A política do Governo Federal para as florestas vem sendo implementada a partir de instrumentos autoritários, em alinhamento a diretrizes de mercado que indicam a ampliação de mecanismos de privatização dos serviços ecossistêmicos no Brasil. Desde as propostas de negociação no âmbito da Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), até a reorganização e fragilização da política ambiental, o atual governo coloca as florestas e suas populações em risco.
A Comissão Nacional para REDD+[1] (CONAREDD+), instância colegiada da Estratégia Nacional de REDD+ (ENREDD+), instituída para coordenar e monitorar o acesso do Brasil a pagamentos por resultados de REDD+, reconhecidos pela UNFCCC e, portanto, sem a geração de créditos de CO2 (offseting)[2], conforme o Marco de Varsóvia para REDD+[3] – foi revogada em abril de 2019 (junto com demais espaços de governança social no âmbito federal) e recriada em novembro de 2019, às vésperas da COP 25 em Madri, na Espanha. A nova CONAREDD+ alterou o entendimento de pagamentos por resultados ambientais inserindo aqueles advindos de múltiplas fontes e escalas; e ampliou sua finalidade incluindo a formulação, regulação e estruturação de mecanismos financeiros e de mercado para fomento e incentivo de REDD+, a emissão de certificado de pagamento de resultados e a alocação de emissões reduzidas a programas e projetos de iniciativa privada de carbono florestal. Além disso, a nova CONAREDD+ promoveu alterações no Fundo Amazônia transformando-o em mecanismo de captação de recursos por resultados de REDD+.
Com a reformulação da CONAREDD+, o Governo Bolsonaro passou a implementar sua política climática, em especial no que se refere à política de proteção a florestas, de maneira a dar alicerce aos mecanismos de mercado como se fossem reais soluções para a proteção ambiental. A alteração da composição, objetivos e forma de funcionamento da CONAREDD+ foi um marco da política ambiental do atual governo. Ao tornar a CONAREDD+ menos participativa, Bolsonaro estruturou essa comissão e outros mecanismos no sentido de acelerar a privatização das florestas.
Na esteira deste processo, em 2020, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) lançou o Programa Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) - Floresta+, visando, principalmente, a fomentar o mercado privado de carbono e estimular ações de combate ao desmatamento e incêndios florestais por meio de incentivos financeiros privados, firmando parcerias com órgãos públicos ou entidades privadas, nacionais e internacionais.
Neste Programa, foi inserido o projeto-piloto para Pagamento por Resultados de REDD+ - Floresta+ Amazônia, executado pelo MMA em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que prevê quatro modalidades de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA): pagamentos diretos a “proprietários e posseiros de imóveis rurais”, para conservar remanescentes de vegetação nativa ($49.400 milhões), ou recuperar Áreas de Preservação Permanente ($12.605 milhões); apoio a projetos de povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais ($7.500 milhões); e apoio a ações e medidas inovadoras para alavancar políticas públicas, tendo como público beneficiário instituições acadêmicas e de pesquisa, ONGs, startups, empreendedores individuais e cooperativas, organizações e associações de extrativistas na Amazônia Legal ($5 milhões).
Este projeto foi apresentado ao Fundo Verde do Clima (GCF na sigla em inglês), em 2018, no âmbito da UNFCCC, como pagamento de resultados de REDD+ alcançados pelo país em 2014 e 2015[4], com um valor total de 96.400 milhões de dólares. No entanto, ele foi tramitado e aprovado pelo GCF em 2019 – durante a revogação e reformulação de instâncias nacionais de governança ambiental e de REDD+ (CONAREDD+, ENREDD+ e Sistema de Salvaguardas) –, sem a devida transparência e participação social e ainda sem a estrita observância do cumprimento do Marco de Varsóvia[5].
Cabe lembrar que, desde o início do governo Bolsonaro, vive-se uma acelerada destruição da institucionalidade socioambiental brasileira com impactos nas políticas e nos programas destinados às mudanças climáticas, ao combate ao desmatamento e queimadas (inclusive o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal - PPCDAm) e ao fortalecimento dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Com efeito, o projeto em curso foi aprovado com base em um arcabouço legal e institucional não mais existente. Portanto, a atual conformação desse programa, e respectivo projeto, viola acordos internacionais de clima sobre pagamentos por resultados de REDD+[6].
Ainda em 2020, com a reinstituição do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) em resposta às pressões internacionais contra o aumento descontrolado do desmatamento e queimadas na Amazônia, Bolsonaro colocou o vice-presidente Hamilton Mourão para chefiar a política regionalizada para combate a desmatamentos e queimadas e de mitigação das mudanças climáticas. Mais uma vez, sem participação da sociedade civil, um conselho estratégico para o desenvolvimento regional passou a representar a militarização da política ambiental do país.
O Decreto Presidencial que transferiu o Conselho Nacional da Amazônia Legal - CNAL do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-Presidência da República tem por escopo “coordenar e acompanhar a implementação das políticas públicas relacionadas à Amazônia Legal”. Estabeleceram-se assim competências amplas e genéricas e desconsiderou-se por completo a participação de representantes de povos indígenas, quilombolas, pescadores, comunidades tradicionais da região ou entidades de representação coletiva.
Os nomes que compõem as comissões temáticas do CNAL foram listados em portarias assinadas pelo Vice-Presidente da República, publicadas no Diário Oficial do mês de abril/2020. Assim, têm assento no conselho 15 coronéis, sendo 12 do Exército e três da Aeronáutica; um general; dois majores-brigadeiros e um brigadeiro, sendo presidente do órgão o general da reserva Hamilton Mourão. A retomada do CNAL se deu em um contexto de pressão sobre o Brasil em relação as metas de proteção ambiental firmadas em âmbito internacional (Metas de Aichi, Acordo de Paris e contribuições nacionalmente determinadas).
Dentro deste conjunto de iniciativas do Governo Federal, em 2021, é criado o programa Adote um Parque, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, à época comandado pelo então Ministro Ricardo Salles. O Programa visava incentivar a “adoção” de Unidades de Conservação, sejam elas de proteção integral ou de uso sustentável, por pessoas físicas ou jurídicas, com foco no desenvolvimento das áreas protegidas. Empresas como Coca-Cola[7], Heineken, MRV e Carrefour se lançaram como as primeiras corporações a assinarem protocolos de intenção sobre Unidades de Conservação do primeiro bloco de Unidades indicadas no programa Adote um Parque.
O termo “adoção” pouco traduz a relação entre empresa e comunidade que, mediada pelo Estado através do ICMBio, reflete-se em alterações no espaço físico dos territórios, no modo de vida e nos instrumentos de gestão das Unidades incluídas no Programa. As condições e permissões criadas a partir da adoção geram relações de dependência ao setor privado e redução da autonomia das comunidades locais, que diante da inércia do Estado dependeriam da empresa adotante para obterem melhorias nas condições de vida na Unidade.
Essas condições de dependência se impõem no momento em que o presidente Bolsonaro anuncia um corte de 42% (em comparação a 2018) no orçamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) de 2021. Observou-se, paralelamente, o aumento de 34,5% nos alertas de desmatamento entre 2019 e 2020, segundo dados do sistema Deter, do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Além do uso direto dos territórios, previsto como contrapartida para a empresa adotante, a gestão das Unidades é ponto-chave para a privatização de florestas, principalmente porque as empresas adotantes interferem no manejo florestal, na composição do conselho consultivo ou deliberativo e em seus projetos sustentáveis. Nada impede que empresas sejam parceiras das Unidades, mas a clivagem problemática feita através do programa Adote um Parque é de que a gestão das Unidades na prática dependerá das empresas.
Ainda com relação às áreas protegidas, o governo criou o Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Tal programa que, a princípio, é voltado para a desestatização de serviços de visitação de Parques Naturais, constitui-se numa política nacional de privatização de unidades de conservação de proteção integral. Até o momento já foram incluídos cerca de 45 parques naturais no programa, muitos dos quais com problemas de sobreposição a terras indígenas, territórios quilombolas e de povos e comunidades tradicionais[8].
Portanto, nos três anos de Governo Bolsonaro foram implementadas políticas de privatização de florestas, estruturando políticas de falsas soluções climáticas que combinam: de um lado, a redução de orçamento da área ambiental e o aumento dos índices de desmatamento, e, de outro, como supostas alternativas, a privatização de Unidades de Conservação e a financeirização das florestas. As articulações entre as propostas de proteção ambiental se dão pela militarização dos cargos de comando e pela falta de participação da sociedade civil.
Acesse o Webdossiê Flexibilização da Legislação Socioambiental Brasileira - 3ª edição na íntegra
[1] Redução das Emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) provenientes do Desmatamento e da Degradação florestal, conservação dos estoques de carbono florestal, manejo sustentável de florestas e aumento dos estoques de carbono florestal.
[2] “Os offsets florestais servem como incentivo para países segurarem a ambição de seus compromissos. O Acordo de Paris é baseado em compromissos nacionais determinados voluntariamente por cada governo, e só os cortes de emissões que vão além desses compromissos poderiam ser comercializados em mercados de offsets. Com offsets, quanto mais baixos fossem os compromissos nacionais, mais sobraria para vender, criando um estímulo para a baixa ambição.” Ver mais em:< https://www.cartadebelem.org.br/sociedade-civil-brasileira-e-internacional-se-mobiliza-frente-aos-offsets-florestais-e-levantam-preocupacoes-com-o-artigo-6/>.
[3] O Marco de Varsóvia para REDD+ (2013) estabelece a arquitetura internacional do mecanismo financeiro de REDD+ da UNFCCC, gerido pelo Fundo Verde do Clima (GCF). O fundo destina recursos a países em desenvolvimento que obtiverem resultados comprovados de REDD+, sem gerar créditos de CO2 (offseting) para os países doadores abaterem de seus compromissos de redução de emissões.
[4] A proposta do Brasil foi a primeira aprovada no âmbito do Programa Piloto de Pagamentos por Resultados de REDD+ do GCF, lançado em outubro de 2017.
[5] Ver mais em: https://www.cartadebelem.org.br/os-projetos-do-brasil-no-fundo-verde-do-clima-continuam-em-tramitacao-como-se-estivessemos-em-um-estado-normal-da-governanca-ambiental-no-pais-e-nos-nao-estamos/
[6] Sobre o assunto ver https://www.inesc.org.br/programa-piloto-para-pagamento-por-resultados-de-redd-beneficiando-quem-preserva-a-floresta-2/
[7] Ver mais em:< https://www.cartadebelem.org.br/coca-cola-atende-ao-chamado-do-governo-bolsonaro-e-adota-unidade-de-conservacao-no-amazonas/>
[8] Ver Nota Técnica da Associação Brasileira de Antropologia sobre o Decreto nº 10.673 de 13 de abril de 2021.