Graças à pressão de movimentos e organizações que se articulam em torno da agroecologia e da soberania alimentar, alguns países da América Latina avançaram na construção de marcos jurídicos e políticos rumo à transição a sistemas agroalimentares alternativos. Além disso, as crises econômicas, ambientais e políticas forçaram os Estados a buscar formas sustentáveis de produção de alimentos e de desenvolvimento rural. No entanto, muitas leis e instituições permanecem no papel ou não alcançam mudanças estruturais, sendo facilmente desmontadas a depender do governo.
A expansão agroecológica na América Latina mostrou que a transição para esse novo paradigma não se dá por decreto; ao contrário, surge dos processos dinâmicos que ocorrem nas comunidades. As leis para essa transição devem ser adaptadas aos territórios e enfatizar não os aspectos técnicos da produção e distribuição de alimentos, mas sim os problemas históricos do continente, como a necessidade de construir um modelo baseado na soberania alimentar como direito dos povos, conforme consta na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais.
A agroecologia e a agricultura familiar, camponesa, indígena e comunitária estão lentamente entrando nas legislações, algumas nacionais e outras de natureza mais local. Embora haja um grande número de regulamentações, a maioria está relacionada à “agricultura orgânica”, “agricultura convencional”, “agricultura sustentável” e certificação para fins de agroexportação, ou seja, com tendências e abordagens voltadas para conglomerados agroindustriais; além disso, muitas são meras declarações ou possuem natureza técnica, com pouco alcance real.
Por esta e outras razões, o Coletivo Agroecológico do Equador, junto com outros agricultores e organizações, travou uma longa batalha durante a primeira década dos anos 2000 para que a agroecologia fosse separada daquelas outras classificações que ignoram os problemas sociais subjacentes. Esse mesmo movimento conseguiu a aprovação, em 2010, da Lei Orgânica do Regime de Soberania Alimentar, pela qual o Estado se compromete a fortalecer as redes de produtores, consumidores e comerciantes, para assim estimular a equidade entre territórios urbanos e rurais, o consumo de produtos agroecológicos e a conservação da agrobiodiversidade.
No Cone Sul, podem ser vistos outros exemplos de legislações que surgem de organizações sociais e se articulam com um arcabouço institucional multissetorial. Em 2015, no Uruguai, a Rede de Agroecologia, a Rede Nacional de Sementes Nativas e Crioulas e a Sociedade Científica Latino-Americana de Agroecologia iniciaram a construção participativa das diretrizes gerais do Plano Nacional de Agroecologia. Isso foi um precedente para a promulgação da Lei 19.717, que declarou a agroecologia de interesse geral e criou uma comissão para elaborar o Plano Nacional para o Fomento da Produção com Bases Agroecológicas. A comissão apresentou seu progresso em fevereiro de 2020. No entanto, em 2022, com a mudança do governo nacional, da presidência da comissão e das representações das instituições públicas, houve estancamentos e retrocessos, devido a questionamentos relativos aos fundamentos do plano e a tentativas de mudança nos conteúdos que haviam sido construídos do zero, de forma participativa.
Na Argentina, em 2020, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca da Nação criou a Direção Nacional de Agroecologia, com o objetivo de construir e implementar políticas públicas voltadas para a transição agroecológica, somando-se a programas já existentes como o ProHuerta, surgido no final dos anos oitenta para mitigar a crise alimentar causada pela hiperinflação, promovendo a autoprodução nas hortas familiares. Na Bolívia, o Conselho Nacional de Produção Ecológica (CNAPE) foi criado em 2010, no âmbito da Lei de Regulamentação e Promoção da Produção Agropecuária e Florestal não-Madeirável Ecológica de 2006 (Lei n.º 3.525), que declara a produção ecológica como uma questão de interesse nacional, e a Lei de Revolução Produtiva Comunitária Agropecuária de 2011 (n.º 144), que promove a produção orgânica e ecológica e sua inclusão nos serviços agropecuários e na educação técnica.
No Brasil, a agricultura familiar é reconhecida como uma categoria importante desde meados da década de 1990, e desde 2003, durante a primeira presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, algumas legislações foram implementadas para fortalecer essa forma de produção, entre elas, a ampliação de recursos investidos no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), institucionalizado em meados dos anos 1990. O programa consolidou uma estrutura de financiamento para esse público, com condições e taxas diferenciadas.
Um aspecto interessante do caso brasileiro é que a circulação de ideias agroecológicas na política institucional também se deu por meio da criação de instâncias participativas para monitorar a implementação de políticas públicas e legislações. Destaca-se os conselhos de segurança alimentar e nutricional e os conselhos de desenvolvimento rural sustentável (em nível nacional, estadual e municipal).
Outra frente importante das políticas voltadas para a agricultura familiar foram os programas de aquisição e distribuição da produção desse grupo, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), instituído em 2003, e a reconfiguração do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), programa de 1979 que a partir de 2009 passou a destinar 30% de seus recursos à aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar.
A construção dessas diferentes políticas culminou na pioneira Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), criada em 2012 e instrumentalizada pelos Planos Nacionais de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), cuja primeira fase ocorreu em 2013, e a segunda em 2016. A PNAPO articula diferentes ministérios e órgãos federais em torno de ações voltadas para a promoção da agroecologia e da agricultura orgânica. Um dos programas que surgiram no bojo da PNAPO foi o Programa Ecoforte, que promoveu o apoio a redes territoriais de agroecologia, a partir de projetos formulados e propostos pelas próprias redes, articulando uma grande diversidade de temas e ações. Os projetos combinaram recursos para fomento e para formação e organização social e política. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) acompanhou e sistematizou 25 dessas redes envolvendo 488 organizações, evidenciando os resultados do programa e fortalecendo as raízes do movimento.
A partir de 2016, entretanto, o Brasil passou a enfrentar medidas austeras que levaram ao desmonte de uma série de políticas públicas. Em 2019, no início do governo de Jair Bolsonaro, as instâncias participativas sofreram um duro ataque, e a PNAPO não ficou de fora. Seus colegiados de gestão, a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e a Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica, foram extintos. Diversas outras políticas públicas voltadas para o setor também sofreram desmontes durante essa gestão: os programas de escoamento de produção familiar tiveram grandes cortes orçamentários, o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi extinto e a reforma agrária foi praticamente paralisada. Em junho de 2023, o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva reestabeleceu os órgãos de gestão da PNAPO, retomando a política.
O caso brasileiro prova que, muitas vezes, o que se constrói com dificuldade, desde a base, pode ser facilmente prejudicado, a partir de cima; daí a necessidade de que as redes agroecológicas sejam fortes e resilientes. As experiências indicam que os estados avançam nas políticas públicas agroecológicas quando os cidadãos se organizam e pressionam os governos defendendo a coerência da proposta agroecológica, que clama por uma reforma agrária integral e popular, com terra para aqueles que a habitam e nela trabalham.
*Coletivo de autores e Julia Dolce.
Fontes: