Significados da família: Baseado em pesquisa realizada para a agência nova s/b

20ª Parada do Orgulho LGBT de Belo Horizonte

Para compreender o que a família significa para brasileiros com diferentes posições políticas, a agência de comunicação nova s/b encomendou uma pesquisa qualitativa com eleitores de diversos lugares do país.

Ao todo, foram entrevistadas 15 pessoas, das quais seis são evangélicas e nove católicas. Nas eleições de 2018 e 2022, seis delas votaram em Lula no primeiro e segundo turnos, três votaram em Bolsonaro no primeiro e segundo turnos, e seis pessoas não optaram nem por Lula nem por Bolsonaro, nem no primeiro e nem no segundo turnos de ambas eleições. Todos os entrevistados são mães e pais das faixas CD de renda que residem no Nordeste ou no Sudeste (mais detalhes em anexo ao final do texto).

As principais diferenças sobre os significados da família observadas na pesquisa se dão entre evangélicos e não-evangélicos e quem votou em Bolsonaro e aqueles que não o fizeram.

A família tradicional centrada em ensinamentos cristãos é celebrada por pessoas evangélicas e eleitores de Bolsonaro, enquanto os demais entrevistados possuem uma definição de família mais aberta, que abrange diversos formatos para além do modelo tradicional.

Discussões sobre a família são atravessadas, necessariamente, por questões econômicas, relacionadas à violência e acesso a conteúdos digitais por crianças e jovens, frente às quais as famílias se sentem inseguras e pouco amparadas pelo poder público.

Nesse sentido, o que diferencia os entrevistados que votaram em Lula dos demais é sua aposta em políticas públicas para superar as dificuldades vivenciadas pelas famílias e seu otimismo no que tange à melhora futura da economia.

Os demais entrevistados tendem a ser mais céticos em relação à possibilidade do poder público conseguir suprir carências nesse sentido, e, no caso de pessoas evangélicas, há uma preocupação especial com políticas relacionadas à gênero e sexualidade, sobretudo no âmbito das escolas.

A seguir, os principais resultados da pesquisa são apresentados considerando os seguintes tópicos: 1. Definições de família; 2. Modelos de família; 3. Escola; 4. Violência; 5. Internet; 6. Economia; 7. Governo Lula. 

1. DEFINIÇÕES DE FAMÍLIA

As definições de família dadas pelas pessoas entrevistadas variam de acordo com seu perfil ideológico e religioso.

Aqueles que votaram em Bolsonaro e se declaram evangélicos tendem a defini-la a partir do modelo tradicional, isto é, a família formada por marido, esposa e filhos. Ainda que compreendam que fatalidades possam interferir no funcionamento deste modelo, como divórcio, morte de um dos cônjuges, ou menor convivência com um ou ambos os pais, o modelo ainda continua a funcionar como o ideal do que uma família “estruturada” e “correta” deve ser.

Para os entrevistados evangélicos, sobretudo para aqueles que votaram em Bolsonaro, a família tradicional que segue os ensinamentos de Cristo é a base de suas vidas. Em sua visão, os ensinamentos de Cristo vêm sempre em primeiro lugar e são o pilar da família.

Em sua visão, independente do voto, é importante que a família compartilhe da mesma fé, dos mesmos preceitos religiosos e de uma mesma rotina de frequência aos cultos.

O comportamento dos pais serve, necessariamente, de exemplo ao comportamento dos filhos. Assim, é esperado que um comportamento exemplar por parte dos pais aumente as chances de que os filhos desempenhem de forma semelhante. Há, ainda, um entendimento de que os pais devem interferir mais ativamente no cotidiano dos filhos, dando conselhos, encorajando certos comportamentos e vetando outros.

Entre os eleitores que não se declaram evangélicos, a prática religiosa possui uma importância menos central no cotidiano familiar em comparação à importância concedida pelos evangélicos. Além disso, tais eleitores entendem que os filhos devem ser livres para optar por seguir a mesma religião da família no futuro ou não.

Em sua visão, não há um modelo mais correto ou que necessariamente fornece uma “melhor estrutura” emocional e financeira para a família, uma vez que diferentes arranjos podem funcionar.

Os entrevistados nem-nem, e aqueles que votaram em Lula, possuem uma definição de família mais aberta, que abrange diversos formatos para além do modelo tradicional. Em sua visão, o fundamental seria a existência de amor, carinho, cuidado e respeito no cotidiano familiar, sobretudo em momentos de dificuldade financeira, em que uma pessoa da família deve ajudar a outra.

2. MODELOS DE FAMÍLIA

Há uma percepção bem acentuada das diferenças entre o modelo de família proposto por Bolsonaro em comparação com o posicionamento de Lula sobre o tema.

Quem votou em Bolsonaro exalta sua defesa da família tradicional, a importância de Michelle Bolsonaro como modelo de esposa e sustenta que o deputado federal Nikolas Ferreira é um bom modelo a ser seguido pelos jovens.

Em seu entendimento, Lula não possui e nem defende um modelo de família específico, apenas quer destruir a família tradicional.

Já para os entrevistados críticos a Bolsonaro, o governo Lula e o PT não promovem uma imagem de família clara.

O posicionamento de Lula e do PT deixaria espaço aberto para a manifestação da diversidade de gênero. Isso seria positivo dado que o PT pregaria a diversidade ao mesmo tempo que procura promover a dignidade material das famílias por meio de políticas públicas. Em sua visão, Bolsonaro teria feito pouco pelas famílias na prática. Inclusive, sua conduta durante a pandemia, e o discurso de ódio, violência e exaltação de armas realizado por bolsonaristas, teria prejudicado as famílias brasileiras.

Por fim, Bolsonaro é criticado por fazer um uso eleitoreiro da defesa da família tradicional para enganar as pessoas.

Ao mesmo tempo, para eleitores nem-nem e, sobretudo, para quem votou em Bolsonaro, Lula também se aproveitou da pauta LGBTQIAP+ para se eleger e fazer marketing de seu governo. 

3. ESCOLA

Para todos os entrevistados a escola é um local de conflitos, tensões e preocupações. As reclamações abrangem problemas de infraestrutura, merenda ruim, professores mal pagos e desvalorizados, bem como educação de baixa qualidade.

No entanto, quando se fala em escola, os temas que mais vêm à tona são a violência e educação sexual. A violência, frequentemente, aparece muito conectada ao pânico pós-massacre em Blumenau[1], e muitas mães ainda dizem que estão com medo de enviar os filhos à escola por conta do ocorrido.

Para a maioria dos entrevistados, sobretudo para evangélicos e para quem votou em Bolsonaro, a educação sexual deve ser prerrogativa dos pais. Porém, uma parte dos entrevistados, sobretudo os que votaram em Lula, defende que a escola poderia abordar tais assuntos com cuidado, de forma paciente e pedagógica. 

4. VIOLÊNCIA

A violência cotidiana é algo central nas falas de todos os entrevistados. O medo em relação à exposição dos filhos a possíveis situações de violência nas ruas é algo que gera muita ansiedade e pânico entre mães e pais.

Muitos apontam que, por conta dos altos índices de violência, e da onipresença do tráfico de drogas, é preferível que os filhos fiquem em casa na frente de telas (celular, tablet, computador e televisão). Ainda que entendam que isso implique em prejuízos sociais variados, os entrevistados se resignam afirmando que, dessa forma, seus filhos ficam mais protegidos da violência fora de casa.

Nesse sentido, as mães que votaram em Bolsonaro e se declaram evangélicas, destacam a importância de possuir uma casa própria como forma de se proteger. Isso é enfatizado pelas entrevistadas como a base material para a felicidade da família, mas também considerando a segurança de estar em um local distante de territórios mais violentos onde possam se sentir, de fato, seguras.

5. INTERNET

Conectada às discussões sobre violência e massacres nas escolas, outra questão abordada pelos entrevistados foi a exposição das crianças à internet. Tendo em vista que crianças e adolescentes passam boa parte de seu tempo livre online, há uma preocupação de pais e mães com a convivência social dos filhos e o tipo de conteúdo digital que estes consomem.

Todos os entrevistados afirmam que tentam, na medida do possível, filtrar o que os filhos podem ver ou não nas redes, e a questão é uma grande preocupação entre as famílias.   

Mães e pais evangélicos tendem a interferir de forma mais incisiva na vida digital dos filhos em comparação aos demais, orientando quais comportamentos são mais ou menos desejáveis. Uma das mães que votou em Bolsonaro, por exemplo, orienta seus filhos a acessarem conteúdos do deputado federal Nikolas Ferreira e a não consumirem aqueles produzidos pelo influenciador Felipe Neto.

6. ECONOMIA

A economia, ao lado da violência, é outra questão que atravessa o cotidiano das famílias e é central em suas falas.

Todos os entrevistados vivem com medo constante de vir a enfrentar dificuldades econômicas. Seu cotidiano familiar é permeado pelo o que a literatura especializada qualifica como “viração”, ou seja, arranjos precários e ajudas financeiras mútuas que permitem que as famílias consigam sobreviver em meio a constantes ameaças à sua segurança material.

É comum entre as mães entrevistadas o sentimento de que nem sempre conseguem oferecer aos filhos um leque mais amplo de produtos alimentícios, de vestuário ou lazer.

Quem votou no atual presidente tende a ser mais otimista em relação à melhora da economia e procura destacar os programas sociais realizados durante o tempo em que o PT ocupou o governo federal.

Já aqueles que não votaram em Lula possuem baixas expectativas de melhora das condições econômicas do país, sendo que, quem votou em Bolsonaro, tende a condenar auxílios do governo, como o Programa Bolsa-Família, por deixarem as pessoas “preguiçosas”.

7. GOVERNO LULA

No que tange às políticas públicas do governo Lula voltadas às famílias, os entrevistados consideram mais importantes aquelas ligadas à gênero e sexualidade, e à oferta de melhores serviços públicos e oportunidades econômicas.

Para as pessoas que votaram em Bolsonaro, Lula teria se aproveitado politicamente da pauta LGTBQIAP+ para ganhar os votos dessa comunidade de forma análoga ao que teria feito com os mais pobres nas eleições anteriores. Tal percepção causa ressentimentos sobretudo entre entrevistados evangélicos e eleitores de Bolsonaro.

Nesse sentido, é importante destacar que uma eleitora de Bolsonaro afirmou que o deputado federal Nikolas Ferreira teria defendido as mulheres ao se posicionar contra mulheres transgênero querendo “roubar” o lugar das mulheres no dia 8 de março e eclipsando a luta das mulheres “de verdade”.

Na visão de eleitores de Bolsonaro, e, em menor ênfase entre alguns eleitores nem-nem evangélicos, Lula deixa de proteger a família ao não se posicionar contra uma educação sexual tida como “libertária” nas escolas e em relação à pauta trans.

Em sua visão, o presidente deveria se opor explicitamente ao compartilhamento de banheiros por pessoas do mesmo sexo biológico, sobretudo em escolas, de modo a garantir proteção física e moral para crianças e mulheres.

Já os demais entrevistados, inclusive uma parte daqueles que se declaram evangélicos, defendem que é preciso fazer campanhas e falar sobre temas como gênero e sexualidade. Porém, ressaltam que é preciso comunicar tais questões com paciência, cuidado e respeito, sem imposições e radicalismos.

Em seu entendimento, a educação sexual poderia ser ofertada por meio de informações básicas para evitar gravidez precoce, por exemplo. Porém, acreditam que questões ligadas à orientação sexual deveriam ser tratadas em âmbito familiar. Ou seja, para eleitores que não votaram em Bolsonaro, o governo Lula não deve “incentivar” nenhum comportamento de forma explícita e, ao mesmo tempo, respeitar todas as pessoas.

Finalmente, todas as pessoas entrevistadas apontam que é necessário que o governo melhore a economia do país, investindo mais em educação, saúde e segurança.

Há um sentimento de urgência em relação à melhora dos serviços públicos, e muitas pessoas entrevistadas se sentem desesperadas e desamparadas pelo poder público. 

Há, porém, quem destaque políticas do PT como FIES e PROUNI, afirmando que os governos petistas investiram na educação no passado. Porém, todos os entrevistados apontam que é preciso fazer mais, sobretudo no que tange à valorização salarial dos professores, segurança e melhor infraestrutura no ambiente escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das entrevistas realizadas, é possível considerar que há uma concordância geral a respeito da importância de políticas públicas que garantam segurança, educação, saúde, moradia e renda digna para que as famílias e seus respectivos lares possam, de fato, desfrutar de maior bem-estar material e psíquico. Sobretudo, tendo em vista a insegurança estrutural e a lógica de viração que perpassa o cotidiano da maior parte dos brasileiros.

No entanto, se para as pessoas que votaram em Lula existe a perspectiva de que é possível avançar nesse sentido nos próximos anos, entre as pessoas que não votaram no PT, especialmente entre aquelas que optaram por Bolsonaro, a perspectiva de um futuro melhor está ausente. Em suas falas, políticas públicas relacionadas ao bem-estar das famílias rapidamente suscitam falas a respeito de políticas públicas moralizantes relacionadas à gênero e sexualidade, sobretudo no âmbito das escolas, em um esforço de obter ordem em meio à percepção de uma insegurança generalizada.

A necessidade de ordem reaparece na importância concedida ao modelo tradicional de família (pai, mãe e filhos), tido como o único passível de assegurar, de fato, o bem-estar de seus membros. Nesse sentido, cabe ainda destacar que, se o campo conservador possui uma imagem bem delimitada de família, o mesmo não ocorre no campo progressista. Isso alimenta a percepção entre eleitores conservadores de que o campo progressista almeja destruir a família tradicional, criando, assim, um grave problema para a elaboração e comunicação de políticas públicas que visem o bem-estar das famílias, sobretudo, daquelas relacionadas à questões de gênero e sexualidade. 

APÊNDICE > PERFIS DAS PESSOAS ENTREVISTADAS

Votaram em Bolsonaro nos dois turnos em 2018 e 2022:

  • mãe, 47, ensino médio completo, diarista, 2,8 mil reais, evangélica, Belo Horizonte
  • mãe, 33, ensino médio completo, recepcionista, 3 mil reais, evangélica, Belo Horizonte
  • mãe, 40, ensino médio completo, do lar, 2,5 mil reais, evangélica, Belo Horizonte

Votaram no PT nos dois turnos em 2018 e 2022:

  • mãe, 30, ensino médio completo, vendedora, 2 mil reais, católica, Recife
  • mãe, 41, ensino médio completo, vendedora, 1 mil reais, católica, Recife
  • mãe, 34, ensino médio completo, do lar, 2,5 mil reais, católica, Recife
     
  • pai, 30, ensino médio completo, educador social, 1,6 mil reais, católico, Fortaleza
  • pai, 41, ensino médio completo, educador social, 1,8 mil reais, católico, Fortaleza
  • pai, 34, ensino médio completo, agente administrativo, 1,6 mil reais, católico, Fortaleza

Optaram por votar nem em Lula e nem em Bolsonaro em 2018 e 2022:

  • pai, 41, ensino médio completo, porteiro, 3,5 mil reais, católico, São Paulo
  • pai, 41, ensino superior completo, vigilante, 1,9 mil reais, católico, São Paulo
  • pai, 48, ensino médio completo, operador de máquina, 1,9 mil reais, católico, São Paulo
     
  • mãe, 59, ensino fundamental completo, aposentada, 3 mil reais, evangélica, São Paulo
  • mãe, 55, ensino fundamental completo, do lar, 4 mil reais, evangélica, São Paulo
  • mãe, 57, ensino fundamental completo, manicure, 3 mil reais, evangélica, São Paulo

[1] N.E. O que ficou conhecido na mídia como “massacre de Blumenau” se refere ao assassinato de quatro crianças ocorrido em 05 de abril de 2023 na Creche Cantinho do Bom Pastor, localizada no município de Blumenau, no estado de Santa Catarina. Além de quatro crianças mortas, cinco ficaram feridas.