COP uma proposta de diferenciação concêntrica, apoiada pelo grupo do BASIC, onde os países seriam alocados em três níveis de compromisso. Em cada um deles haveria uma série de critérios para diminuir as emissões. Nações desenvolvidas ficariam no círculo central e teriam que fazer cortes em todos os setores da economia. Os emergentes, como Brasil, China e Índia, ficariam no segundo nível, com mais opções para frear o aquecimento. Países vulneráveis, como os Estados-ilha, não empreenderiam grandes ações e estariam no terceiro nível.
Ao invés de uma abordagem ‘top down’ (de cima para baixo), onde a Convenção determina mandatoriamente metas e objetivos de redução, o processo negociador vem consolidando – na prática - uma abordagem ‘bottom up’ (de cima para baixo). Então se os países estão se determinando a cada um fazer o que quer mesmo, para quê o espaço multilateral? Um marco internacional que defina a forma e a metodologia é central se considerarmos no horizonte os planos de viabilizar não apenas as iniciativas de mitigação (e adaptação) através do mercado assim com o comércio de unidades de mitigação (mercado de carbono).
As INDCs tem um papel chave do novo acordo. No Chamado de Lima para a Ação Climática (Artigo 14) os países acordam que
“a informação a ser fornecida pelos países ao comunicar suas intenções de contribuições nacionalmente determinadas, no sentido de facilitar a clareza, transparência e compreensão, devem incluir, quando apropriado, inter alia, informação quantificada sobre o ponto de referência (incluindo, quando apropriado, um ano base), prazos e/ou períodos para implementação, abrangência e cobertura, processos de planejamento, suposições e abordagens metodológicas incluindo aquelas para estimar e contabilizar as emissões antropogênicas de gases de efeito estufa, e, quando apropriado, remoções, e como o país considera que sua intenção de contribuição nacionalmente determinada é justa e ambiciosa, sob a luz de suas circunstâncias nacionais, e como esta contribui no sentido de alcançar o objetivo da Convenção, tal como definido em seu Artigo 2.[2]
O foco na mitigação é reiterado ao longo do extenso Artigo 19 do Chamado de Lima, onde os países decidem ‘continuar com o exame técnico das oportunidades de alto potencial de mitigação’, incluindo aqueles com ‘co-benefícios de adaptação, saúde e desenvolvimento sustentável’ para o período 2015-2020’, requerendo ao secretariado, organizar reuniões técnicas com expertos durante as sessões de negociação (para entre outras, auxiliar os países a identificar opções de políticas, práticas e tecnologias e a planejar para sua implementação de acordo com as prioridades de desenvolvimento nacionalmente definidas. As reuniões com expertos técnicos já realizadas em 2014 trataram dos temas: energias renováveis, eficiência energética, mudança de uso da terra e florestas (incluindo REDD+ e agricultura), meio ambiente urbanos, outros gases de efeito estufa (além do CO2) e a captura e seqüestro de carbono (CCS). Além disso, o secretariado deverá ‘atualizar um documento técnico sobre os benefícios de mitigação das ações e iniciativas e opções para aumentar a ambição de mitigação, compilando informações relevantes sobre a implementação de políticas em todos os níveis, incluindo através da cooperação multilateral, assim como disseminar as informações relevantes (sobre as opções para aumentar a ambição de ações de mitigação), incluindo um sumário para formuladores de políticas.’
A tônica em torno às ‘opções de mitigação’ que serão oferecidas como um ‘menú’ para os formuladores de política se organizam em torno à opções pró-mercado, associdadas à ênfase do discurso de atores chave (bancos, consultorias, agências da ONU, ONGs, think tanks, etc) de que fundamental para o sucesso de Paris é colocar um preço ao carbono. Contrariando as evidências concretas e o fracasso de fato produzido ao longo de uma década do EU-ETS, o maior sistema de comércio de emissões em funcionamento, a expectativa sobre um acordo em 2015 que garanta as condições para a interconexão e ligação paulatina dos mercados nacionais e regionais de carbono segue sendo uma espinha dorsal das negociações. Para isso, ao longo dos últimos anos, legislações nacionais (e sub nacionais) foram elaboradas para criar as condições jurídicas de apropriação de ativos intangíveis (como o carbono) e outros serviços ambientais.
Cada vez é mais evidente que o que está efetivamente em jogo nas negociações passa ao largo do objetivo de ‘manter o aumento da temperatura média do planeta abaixo de 2ºC em relação ao período pré-industrial’. Nas palavras de Rachel Kyte, vice presidente do Banco Mundial e enviada especial sobre mudanças climáticas durante um evento na COP sobre a criação de ‘momento político’ em torno à precificação do carbono no espaço da IETA (International Emission Trading Asssociation): o que se trata aqui é da re-engenharia da economia mundial, e isso não tem nada a ver com a poluição climática.
[2] (tradução livre) O objetivo do Artigo 2 da Convenção é manter o aquecimento em níveis que, de acordo com a ciência, evitem os efeitos catastróficos da mudança do clima, o que deveria ser, abaixo dos 2 graus centígrados com relação ao período pré-industrial.