A distribuição desigual da terra é um problema histórico na América Latina. Organizações e movimentos sociais propõem uma defesa do território que vai além da luta pela terra, e inclui a proteção da água, das montanhas, da biodiversidade, das sementes e dos patrimônios culturais e imateriais associados aos povos e aos ecossistemas. A agroecologia é um elemento articulador desta luta. Porém, essas organizações territoriais contra hegemônicas enfrentam uma série de ameaças.
Em toda a América Latina as terras foram monopolizadas para a megamineração, as monoculturas e as hidrelétricas, além do cultivo e o tráfico de drogas. Segundo uma pesquisa da Oxfam, mais da metade das terras produtivas da região são fazendas e propriedades dedicadas à monocultura, enquanto as propriedades familiares ocupam 13% do território e estão em territórios marginais e pouco férteis. Isto se deve ao histórico colonial na região, baseado no sistema de plantation, cuja manutenção ao longo dos séculos atingiu uma nova fase, neocolonial, durante a primeira década do século XXI. Esse processo recente envolve a apropriação e financeirização da terra por multinacionais, consolidando os grandes latifúndios na América Latina. Na Bolívia, por exemplo, a estrutura agrária foi tão desigual que das 660 mil unidades agrícolas que havia no país em 2007, 87% eram pequenas propriedades que ocupavam apenas 14% da terra arável disponível, segundo dados do Banco Mundial. Isso significa que, desse total, 85,8 mil unidades produtivas eram latifúndios que ocupavam a maior parte das terras férteis do país.
Na Argentina, Uruguai e Brasil, a venda de terra para a monocultura de soja durante a primeira década do século XXI foi tão frequente que a corporação Syngenta batizou esses territórios como a “República Unida da Soja”. O Censo Agropecuário brasileiro de 2017 revelou que das 5 milhões de propriedades agrícolas no país, apenas 51 mil detêm 47,6% das terras. Já os pequenos proprietários, donos de terrenos de até 10 hectares, ocupam apenas 2,3% do total. Essa grande concentração fundiária parte da privatização e mercantilização das terras e se opõe diretamente às concepções dos povos indígenas, quilombolas e campesinos. Para eles, a terra é mais do que commodity: é território, lar da complexa biodiversidade que sustenta a sobrevivência, distintas culturas e modos de vida.
A reconquista do território hoje tem um caráter diferente ao das reformas agrárias do século passado, concentradas principalmente na luta contra a concentração da terra. As comunidades e organizações reivindicam uma reforma agrária integral, popular, feminista e agroecológica que inclua o campo e a cidade, os trabalhadores rurais sem-terra, as camponesas e camponeses deslocados para os cinturões de miséria urbanos, e seus descendentes nascidos e criados nas cidades e que reivindicam o direito de voltar ao campo. Como diz a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham nas áreas rurais, camponês é toda pessoa “que se dedique ou pretenda dedicar-se à produção agrícola em pequena escala e que tenha vínculo especial de dependência e apego à terra”.
Na América Latina há muitas organizações que defendem os rios, os páramos, os mares e o ar. Diante das atividades extrativistas e da ameaça que essas representam para seus direitos e formas de vida, as organizações promovem marchas, ocupações, denúncias e campanhas, construindo redes de solidariedade regionais e globais. Uma dessas experiências é o Movimento Rios Vivos da Colômbia, que começou como um protesto de três pessoas contra a destruição do canyon do rio Cauca e foi se transformando em uma poderosa articulação de organizações de mulheres, garimpeiros, pescadores, tropeiros e agricultores que enfrentaram a construção e as consequências do projeto hidrelétrico de Hidroituango. Já no Equador e na Bolívia, o reconhecimento das múltiplas nações indígenas permitiu a autonomia de diferentes povos, por meio das figuras do Território Indígena Originário Campesino (TIOC) e das Circunscrições Territoriais Indígenas (CTIs), respectivamente, o que garante a preservação dos territórios e os saberes ancestrais. No México, por sua vez, destaca-se a experiência dos Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas, que inspirou múltiplas lutas e formas de organização pelo direito à autodeterminação indígena neste país.
Resistências como essa fazem parte da história da América Latina e têm encontrado ressonância nas práticas agroecológicas, além de nutrirem a agroecologia, como movimento, com formas de governança territorial indígena, camponesa e afrodescendente. No continente é possível falar de territórios agroecológicos e outras formas de organização que se voltam para a agroecologia enquanto desenvolvem novas formas de resistir ao avanço da acumulação de terras pelos setores extrativos predatórios. Ainda na Colômbia, por exemplo, as Zonas de Reservas Camponesas ocupam 287.269 hectares. Nestas áreas existem inúmeras pequenas propriedades e terras montanhosas, algumas com sistemas de produção agroecológica.
No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que reúne cerca de 350 mil famílias, reivindica o fim dos latifúndios e sua transformação em propriedades familiares e camponesas de produção agroecológica. O movimento é reconhecido como o maior produtor de arroz agroecológico de toda a América Latina. Já no México, destaca-se o exemplo notável do município agroecológico El Limón, em Jalisco, que foi fundado em 2019 por produtores do assentamento La Ciénega. No município, a produção livre de agrotóxicos se soma às bandeiras da autonomia alimentar e da conservação dos ecossistemas, objetivo refletido em uma taxa positiva de desmatamento do município: lá, as florestas crescem ao invés de desaparecer.
Se os territórios agroecológicos nascem dessas estruturas geradas após anos de luta, também enfrentam ameaças que dificultam a consolidação dessas organizações territoriais. Um exemplo disso são as investidas do Estado colombiano e dos exércitos irregulares de paramilitares que o Movimento Camponês de Cajibio, no departamento de Cauca, Colômbia, enfrenta, fechando as principais vias do país para lembrar aos cidadãos de onde vem os alimentos que são consumidos diariamente nas cidades.
Em todo o continente, estes tipos de resistências provocaram ataques, assassinatos e desaparecimentos de defensores da terra e do meio ambiente, casos que poucas vezes foram esclarecidos. Em 2022, um total de 177 pessoas perderam a vida por defenderem seus territórios e o meio ambiente. Mais de 70% desses casos aconteceram na Colômbia, no México ou no Brasil, de acordo com levantamento da organização Global Witness. A América Latina foi palco de 88% dos assassinatos de ativistas ambientais do mundo em 2022, e 70% dos 1.335 assassinatos cometidos na última década. As investidas contra esses movimentos se dão também nos campos institucionais. Em setembro de 2021, por exemplo, foi aprovada no Paraguai uma lei que criminaliza a luta pela terra, o que gerou alertas para movimentos de todo o continente.
Fontes:
Arantxa Guerena (2016). Desterrados: tierra, poder y desigualdad en America Latina. Oxfam
Grain (2013). “La Republica Unida de la Soja recargada”
Indepaz (2021). “5 anos del Acuerdo de Paz – Balance en cifras de la violência en los territorios”
Global Witness (2021). Ultima linea de defensa. Las industrias que causan la crisis climatica y los ataques contra personas defensoras de la tierra y el medioambiente
Movimiento Rios Vivos de Colombia
Indepaz (2021). “Lideres ambientales asesinados”
Luiz Zarref (2018). “Agroecologia e o MST”. Movimento Sem Terra
UTT (2020). “Las Colonias Agroecologicas: una propuesta que crece en todo el pais”
Asociacion Minga (2015). “Movimiento Campesino de Cajibio, MCC”