A região amazônica, historicamente, sempre foi objeto de disputa e cobiça de governos, empresas e atores sociais. Fronteira agrária, lá é para onde se expande o gado e a soja no Brasil. Nos últimos dois anos têm crescido os conflitos e a atuação dos defensores de direitos humanos está cada vez mais ameaçada.
Em nossos 21 anos de atuação no Brasil, apoiamos a Sociedade Paraense de Direitos Humanos, uma organização com 44 anos de história, defendendo os direitos daqueles que vivem e atuam politicamente na região. Nessa conversa política, com solidariedade e diálogo constante, Marco Apolo Leão, um dos diretores da entidade, foi nosso interlocutor. Com ele trocamos ideias, fizemos pontes de intercâmbio com pessoas na Alemanha, visitamos a região e pudemos compreender os desafios de viver em um dos lugares mais importantes da Terra. Marco é advogado e defende os quilombolas, os indígenas, os movimentos campesinos, além de pessoas vitimadas pela violência urbana da cidade de Belém e região.
Hoje apresentamos a você essa figura emblemática da luta por direitos no Brasil. Convidamos a conhecer sua trajetória e a da SDDH, entidade que faz um trabalho essencial na região amazônica.
A trajetória de Marco Apolo Leão, dirigente da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos coincide com a parceria entre a entidade e a Fundação Heinrich Böll. Os três caminharam e cresceram juntos; um encontro fértil que merece ser contado e celebrado. No aniversário de 21 anos da Fundação Heinrich Böll no Brasil, abrimos espaço para contar a trajetória de um defensor de direitos na Amazônia.
O advogado paraense Marco Apolo Leão sempre se indignou diante das desigualdades sociais que observava em seu cotidiano. Sua luta em defesa dos direitos humanos tem início ainda na juventude, em trabalhos sociais. A faculdade de Direito, que seria uma escolha prática e distinta da militância política, acaba por aprofundar seu compromisso por uma sociedade mais justa e igualitária. Como estagiário de Direito, Marco Apolo começa a colaborar com a SDDH, entidade que hoje, vinte anos depois, ele coordena. Atuando na defesa dos defensores de direitos, Marco realiza um trabalho árduo, perigoso e necessário, já que o próprio sistema judiciário é mais um obstáculo à justiça do que instrumento para obtê-la.
SDDH: uma referência
Em 2021 a SDDH completou 44 anos de atividades na região amazônica, um cenário tão exuberante quanto desafiador. Nas zonas rurais, os conflitos, em geral agrários e ambientais, multiplicam-se diante da ausência ou leniência do Estado, e sempre sob ameaça de violência. Nas regiões urbanas, questões referentes à cidadania e à moradia geram demandas que o poder público se mostra incapaz ou desinteressado em atender. A SDDH procura garantir acesso à Justiça a parcelas da população brasileira sistematicamente destituídas de direitos básicos. Em sua trajetória, acumula uma reputação respeitável local e internacionalmente, e um vasto lastro de serviços prestados a diversos povos originários, comunidades tradicionais ribeirinhas, quilombolas e das periferias das cidades.
A SDDH atua com protagonismo na luta contra a violação de direitos no Brasil numa das regiões em que eles são, historicamente, mais desrespeitados. Sóbria na própria comunicação, não alardeia feitos ou conquistas. Mas exibe prontamente em seu site as instâncias das quais participa, conselhos nos quais tem assento, representações que integra. Na organização cujo símbolo é um círculo de pessoas (ou uma ciranda, para os mais poéticos), a ênfase recai sempre no coletivo. Se ‘o primeiro passo é resistir’ - como reza um de seus pilares -, isso só é possível no plural.
Nascentes
Fundada em plena ditadura militar (1977), a Sociedade Paraense vivenciou os efeitos do regime: o jornal Resistência teve a gráfica incendiada e bancas sofreram ameaças de bomba. Dois ex-presidentes, Paulo Fontelles e Jaime Teixeira, foram assassinados, e mesmo em tempos democráticos, não são raras as ameaças a integrantes da entidade. Marco Polo Leão, coordenador geral da SDDH, lembra com tristeza essas perdas, retaliações típicas daqueles que realizam esse tipo de embate contra as violações de direitos humanos. “Essas listagens de pessoas ameaçadas sempre tiveram nomes de pessoas da SDDH. Hoje em dia estamos mais cuidadosos para preservar os companheiros”.
Marco Apolo (que também já foi alvo de ameaças), ingressou na instituição há 20 anos. O então estudante já conhecia e admirava o trabalho da Sociedade e da pastora Rosa Marga Rothe (1940-2016), uma das fundadoras da SDDH, primeira ouvidora de Segurança Pública do Pará. Depois de formado, Marco começou a advogar na Sociedade “na defesa dos atingidos por violações de direitos humanos, atuando sempre para desenvolver e propagar mecanismos de difusão da cultura de Direitos Humanos”, objetivo principal da SDDH. Ele fala com indisfarçável orgulho do papel inspirador da entidade para outras organizações ao longo de todos esses anos: “Outras entidades trabalham com formação, mas poucas oferecem assistência jurídica popular como a SDDH. O único jornal da época da ditadura que ainda é publicado é o Jornal Resistência, um marco no campo progressista”, aponta.
Para Marco, a longevidade da SDDH depende, em parte, de parceiros que apostem na estabilidade. E aponta a relação com a Fundação Heinrich Böll como uma dessas parcerias enriquecedoras, capazes de contribuir para a persistência e o crescimento de uma organização cujo cotidiano é composto por enfrentamentos intensos e perigosos.
Confluência
A Fundação Heinrich Böll e a SDDH iniciaram um histórico de colaboração por volta do ano 2000, na mesma época em que Marco chega à Sociedade – uma confluência de trajetórias. Em pouco tempo, a cooperação entre as duas entidades se mostrou particularmente importante, em função do contexto político brasileiro. A eleição do Partido dos Trabalhadores ao governo federal, em 2002, gerou desdobramentos inesperados para muitas entidades do campo democrático, na avaliação de Marco Apolo: “Os movimentos sociais viveram uma espécie de ‘refluxo’: muitos organismos internacionais retiraram ou diminuíram muito o apoio às Ongs por acreditarem que um governo progressista resolveria uma série de problemas sociais. E a Böll não, fez uma leitura correta de que as coisas não estavam resolvidas tão rapidamente no Brasil, e que seguiria nos apoiando”, lembra Marco.
O tempo provou que a análise estava correta. Ironicamente, o maior conflito que a SDDH e a Böll enfrentaram se deu durante os mandatos petistas: a luta contra a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na Bacia do Rio Xingu, norte do Pará. “A perseguição ao movimento social independe do governo, está ligada ao capital. Então pode ser o PT, o PSDB, o Bolsonaro: o projeto de criminalização do movimento social é mais amplo”, reflete Marco. E nesse embate, entre inúmeras ações, denúncias e audiências envolvendo a Belo Monte, o coordenador recorda com clareza da participação de uma delegação da Böll no Encontro “Xingu Vivo para Sempre” em Altamira, em 2008: “Foi um evento muito tenso, houve um incidente entre os indígenas e um dos técnicos que foi desrespeitoso com eles, e eu lembro que o [antigo diretor da Böll] Thomas [Fatheuer] estava lá, com outras pessoas da Fundação, participando do encontro. Bacana esse apoio da Böll, inclusive presencial”, recorda.
Vazante
Cabe aqui retornar ao símbolo da SDDH, a ciranda em que “ninguém solta a mão de ninguém”, palavra de ordem que “viralizou” logo após a ascensão de Bolsonaro ao poder. Marco Apolo confirma esse caráter agregador da SDDH: “A Sociedade tem essa característica de chamar os integrantes para fazer parte da diretoria ou do Conselho de Direitos Humanos. Nunca deixa ninguém ficar muito longe”, afirma. Essa perspectiva colaborativa permeia as relações e interações da SDDH com seus parceiros, percebidos em sua singularidade mas igualmente importantes no projeto de uma sociedade mais justa e igualitária. Desta maneira é vista e percebida a Fundação Heinrich Böll: como uma parceira, também integrante desse círculo de acolhimento e luta.
“Uma coisa que sempre achei louvável na relação com a Böll é que eles nunca impuseram uma pauta para nós. Sempre buscaram saber qual era a nossa orientação, com o que pretendíamos trabalhar e, se fazia sentido para eles, então seguíamos colaborando”, descreve Marcos Apolo. Uma relação respeitosa, que não reproduz as hierarquias que se quer derrubar. Outro destaque feito por Marco foi a participação no evento "Brasil - Atores Sociais em Resistência", organizado pela Böll em Berlim, em 2019, com o objetivo de informar o público da Alemanha sobre os acontecimentos na Amazônia. A viagem incluiu também uma encontro em Bruxelas, na União Europeia, onde foi possível conversar com outros atores sociais interessados na situação brasileira: “Isso é outra coisa muito positiva da Fundação, que é fomentar o debate, colocar pessoas em contato, propiciando a integração. É fundamental para o nosso trabalho”, conclui Marco Apolo, fazendo menção à importância da pressão internacional em muitas ações judiciais movidas no campo da violação de direitos.
Um trabalho arriscado e complexo, e que vem apresentando novos contornos. Segundo o advogado, se antes a maior parte dos conflitos no campo eram agrários, agora apresentam características agrário-ambientais, disputas em que a posse da terra está imbricada com questões envolvendo o meio ambiente. E mais recentemente, sob o atual governo neoconservador, de viés fascista, tendem a agregar também um componente ideológico, acirrando um campo já devidamente minado e tenso, pois a violência sempre esteve presente na região, durante regimes mais ou menos democráticos. “A ditadura militar criou um padrão de violência coletiva e de impunidade que até hoje persiste nos campos paraenses, com o aval do Judiciário”, sentencia Marco.
Por isso, parcerias como a da SDDH e a Fundação Böll são vitais para o enfrentamento de uma estrutura de violação de direitos antiga, de raízes fundas fincadas na sociedade brasileira. O fortalecimento de uma cultura dos direitos humanos pode parecer uma batalha desigual (e às vezes é), mas há avanços e vitórias. E a voz dos defensores de direitos se faz ouvir: na abertura da última sessão do ano na ONU, em 13 de setembro de 2021, a Alta Comissária da ONU, Michelle Bechelet, expressou preocupações com o Brasil, citando nominalmente a situação dos povos Munduruku e Ianomami e as ameaças aos indígenas brasileiros. A SDDH, juntamente com outras entidades, foi responsável pelo comunicado sobre as violações de direitos dessas comunidades e omissões do governo federal referentes à pandemia da Covid-19. Um resultado visível do esforço e compromisso daqueles que defendem os defensores de direitos e para quem a luta por uma sociedade justa e igualitária segue sendo razão de viver.