Sementes, patrimônio dos povos

Guardiãs e redes de semente sustentam a luta pela soberania alimentar e pela agrobiodiversidade. Resistem às ações de indústrias e governos que promovem o uso de sementes transgênicas ou se apropriam de materiais genéticos que fazem parte da interação histórica entre os povos da América Latina e as plantas que os nutriram e curaram durante séculos.

Sementes

O registro de plantas nos atlas botânicos das expedições do século XVIII não tinha somente o objetivo de fazer um inventário descritivo das espécies da América Latina, mas buscava também garantir os interesses exploradores da Coroa.  Desde então, as sementes tornaram-se símbolo de uma luta de longa data, que hoje se repete no combate à privatização e controle do mercado de sementes pelas multinacionais, por meio de patentes que impedem que os pequenos agricultores tenham livre acesso a elas. Além disso, o uso de sementes nativas foi criminalizado em vários países. Isso é paradoxal, pois é sabido que somente a minoria das sementes utilizadas no Sul global provêm do setor comercial (10 e 20%).

A custódia das sementes remonta à própria origem da agricultura. Elas sempre foram selecionadas e conservadas pelos povos para futuras colheitas. Durante a época colonial, no século XVII, as cimarronas de Cartagena de Índias, mulheres que haviam se libertado da escravidão, esconderam-nas em suas tranças para vê-las germinar em San Basilio de Palenque, a primeira cidade de africanos livres na América Latina. Herdeiras destes primeiros exercícios de conservação, hoje existem numerosas redes nacionais e continentais de sementes na América Latina, muitas das quais operam fora dos circuitos institucionalizados e, portanto, não são fáceis de mapear. No Brasil, para mencionar apenas um caso, o Mapa de Sementes Nativas, elaborado pela Associação Brasileira de Tecnologia de Sementes, relata a existência de dez redes de sementes e 1.059 guardiães e produtores.

Nas casas de sementes, essas organizações protegem a diversidade agrícola e o acervo genético dos agroecossistemas tradicionais. Na região semiárida do Brasil, casas e bancos de sementes existem há muito tempo, e a partir de 2015, com o Programa de Manejo da Agrobiodiversidade e de Sementes da Região Semiárida, mil casas e bancos foram criadas ou potencializadas. Em um dos relatórios do programa se documentou “a existência de mais de 700 variedades de feijão, 300 de milho, 400 de aipim ou mandioca, e mais de 100 de favas, pimenta, cana, abóbora gigante e batata-doce”.

No entanto, estas ilhas de biodiversidade estão em constante risco de contaminação. Entre 2018 e 2019, este mesmo programa realizou 588 testes em casas de sementes comunitárias de vários estados do Semiárido, e encontrou contaminação transgênica em 29% das amostras de milho crioulo analisadas. Este número é preocupante porque foram encontrados traços de contaminação em sementes que teoricamente estavam protegidas.

Outra experiência destacada do Brasil é a Bionatur, que há 21 anos começou com 12 famílias vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nos estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais para produzir sementes em sistemas agroecológicos, e se tornou a primeira organização camponesa a produzir, processar, embalar e vender sementes no sistema formal. Hoje, a Bionatur envolve mais de 350 famílias e produz, por colheita, 12 toneladas de sementes agroecológicas de mais de 80 variedades de plantas.

Gráfico 1 - Consórcios: a agroecologia se nutre da diversidade do plantio

Vários estudos revelam os benefícios do uso de sementes autóctones e da diversificação das culturas. Em El Pilar, na fronteira entre Belize e Guatemala, os agroecossistemas baseados no cultivo de milho, feijão e abóbora, juntamente com outras 90 plantas de 60 espécies, formam uma paisagem heterogênea e resiliente em uma notável sinergia entre seres humanos e florestas. Além disso, as comunidades que habitam essa região possuem uma variedade tão grande de alimentos que não precisam comprar nada para estar bem alimentadas. Em Campeche, México, foram registrados 185 tipos de plantas comestíveis pertencentes a 50 famílias botânicas.

Em Honduras, desde o ano 2000, as comunidades têm trabalhado com a Fundação de Investigação Participativa com Agricultores de Honduras (FIPAH) na criação de 16 bancos de sementes em quatro departamentos para proteger 68 variedades de milho, 145 variedades de feijão e 48 de outras espécies. Na Colômbia, organizações como a Rede de Guardiães de Sementes de Vida e a Rede de Sementes Livres da Colômbia existem há cerca de 20 anos, reunindo 37 redes e processos. Ali mesmo, a Associação Rede de Famílias Lorenceñas Las Gaviotas do município de San Lorenzo conseguiu uma legislação para que seu território ficasse livre dos transgênicos. No México, um movimento semelhante liderado por Leydy Pech, meliponicultora maia, enfrentou a Monsanto para impedir o plantio de soja geneticamente modificada em sete estados. Em 2016, diante da necessidade de articular diversos atores em torno dessas lutas, foi criada a Rede Mexicana de Sementes. Já no Uruguai funciona, desde 2004, a Rede Nacional de Sementes Nativas e Crioulas, da qual fazem parte mais de 250 propriedades familiares de diferentes departamentos do país, onde se trabalha com reservatórios vivos de sementes que cada família coloca à disposição de todos os integrantes da rede.

Infográfico: Agrobiodiversidade em perigo

Embora os povos sejam conscientes da necessidade de conservar as sementes, as legislações e os acordos nacionais e transnacionais tendem a favorecer as empresas, por meio de acordos e normas como as da União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas (UPOV), que penalizam o uso e o intercâmbio de sementes nativas. No México, por exemplo, houve pressões para limitar essas práticas depois da assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, por sua sigla em inglês) em 1994, e do Acordo México, Estados Unidos e Canadá (T-MEC) em 2020. Neste contexto, a empresa transnacional de alimentos e doces Mars Inc., valendo-se do Protocolo de Nagoya - acordo internacional que regulamenta internacionalmente a utilização e repartição de benefícios econômicos de recursos genéticos da biodiversidade - registrou o milho olotón de Oaxaca, depois de persuadir uma comunidade mixe[1] a ceder os direitos dessa variedade vegetal comum no México e na Guatemala. Para alguns agricultores indígenas isto constituiu um roubo, não apenas de suas sementes, mas também de seus saberes ancestrais.

Em tensões locais ou lutas globais, as sementes são um símbolo de resistência. Além de serem a base da produção de alimentos, são um bem comum e não uma propriedade corporativa; são “patrimônio histórico dos povos”, como formulou a Via Campesina em 2001. As sementes, em sua pequenez, guardam a memória dos territórios, ecossistemas e povos da América Latina.

*Coletivo de autores

 

Fontes:

Anabel Pomar (2020). “La otra Monsanto: radiografia de Syngenta”. Alianza Biodiversidad.

ASA (2017). “Programa de Manejo da Agrobiodiversidade Sementes do Semiarido” [p. 22]

Conabio (s. f.). “La milpa”.

Associacao Brasileira de Tecnologia de Sementes. Mapa de Sementes do Brasil. Sementes Florestais.

FIPAH (s. f.). “De la semilla a la fruta: Investigacion agroecologica dirigida por agricultores - Soluciones a la seguridad alimentaria de Honduras”.

Alba Portillo (2018). “El município de San Lorenzo - Narino, se declara como un Territorio Libre de Transgenicos”. Semillas n.° 69/70 [pp. 93-95].

Ronald Nigh y Anabel Ford (2019). El jardin forestal maya. Ocho milenios de cultivo sostenible de los bosques tropicales. Mexico: Fray Bartolome de las Casas.

Karla A. Pena-Sanabria et al. (2021). Semillas para el bien comun. Compendio de experiencias latinoamericanas y herramientas legales vigentes en Mexico. Ciudad de Mexico: UNAM.

ISAAA (2020). Accomplishment. Report.

Grupo ETC; GRAIN (2014). Quem vai nos alimentar. A cadeia industrial de produção de alimentos ou as redes camponesas de subsistência.

 

[1] Povo indígena mexicano que habita o noroeste de Oaxaca.