Envenenando o campo, a cidade e as políticas

Política

Os formuladores de políticas públicas têm dado respostas frágeis às questões envolvendo os insetos e sua relação com a sociedade e a natureza. Eles hesitam em confrontar a indústria agrícola e as desigualdades sociais que estão por trás das epidemias.

A agenda da Eco-92 tratou não apenas da proteção do clima, mas também da biodiversidade. A Convenção sobre Diversidade Biológica foi criada para conservar a multiplicidade de espécies ao redor do mundo. Assinada por mais de 160 países, é o mais abrangente acordo internacional de proteção da natureza e dos recursos naturais. Mas, apesar de alguns avanços, a meta de conter a perda de diversidade biológica até 2010 não foi alcançada, e a prorrogação do prazo até 2020 também falhou.

O Conselho Mundial de Biodiversidade (IPBES) foi fundado em 2012 para fornecer aconselhamento científico aos formuladores de políticas no campo da diversidade biológica e serviços do ecossistema. Seu primeiro relatório, em 2016, analisou a situação dos polinizadores e da produção de alimentos. O documento apresentou um declínio dramático no número de polinizadores tanto em termos de diversidade quanto em quantidade de espécies individuais. O IPBES apontou a agricultura intensiva e o uso associado de agrotóxicos como ameaças aos insetos e fez um apelo por uma transformação em toda a sociedade para deter a perda de biodiversidade.

É bem ilustrativo o caso do Brasil, em que há o aumento exponencial de registros de agrotóxicos no país, principalmente a partir de 2016. Só em 2019, o governo federal liberou 503 novos agrotóxicos, sendo 41% altamente ou extremamente tóxicos. Como resultado, no país e no mundo, diversas iniciativas têm sido propostas por organizações e grupos para colocar a proteção dos polinizadores na agenda política. Um grupo de países lançou a iniciativa conhecida como “Promova Polinizadores, a Coalizão dos “Dispostos a Polinização”, com o objetivo de estabelecer um sistema de monitoramento e desenvolvimento de pesquisas, campanhas de informação e medidas de proteção para insetos e seus habitats. Embora esse não seja um conjunto desafiador de requisitos, menos de 30 membros se inscreveram na coalizão.

No Brasil, com o apoio de quase um milhão e oitocentas mil pessoas, a campanha #chegadeagrotoxicos, promovida pela Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, mobiliza uma série de organizações da sociedade civil que buscam o fim do uso dessas substâncias. Dentro das inúmeras iniciativas, destaca-se a “Salve as abelhas”, organizada pelo Greenpeace, que promove o debate sobre o combate aos agrotóxicos a partir do enfoque sobre os impactos na vida das abelhas. Entre dezembro de 2018 e março de 2019, mais de meio bilhão de abelhas foram encontradas mortas em diversas partes do país, que é um dos líderes na utilização de agrotóxicos no mundo.

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As diferentes organizações da sociedade civil que compõem a Campanha Contra os Agrotóxicos vêm defendendo a aprovação de uma política nacional de redução de agrotóxicos (PNaRA), que está em discussão no parlamento. Esse conjunto de leis e iniciativas serviria de bússola para o governo fazer uma transição do modelo agrícola atual para um que garanta uma alimentação saudável a todos, com proteção da biodiversidade e dos polinizadores.

Há, entretanto, uma movimentação de grupos que demandam uma ampliação ainda maior no uso dos agrotóxicos, a partir do desmonte de políticas regulatórias e de proteção socioambiental. Tal conjunto de medidas e projetos de lei ficou conhecido como “Pacote do Veneno”. A repercussão dos potenciais impactos deste pacote alcançou a esfera das Nações Unidas, que emitiu uma nota alertando para os perigos da proposta.  

O conflito entre a necessidade de proteger os insetos e os interesses da indústria agrícola é evidente. O Relatório Temático sobre Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil, produzido pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (PBBES) em 2019, apontou a necessidade de uma política nacional de polinizadores de forma ampliada, ancorada na conservação da biodiversidade, e conectada a diferentes regulamentos e políticas, como o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e a Comissão Nacional de Biossegurança, possibilitando uma integração de agendas e ações transversais de diversas áreas, como meio ambiente, agricultura e ciência.

Falar da interlocução entre políticas públicas e insetos no Brasil também traz à tona um outro tema de extrema importância. Trata-se das muitas doenças cujos vetores são insetos e que ainda apresentam níveis alarmantes no país, como a Dengue, a Zika e a Chikungunya. Entretanto, culpar apenas o mosquito, como o Aedes aegypti, por exemplo, é uma análise simplista, para não dizer equivocada.

Estudos apontam que a proliferação de alguns mosquitos está relacionada com as mudanças climáticas e, nos trópicos, o aquecimento torna o ambiente mais propício para a propagação desses vetores. Do mesmo modo, os desmatamentos (que também vêm atingindo níveis exorbitantes no país) contribuem para um desequilíbrio ambiental, ao reduzir ou fragmentar habitats desses insetos. Há evidências que apontam uma relação entre aumento das temperaturas e dos desmatamentos e a elevação na transmissão de doenças cujos principais vetores são mosquitos, como a Malária, a Febre Amarela e a Leishmaniose. A redução das áreas de floresta e a urbanização desordenada (características comuns a muitos países da América Latina) desequilibram e expandem a distribuição geográfica desses insetos, que, assim, tornam-se inimigos.

Mas seriam os inseticidas os melhores meios para lidar com essa questão de saúde pública? Na verdade, não. Além dos fatores relacionados à degradação ambiental, a ocorrência dessas doenças vetoriais também está intimamente ligada a fatores sociais. Onde e como vivem as populações mais vulneráveis a essas enfermidades? Em geral, nos lugares onde menos chegam as políticas públicas de saneamento básico, coleta de lixo, infraestrutura urbana.

Assim, com a urgência cada vez maior de se debater e propor soluções que coloquem o país e o mundo no rumo correto da defesa da biodiversidade e da justiça social, fica a questão: estamos passando da hora de aliar ciência e política pela proteção ambiental e pela redução das desigualdades sociais. Seja no contexto da agricultura, seja nas políticas pela promoção da saúde pública, o que devemos combater são as injustiças socioambientais, não os insetos.