Aprovações, um cabo de guerra tripartite

No Brasil, a aprovação de novos agrotóxicos é regida pela Lei dos Agrotóxicos, que institui um sistema tripartite envolvendo o setor de saúde, meio ambiente e agricultura. A força deste último, porém, tem influenciado flexibilizações que impactam em consecutivos recordes anuais de registros de agrotóxicos.

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A aprovação de agrotóxicos no Brasil é regida pela Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, a Lei dos Agrotóxicos. Em seu artigo Art. 3º, a lei condiciona a aprovação de produção, exportação, importação, comercialização e utilização de agrotóxicos, seus componentes e afins, ao registro prévio em órgão federal. Esse registro é executado por um sistema tripartite, envolvendo, com o mesmo peso de decisão, órgãos responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura.

Os atores desse sistema são o Ministério do Meio Ambiente, por meio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável pelo exame da periculosidade ambiental, o impacto de novos ingredientes ativos e marcas de químicos no meio ambiente; o Ministério da Saúde, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que avalia os riscos desses produtos para a saúde humana, e o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), responsável pelo exame de aspectos de eficácia e eficiência agronômica.

O modelo vigente, que deveria garantir equivalência de relevância e isonomia para interpretações de profissionais responsáveis por cada área, na prática, enfrenta limitações. Com implicações negativas sobre o meio ambiente e os direitos humanos, esse processo tem atendido a interesses de setores do agronegócio que têm grande peso na economia nacional e incidem sobre a gestão do MAPA. Desde 2016, o Brasil tem batido consecutivos recordes na série histórica de registro de agrotóxicos, que teve início em 2000. Em 2022, foram 652 agrotóxicos liberados, sendo 43 princípios ativos inéditos.

Historicamente, esses interesses influenciaram em flexibilizações, como a não obrigatoriedade de reavaliações para ingredientes ativos antigos no mercado, liberados quando os avanços científicos não alcançavam identificar seus malefícios. Por este motivo, ainda que a legislação proíba o registro de agrotóxicos que causem distúrbios hormonais e afecções reprodutivas, que tenham impactos carcinogênicos, mutagênicos, ou teratogênicos, sem possibilidade de desativação ou sem antídoto ou tratamento eficaz no país, o mercado brasileiro está repleto de formulações contendo moléculas relacionadas a este tipo de afecções.

Em 2021, por exemplo, somando os registros oficiais de comércio apenas para o acefato (inseticida/acaricida proibido na União Europeia (UE) desde 2003), a atrazina (herbicida proibido na UE desde 2004), o clorotalonil (fungicida proibido na UE desde 2009) e o mancozebe (fungicida/acaricida proibido na UE desde 2021), observou-se vendas que superaram os 161 milhões de kg/l. Considerando que, embora as avaliações de risco não examinem combinações de venenos, a mistura nos tanques de aplicação é autorizada pelo governo, e sua dispersão se dá principalmente por pulverização aérea (proibida na EU desde 2009), a aprovação e regulamentação de agrotóxicos se revela largamente ofensiva à saúde humana e ambiental.

Além disso, os critérios de toxicidade vigentes no Brasil envolvem limites de difícil aceitação. Por exemplo, no Brasil a potabilidade da água admite, no caso do mancozebe, limites máximos de resíduos 1,8 mil vezes superiores àqueles estabelecidos para consumo humano na UE. Não menos relevante é o fato de que na classificação toxicológica vigente, as afecções crônicas são desconsideradas. Ainda assim, dada a fragilidade dos serviços de monitoramento, que só examinam casos de intoxicação aguda, admite-se que apenas 2% das ocorrências efetivas são registradas. Estimativas relacionadas aos impactos da intoxicação por agrotóxicos, com base em dados oficiais coletados entre 2007 e 2014, referem possível ocorrência de 59,3 mil mortes em um total de 1,25 milhões de pessoas contaminadas. O número é obtido por meio de cálculos que consideram a subnotificação de registros. Já as perdas em serviços ecossistêmicos alcançam dimensão totalmente desconhecida.

A origem dessas circunstâncias também pode ser relacionada ao lobby do agronegócio sobre os poderes executivo, legislativo e judiciário, envolvendo apoio de governos e campanhas de marketing. Registra-se, ainda, a tentativa de maior flexibilização do sistema tripartite. O Projeto de Lei (PL) 1459/2022, conhecido como “Pacote do Veneno”, em tramitação no Congresso Nacional brasileiro, prevê o desmonte da Lei dos Agrotóxicos. Entre as mudanças propostas se inclui uma oficialização de prioridade do MAPA no registro de novos agrotóxicos: o ministério passaria a ser o único órgão registrante dos agrotóxicos, restando ao Ibama e à Anvisa, um papel subordinado de avaliação ou homologação das avaliações.

Entre outras alterações no processo de registro e aprovação de agrotóxicos, o PL estabelece:  a criação da figura do “risco aceitável”, um critério subjetivo de aceitabilidade para substâncias que atualmente tem registro proibido por terem impactos relacionados ao desenvolvimento de câncer, alterações hormonais, problemas reprodutivos ou danos genéticos; o estabelecimento de um mecanismo para aprovação rápida de agrotóxicos, por meio da imposição de prazos reduzidos para avaliação de riscos toxicológicos; a criação de registros temporários para produtos cuja análise ultrapassar o prazo de dois anos; o fim dos requerimentos de reavaliação ou cancelamento da autorização de uso de ingredientes ativos, que são atualmente feitos pela sociedade civil diante de novas evidências científicas sobre produtos registrados. Atualmente, o Brasil não prevê reavaliações periódicas de agrotóxicos. Isto se torna especialmente perigoso porque mesmo com a legislação atual já somos o segundo maior comprador global de agrotóxicos proibidos na UE.