Direito humano e gestão comum

A água é um bem comum esgotável, e o acesso a ela é cada vez mais desigual. Esse direito essencial deve ir além da concepção da água como um serviço individual mercantilizado. Para garantir esse direito, os Estados devem reconhecer os saberes acumulados e as capacidades adquiridas das comunidades para a gestão coletiva, seja para o consumo direto ou para a produção de alimentos.

Água

O direito humano à água e ao saneamento foi promulgado pela Assembleia Geral da ONU em 2010. Mas esta declaração mostrou-se insuficiente para o reconhecimento dos direitos coletivos e para as práticas comunitárias de gestão da água, e muitas iniciativas ficaram na exigência de um mínimo vital, ou seja, uma quantidade mínima de água disponibilizada com isenção de tarifa, ou na comercialização da água pré-paga ou engarrafada. Alguns países da América Latina incorporaram esse direito em suas legislações, visando cumprir com os compromissos internacionais. Entretanto, em diferentes regiões no continente, existem conflitos por água, a partir da privatização e degradação de terras com nascentes por propriedades agrícolas monocultoras ou mineradoras.  Em Cochabamba, na Bolívia, houve a chamada “Guerra pela água”, conflito que atingiu um ponto crítico em 2000, quando a multinacional Bechtel assinou um contrato com o Estado que lhe permitiu privatizar o abastecimento de água potável e aumentar as tarifas em até 300%.

O direito à água implica na defesa dos territórios comunitários de quem que alimenta o planeta e protege suas fontes hídricas. Na Colômbia, em 2016, o Tribunal Constitucional reconheceu o rio Atrato como sujeito de direitos para garantir sua proteção; além disso, no país, mais de 12 mil organizações da Rede de Aquedutos Comunitários vêm promovendo, desde 2006, um referendo para a defesa da água como um direito fundamental. Já os movimentos sociais e populares do Chile discutem há quase duas décadas uma Lei de Glaciares, visando à proteção das geleiras chilenas, em oposição aos interesses mineradores e industriais. No México, está em discussão a Lei de Águas Nacionais, em defesa dos povos camponeses e indígenas afetados pela Lei Nacional de Águas de 1994, que privatizou o recurso e endossou sua contaminação sob a premissa de que “quem contamina, paga”.

Apesar dessas iniciativas, as políticas continuam sendo insuficientes e carecem de um enfoque agroecológico. Um exemplo disso é a incapacidade do programa estatal Minha Irrigação, na Bolívia, de aliviar a seca extrema em algumas regiões, especialmente na Chiquitania, uma das mais afetadas pela falta de água e pelas pressões do agronegócio. Já o Uruguai, embora tenha sido pioneiro no reconhecimento da água potável e do saneamento como direitos fundamentais, o avanço das monoculturas de soja e do desmatamento persiste, impactando diretamente o acesso à água. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a atividade agropecuária é a principal responsável pelo consumo de água: 70% de toda a água consumida no mundo é utilizada para a irrigação das lavouras. No Brasil, esse número se eleva para 72%, de acordo com dados da Agência Nacional de Águas (ANA).

Diante da importância do agronegócio no consumo de água e da incapacidade dos Estados de garantir o direito a esse bem, movimentos e organizações propõem a defesa da água em conjunto com a promoção da agroecologia, por meio de práticas de irrigação que respeitem os ecossistemas, o manejo integrado das bacias hidrográficas e dos solos, e a implementação de cisternas e esgotos ecológicos. Os povos do planalto boliviano, por exemplo, utilizam a tecnologia ancestral do suka kollus, um sistema recuperado por pesquisadores e agricultores do cantão Lacaya, que consiste em aterros elevados e intercalados com canais para drenar o excesso de água e fazer a irrigação dos cultivos.

Gráfico 1 - Reservas de Água Doce no Mundo

A autogestão da água no continente é realizada através de associações rurais, aquedutos rurais e patronatos[1]. Na Colômbia, Peru e Equador existem aquedutos comunitários com mais de cinquenta anos. Na Costa Rica existem centenas de pequenas organizações comunitárias chamadas ASADAS[2] que fornecem água para 28% da população nacional. No México existem mais de 8 mil organizações comunitárias que garantem o acesso de 24 milhões de habitantes — cerca de 19% da população nacional —; em Veracruz, por exemplo, mais de 76% dos municípios têm patronatos, e existe um comitê de água fundado na década de 1930 que em 1970 foi constituído como associação civil e em 2003 possuía 1.425 patronatos.

Infográfico: O pai das cisternas no semi-árido brasileiro

No Brasil, destaca-se a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede com mais de 3 mil organizações, que tem respondido à crise da água com os programas Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que tiveram início em 2003 e 2007, respectivamente. O P1MC tornou-se uma referência internacional para a democratização do acesso à água, pois adota a agroecologia como base do desenvolvimento rural e utiliza tecnologias de captação e armazenamento de água, sob a premissa de que é necessário conviver com a seca em vez de combatê-la. Entretanto, durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), houve uma redução sem precedentes dos investimentos no programa, e em 2020 foram instalados apenas 8.310 equipamentos de armazenamento de água, ao contrário dos 149 mil instalados em 2014.

A geração e a renovação da água não dependem apenas das fontes hídricas, mas, sobretudo, das interações que ocorrem nos ecossistemas. Daí a importância da agroecologia, que promove a gestão eficiente e ecológica da água, base da boa alimentação e da boa saúde e, portanto, a garantia de condições de vida dignas para as comunidades camponesas, indígenas e afrodescendentes da América Latina.

*Coletivo de autores

 

Fontes:

ATALC (2016). Informe: Estado del agua en América Latina y el Caribe.

Javier Sauras et al. (2015). “La guerra interminable: 15 años de lucha por el agua en Bolivia”. El País.

Red Nacional de Acueductos Comunitarios de Colombia (2017). El derecho a la autogestión comunitaria del agua.

AQUASTAT - Sistema mundial de información de la FAO sobre el agua en la agricultura. FAO.

Hugo Maguey (2018). “Más de 80% del agua se va en uso agrícola y de la industria”. Gaceta UNAM.

Gestión comunitaria del agua. Impluvium Publicación digital de la Red del Agua UNAM, n.° 12, julio-septiembre de 2020.

Suka kollus. Una comunidad conviviendo con las inundaciones y sequías. PNUD, 2005.

Judith Domínguez Serrano y Erandi Castillo Pérez (2018). “Las organizaciones comunitarias del agua en el estado de Veracruz. Análisis a la luz de la experiencia latinoamericana”. Estudios Demográficos y Urbanos vol. 33, n.° 2.

Paulo Petersen (2018). Redes territoriales e innovación agroecológica. Una idea institucionalizada en la política nacional de agroecología y producción orgánica en Brasil. Santiago de Cali: ASPTA y ABA.

Rafael Rodrigues (2016). “O Caminho das águas: Tecnologias de convivência com o Semiárido e
transições sociotécnicas no Sertão brasileiro”. UFRRJ.

Lucila Bezerra (2021). “Sob Bolsonaro, programa de construção de cisternas sofre maior
redução da história”. Brasil de Fato.

ATALC [s. f.]. Política pública y derecho fundamental al agua en América Latina y el Caribe.

Vandana Shiva (2002). Water wars: privatization, pollution and profit. Cambridge: South End Press.

Agência Nacional de Águas (2012). Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil: informe 2012.

 

[1] Organizações formadas pelas comunidades rurais ou periurbanas com o objetivo de assegurar que a água chegue às famílias de suas comunidades.

[2] Associações Administradoras dos Sistemas de Aquedutos e Esgotos Comunitários (Asociaciones Administradoras de los Sistemas de Acueductos y Alcantarillados Comunales).