A concentração fundiária na América Latina gera uma grande quantidade de conflitos agrários e ambientais. O Brasil lidera o ranking de letalidade para defensores da terra e do meio ambiente e a contaminação intencional por agrotóxicos vem sendo registrada como uma estratégia para a apropriação ilegal de terras.
A América Latina tem a maior concentração de terras do mundo e o Brasil é um dos países latino-americanos campeões na desigualdade do acesso à terra. No país, essa concentração tem origens coloniais e foi historicamente legitimada por institutos jurídicos. Em 1850, a Lei de Terras modificou o regime colonial de propriedade agrária, transformando-a em mercadoria. Com esse instrumento, foram estipulados valores altíssimos para as operações de regularização de propriedades agrárias, o que impossibilitou o acesso da maior parte da população. Essa realidade foi somada à prática de “grilagem” fundiária, processo que utiliza de documentação falsa para apropriação de terras públicas ou territórios de povos tradicionais. Com esse padrão vigente há séculos, a concentração fundiária se manifesta nos latifúndios produtores de commodities destinadas para a exportação. Em contrapartida, as terras destinadas à produção de alimentos pela agricultura familiar vêm sendo reduzidas há décadas.
A desigualdade do acesso à terra está por trás dos altos números de conflitos no campo no Brasil. O país é o mais letal do mundo para defensores da terra e do meio ambiente, de acordo com os relatórios anuais produzidos pela organização Global Witness. Entre 2012 e 2021, foram 342 assassinatos no Brasil, quase 20% do total mundial. Já dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mapearam 2.018 conflitos no campo em solo brasileiro em 2022, envolvendo um total de 909.450 pessoas. Desses casos, cerca de 1.946, ou seja, 96,4%, são de ações violentas contra essas comunidades e seus integrantes, as quais resultaram no assassinato de 47 pessoas. Na comparação com o ano de 2021, no qual 36 pessoas foram mortas, verifica-se um crescimento de 30,56%.
Recentemente, a CPT passou a mapear um novo elemento nas pesquisas sobre a violência no campo: a utilização de agrotóxicos em conflitos agrários. Além de estar amplamente documentada a ampliação de casos de poluição das águas e dos solos por essas substâncias tóxicas, bem como a contaminação indireta pela deriva da aplicação desses agrotóxicos, a organização constatou que vem crescendo a contaminação de famílias envolvidas em conflitos fundiários. Foram 8.033 famílias atingidas por essa violência e 193 pessoas vítimas da contaminação por essas substâncias em 2022. A organização mapeou relatos de contaminação dolosa de poços e nascentes, das áreas de produção de alimentos pelas comunidades, e até mesmo do envenenamento de famílias no intuito de expulsá-las dos seus territórios. Foi mapeada a utilização de agrotóxicos em conflitos em todas as regiões e biomas brasileiros, especialmente em conflitos que envolvem territórios indígenas e quilombolas. A CPT e outras organizações da sociedade civil, além de veículos da imprensa, têm denominado o fenômeno como “guerra química”.
Em outubro de 2023, por exemplo, o Ibama detectou o desmatamento de 1.125 hectares de floresta amazônica dentro da Terra Indígena Apyterewa durante uma operação de retirada de invasores. A principal suspeita do órgão ambiental é que o desmatamento tenha sido executado por meio da pulverização aérea de agrotóxicos. A Apyterewa lidera há quatro anos o ranking de terras indígenas mais desmatadas na Amazônia.
O uso dessas substâncias em conflitos não é uma novidade. A origem de parte dos agrotóxicos, como os que fazem parte do grupo de compostos químicos dos organofosforados, é o complexo industrial-militar das duas guerras mundiais. O aperfeiçoamento de agentes químicos tornou a guerra química uma das formas mais letais dos confrontos. Em consequência, ela foi proibida pela Convenção de Genebra em 1925, decisão ratificada desde então por duas outras convenções internacionais. No pós-guerra, as empresas promoveram a utilização dessas substâncias na agricultura. Contudo, para além do uso agrícola, diversos casos recentes parecem apontar a sua utilização ilegal em face de comunidades ou territórios em disputa.
Entre as principais substâncias que têm origem na indústria bélica e estão presentes nos relatos de contaminação intencional em contextos de conflitos agrários brasileiros estão o agrotóxico organofosforado Glifosato, recordista de vendas (246 mil toneladas vendidas no Brasil em 2020), e o herbicida 2,4-D (57 mil toneladas vendidas em 2020), com origem associada ao desfolhante “agente laranja”, arma química que ficou conhecida durante a Guerra do Vietnã, quando milhões de litros foram despejados na população vietnamita que até hoje sofre com os efeitos carcinogênicos e outras doenças decorrentes dessa contaminação. O 2,4-D integra a lista da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) como potencialmente carcinogênico para humanos. Assim, o contato com essas substâncias causa uma série de impactos ambientais e fisiológicos para as comunidades atingidas.
Diante disso, a exposição forçada a agrotóxicos em contextos de conflitos no campo caracteriza uma violação de direitos individuais, coletivos e difusos. A contaminação da água, do solo, das plantas e do ar, vem servindo como estratégia de expulsão de comunidades para apropriação ilegal de suas terras e representa uma violação dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA).