Políticas para a educação superior pública nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro

Qual o projeto do governo Bolsonaro para a educação?

No plano de governo, documento com as propostas de campanha do candidato Jair Bolsonaro, a palavra educação foi citada 20 vezes. A primeira menção já sinalizava o tom em que o tema seria tratado: “Segurança, Saúde e Educação são nossas prioridades. Tolerância ZERO com o crime, com a corrupção e com os privilégios”[1].

Sob o Governo Bolsonaro, gastos do MEC com investimento é o menor desde 2010
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Sob o Governo Bolsonaro, gastos do MEC com investimento é o menor desde 2010

O documento partia de um diagnóstico de que “educação e saúde estão a beira do colapso” e, em seguida, apontava nas linhas de ação: dar um salto de qualidade na educação, com ênfase na infantil, básica e técnica, sem doutrinar. Neste sentido, apresentava como estratégia a inversão da pirâmide, com maior esforço e investimentos a serem feitos na educação básica, em detrimento do ensino superior.

Na referência direta ao ensino superior, o texto apontava que “as universidades precisam gerar avanços técnicos para o Brasil, buscando formas de elevar a produtividade, a riqueza e o bem-estar da população. Devem desenvolver novos produtos, através de parcerias e pesquisas com a iniciativa privada. Fomentar o empreendedorismo para que o jovem saia da faculdade pensando em abrir uma empresa. Enfim, trazer mais ideias que mudaram países como Japão e Coréia do Sul”.

Assim terminava o item do programa referente à educação. Observamos, portanto, que não há uma análise e um diagnóstico mais profundos sobre o contexto educacional do país, incluindo os desafios do ensino superior, tanto no que diz respeito à expansão, quanto à qualidade e equidade. Como afirmou análise realizada pela ANPED:

“Trata-se de um programa caracterizado pela ausência de metas e estratégias, bem como pela exclusão dos temas e questões que compõem a atual pauta educacional brasileira, revelando sua sintonia com as teses da mercantilização, da privatização e do controle social e ideológico por meio da e na educação” (Oliveira & Ferreira, 2018).

Embora, de acordo com seu programa de governo, educação superior não pareça ser uma prioridade no governo Bolsonaro, é possível observar que alguns planos para este nível educacional foram sendo apresentados e tiveram sua execução iniciadas nestes dois anos de governo.

Quais projetos/propostas avançaram e quais não?

Após eleito, Bolsonaro nomeou como seu Ministro da Educação Ricardo Veléz Rodriguéz, filósofo, teólogo e professor-emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). No discurso de posse do ministro, Bolsonaro ressaltou que, “para colocar em prática o projeto que a maioria do povo brasileiro democraticamente escolheu, é preciso combater a ideologização das crianças e a desvirtuação dos direitos humanos, restabelecendo padrões éticos e morais, fazendo as reformas necessárias e desburocratizando o governo (...) Vamos priorizar a educação básica, a educação das nossas crianças e adolescentes, que são o futuro do Brasil”, concluiu[2].

A breve gestão de Vélez Rodríguez foi marcada por polêmicas, ineficiência e conflitos internos no MEC, caracterizados por forte disputa interna entre as alas “olavista”, “técnica” e “militar” do MEC, incluindo inúmeras trocas em cargos de alto escalão (Cruz et al, 2019). Entre outras afirmações polêmicas, Ricardo Vélez Rodriguez, declarou que "educação superior não é para todos" e que "a ideia de que o ensino superior deve ser para todos não existe”[3].

Depois de menos de três meses a frente de um Ministério da Educação paralisado, ele foi substituído por Abraham Weintraub, um economista ultra liberal sem experiência prévia com educação, que esteve a frente do MEC por 14 meses, até junho de 2020, e também teve uma gestão marcada por polêmicas e retrocessos no campo educacional[4]. Do ponto de vista da educação superior, a gestão de Weintraub caracterizou-se por um ataque contínuo às universidades públicas, aos professores e pesquisadores, através da disseminação de notícias falsas, de comentários agressivos e de um constante clime de ameaça de perda de direitos e cortes de recursos[5].

Dando continuidade as declarações controversas dadas por seu antecessor, Weintraub afirmou que: "as universidades que, ao invés de pesquisar como melhorar a performance acadêmica, estão fazendo balbúrdia, terão seus financiamentos reduzidos"[6]. Houve uma avaliação geral por parte de setores progressistas de que Weintraub representava majoritariamente os interesses privados na educação e que levaria adiante uma agenda de redução de recursos para as universidades federais e de restrição de programas de inclusão, visando reestruturar os sistemas de financiamento da educação superior pública, propondo, inclusive, a cobrança de mensalidade nas universidades federais, um assunto controverso (para não dizer inconstitucional) na sociedade brasileira.

Essa concepção sobre ensino superior vai na direção oposta à expansão de políticas para a educação superior desenvolvidas durante os governos de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), incluindo a criação de novas universidades públicas, novos campi em áreas não metropolitanas e bolsas para alunos de baixa renda em instituições de ensino superior privadas.

Em julho de 2020 tomou posse o terceiro ministro da Educação do governo Bolsonaro, Milton Ribeiro, pastor presbiteriano e ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sua gestão, entre outros aspectos, tem sido marcada por uma atitude pífia e de baixa liderança em relação à gestão dos efeitos da pandemia de COVID-19 sobre a educação brasileira.

Destacaremos três aspectos que são mais elucidativos da mecânica e intencionalidade das ações do governo Bolsonaro no campo da educação superior:

  1. O desrespeito à autonomia universitária

Ainda como candidato, Jair Bolsonaro prometia combater o esquerdismo, a ideologia de gênero, o "progressismo" e o chamado marxismo cultural – especialmente na educação. Esta promessa passou a se concretizar no primeiro ano de governo através de diferentes mecanismos voltados para restringir a autonomia das instituições federais de ensino na escolha dos seus dirigentes. O principal deles foi a atitude frequente por parte do Presidente da República de não nomear o candidato mais votado nas listas tríplices encaminhadas pelas instituições federais ao MEC. Esta forma de agir contraria a prática que tem sido adotada pelos presidentes brasileiros desde  1985, com pouquíssimas exceções.

Em 29 nomeações feitas entre janeiro de 2019 e novembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro só escolheu o primeiro colocado da lista tríplice para reitor em onze universidades[7]. Em oito casos, optou pelo candidato menos votado, o terceiro colocado na lista tríplice. Em três casos, optou pelo segundo colocado e em sete outros casos nomeou reitores temporários  que não tinham nem mesmo concorrido nas consultas às comunidades acadêmicas (Quadro 1).

Reitores nomeados de forma arbitrária por Bolsonaro 2019-2020
Reitores nomeados de forma arbitrária por Bolsonaro 2019-2020

Em uma declaração que ilustra a intencionalidade política destas medidas, Bolsonaro afirmou: “Ali virou terra deles, eles é que mandam. Tanto é que as listas tríplices que chegam pra nós muitas vezes não temos como fugir, é do PT, do PCdoB ou do PSOL. Agora o que puder fugir, logicamente pode ter um voto só, mas nós estamos optando por essa pessoa”[8].

A ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) manifestou-se contrária a estas nomeações, enfatizando a ameaça à autonomia universitária, a deslegitimação dos processos de decisão e consulta dentro das universidades e institutos federais e o risco de baixo apoio da comunidade acadêmica a estes gestores não eleitos democraticamente (ANDIFES, 2019b)[9].

  1. A proposta do FUTURE-SE

A proposta mais diretamente endereçada ao ensino superior público nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro foi o lançamento do programa Future-se, em julho de 2019. O programa destina-se a reestruturar o financiamento do Ensino Superior público, ampliando o acesso a recursos privados como forma de financiar as atividades das universidades. Um dos carros chefe do programa é criar estímulos para que as universidades captem recursos próprios, com a abertura para contratação de organizações sociais ou de fundações de apoio para a execução de atividades e a possibilidade de as universidades fecharem parcerias como a iniciativa privada. De acordo com a proposta, a adesão ao programa é voluntária.

O Future-se está estruturado em três eixos centrais, sendo eles 1) Gestão, Governança e Empreendedorismo; 2) Pesquisa e Inovação; 3) Internacionalização. Em relação ao primeiro eixo, destaca-se a ideia é desenvolver ambientes ligados a setores empresariais, como a criação de pólos tecnológicos, incubadoras e start-ups e geração de inovações que supram a demanda da sociedade. Em relação ao segundo eixo, também propõe a ampliação da pesquisa voltada ao setor privado – empresarial, visando atender as demandas do setor empresarial por inovação. No que diz respeito ao eixo da internacionalização, são propostos programas de intercâmbio, ofertas de bolsas em instituições estrangeiras, estímulo para que docentes publiquem no exterior, e ampliar a facilidade de reconhecimento de diplomas estrangeiros e créditos cursados no exterior.

O programa foi submetido a duas consultas públicas ao longo de 2019[10], e enviado ao Congresso Nacional em maio de 2020. Desde seu lançamento, o programa foi alvo de várias críticas por parte de reitores, gestores e integrantes da comunidade acadêmica de forma geral. A principal crítica reside numa intencionalidade, de médio ou longo prazo, em desobrigar a alocação de recursos orçamentários obrigatórios para as universidades, fazendo com que estas instituições tenham que encontrar suas próprias formas de se capitalizar. Também criticou-se o caráter supostamente inovador do mecanismo de financiamento proposto, já que a parceria entre universidades públicas e setor privado para o financiamento de pesquisas é uma prática já adotada em muitas instituições. Como afirmou o reitor da UFABC, em entrevista: “As instituições federais de ensino superior já seguem um conjunto de regras estabelecidas pelos órgãos de controle, com todas as suas contas auditadas e aprovadas pelos tribunais de conta e corregedoria, do mesmo jeito que o programa indica”[11].

A versão encaminhada ao Congresso Nacional trouxe algumas alterações ao projeto, feitas após as consultas públicas, entretanto não mudou a essência da proposta. Em análise realizada sobre o projeto de lei, Leher (2020) aponta que a nova proposta excluiu alguns aspectos que foram alvos de fortes críticas por parte de diferentes setores, porém manteve a estratégia principal de propor uma redução da autonomia universitária e de manter uma visão restrita sobre o papel da universidade pública, aliando sua razão de ser ao atendimento aos interesses no mercado.

Além disso, Leher (2020) afirma que “o envio do referido PL está em confronto aberto com a agenda das políticas para a educação superior e tecnológica e para a grande área de ciência e tecnologia que deveria estar direcionada para o enfrentamento dos problemas advindos da pandemia”. Portanto aponta que não há uma mera coincidência ou qualquer ingenuidade ou desconhecimento por parte dos atores políticos do MEC que propuseram e encaminharam o referido projeto de lei ao Congresso. Ao contrário, afirma: “não se trata de erro de análise, mas de aderência ao estabelecido” (Leher, 2020).

Também Carlotto (2019) corrobora com esta análise ao afirmar que “o Future-se é, sim, uma pauta derrotada, mas é também o espasmo mais recente de uma agenda de longo prazo de mercantilização da educação brasileira. Uma agenda que nunca saiu da pauta e que continuará na pauta. (...) Lutar contra o Future-se é lutar contra um espasmo. Mais importante do que isso, porém, é defendermos o sistema federal de ensino superior inclusivo e de excelência que construímos ao longo de décadas, à custa de tanto trabalho” (Carlotto, 2019).

  1. Cortes de orçamento

A gravidade da situação das universidades públicas em termos orçamentários não teve início com o governo Bolsonaro, mas aprofundou-se ao longo dos últimos dois anos. Desde 2015, com o agravamento da crise econômica e fiscal, já vinham ocorrendo cortes (Figura 1). A situação agravou-se com os efeitos resultantes da EC (Emenda Constitucional) 95, que expressa uma agenda radical de ajuste fiscal neoliberal.

Figura 1

Série Histórica Orçamentária (PLOA para 2021 e LOA para os demais anos) e Orçamento Condicionado

Fonte: ANDIFES, 2020. http://www.andifes.org.br/execucao-orcamentaria/ Acesso em 06/12/2020.

O Ministério da Educação sofreu em 2019 um contingenciamento de R$ 5,8 bilhões de suas despesas discricionárias (gastos não obrigatórios, que inclui a verba de investimentos, pagamento de despesas como água e luz, entre outros). O principal impacto ocorreu nas universidades federais, que tiveram 30% de seu orçamento discricionário contingenciado. Em valores absolutos, as universidades tiveram R$ 2,4 bilhões bloqueados[12] (ANDIFES, 2019; Barone, 2019).

Os cortes ao longo de 2019 levaram ao contingenciamento de recursos de custeio das instituições federais de ensino e também incidindo sobre o corte de bolsas de mestrado e doutorado. A Capes teve 4.798 bolsas de pesquisa cortadas, afetando atividades de pesquisa em andamento, prejudicadas também pela suspensão de edital de pesquisas do CNPq já aprovado em 2018 e que envolvia 2516 bolsas de várias modalidades (Torres, 2019). Em função destes diferentes cortes, principalmente o conteingenciamento do orçamento das universidades federais, milhares de pessoas, incluindo principalmente estudantes e servidores públicos, se mobilizaram nacionalmente participando de protestos nas ruas em todo o país ao longo do primeiro semestre de 2019 (Barone, 2019).

Em setembro de 2019, após uma melhora na arrecadação federal, o Ministério da Educação anunciou o desbloqueio de parte da verba das instituições federais de ensino superior: R$ 1,9 bilhão. Desse montante, 58% foi destinado às universidades e institutos federais. A outra parte foi devolvida às demais áreas contingenciadas. A liberação total dos recursos foi anunciada para todas as áreas dias depois (Barone, 2019).

Despesa executada com a subfunção ensino superior

Observação: Destacamos que a inflação acumulada no período, medida pelo IPCA (IBGE), foi de 36,89%. Portanto, apenas para acompanhar o IPCA, as despesas federais com ensino superior deveriam ser de R$ 35.440.792.608,71 em 2020.

O ano de 2020 também foi marcado por restrições orçamentárias. Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro sancionou o corte de R$19,8 bilhões do orçamento do MEC, que representaram 16% a menos em investimentos federais na Educação. Nas Universidades Federais, a redução do orçamento foi de R$ 7,3 bilhões (14% em relação a 2019), impactando diretamente no funcionamento das IFES[13].

O cenário para 2021 infelizmente não traz boas notícias. A proposta de orçamento para 2021 encaminhada ao Congresso Nacional em agosto de 2020 aponta um corte de 18,2% das universidades federais de todo o país. A ANDIFES, através da manifestação do seu presidente, Prof.  Edward Madureira Brasil, ressaltou que “com esse montante fica patente que nenhuma instituição poderá cumprir suas finalidades de ensino, pesquisa e extensão no próximo ano”[14]. A entidade também manifestou preocupação com a redução de recursos destinados à assistência estudantil (Ver Quadro 2), inclusive levando em conta que várias despesas relacionadas à gestão das consequências da pandemia irão certamente ampliar gastos das universidades federais. Existe a expectativa de que parte destes cortes sejam revertidos, em negociações durante a votação do orçamento no Congresso Nacional, até o final de 2020.

Considerações finais: olhando o futuro

O quadro brevemente apresentado neste texto nos sinaliza uma situação preocupante em relação ao futuro próximo das políticas para a educação superior pública no Brasil. Embora, num primeiro momento, algumas avaliações tenham apontado para uma paralisia do governo federal em relação à educação e ao ensino superior em particular, focada principalmente nos cortes de recursos e na falta de propostas específicas, a partir do segundo ano começaram a se definir ações mais concretas, como a proposta do Future-se e a ampliação da ingerência do MEC nas instituições federais de ensino (Cruz et al, 2019; Ação Educativa/Carta Capital, 2019).

O cenário de 2021 é de aumento significativo nas demandas das universidades, incluindo tanto o atendimento aos estudantes quanto a reestruturação dos serviços prestados pelas instituições, em função da situação gerada após a pandemia. A Andifes ainda chama a atenção para o fato de que, além da drástica redução orçamentária, outras resoluções, pareceres e vetos presidenciais comprometerão os recursos humanos das IFES[15].

Do ponto de vista da educação superior, a maior preocupação no médio prazo refere-se à necessidade de garantir recursos orçamentários suficientes, não apenas para manter o funcionamento das instituições, mas também para adequar suas atividades às exigências dos protocolos sanitários necessários. Além disso, é necessário que, sendo as universidades públicas os principais agentes da pesquisa científica no país, em todas as áreas, os recursos públicos sejam garantidos para o desenvolvimento e ampliação destas pesquisas, incluindo aí insumos e recursos para bolsas acadêmicas.

Ainda no tema dos recursos, é fundamental que sejam garantidos repasses para as políticas de assistência e permanência estudantil no ensino superior, que representam os principais esforços feitos ao longo das duas últimas décadas visando a democratização do ensino superior no país. Este aspecto representa um dos principais avanços ocorridos no ensino superior brasileiro nas últimas décadas, coma expansão de vagas e a diversificação dos públicos beneficiados pelo ingresso no ensino superior.

Pesquisadores envolvidos em estudos sobre os efeitos das mudanças ocorridas na educação superior brasileira entre 2000 e 2015 (Santos & Sampaio 2013; Vargas & Heringer 2017) evidenciaram que o perfil dos estudantes, incluindo aqueles nas instituições e carreiras mais seletivas, tem se diversificado, e que o sistema se tornou menos elitista do que sempre foi no Brasil (Ristoff 2014; Paula 2017; Salata 2018). Por exemplo, a proporção de alunos negros que ingressaram nas universidades federais aumentou 51% entre 2003 e 2017. Também foi evidenciado que 70% dos estudantes nas universidades federais pertencem a famílias com renda máxima de 1,5 salário mínimo per capita (ANDIFES, 2019a).

Entretanto, sabemos que Bolsonaro se elegeu afirmando: "Eu sou contra o sistema de cotas como é hoje, que é prejudicial a pessoa negra. Se você coloca cotas para negros, quem são os negros que têm mais chance de passar nos exames de admissão? Os negros que vêm de um contexto rico. A minha cota é social, eu defendo a cota social, não a racial"[16]. Ou ainda: "Isso não pode continuar a existir, é tudo vitimização. Pobre negro, pobre mulher, pobre gay, pobre nordestino. Tudo é vitimização no Brasil. Nós vamos acabar com isso”[17].

Há, portanto, uma preocupação por parte de pesquisadores e ativistas antirracistas em relação aos possíveis ataques à chamada lei de cotas (Lei 12711/2012), que tornou obrigatória a reserve de 50% das vagas nas universidades federais para estudantes de ensino médio da rede pública, incluindo a reserva de uma porcentagem de vagas para negros, pardos e indígenas, de acordo com a proporção destes grupos na população de cada estado. Cabe aqui lembrar que o texto da lei prevê que a mesma deve passar por uma avaliação de seus resultados após 10 anos de vigência, portanto, em 2022.

Os movimentos negros, os movimentos indígenas e ativistas antirracistas estão observando de perto esses debates e estão organizados para responder a essas ameaças. Estudantes que são em sua maioria a primeira geração nas suas famílias a ingressar no ensino superior, muitos deles estudando em universidades e campi que foram criados durante os últimos quinze anos, certamente se mobilizarão contra as iminentes medidas para restringir esta expansão e a democratização inicial da educação superior no Brasil (Heringer, 2020).

O desafio agora é ver se aqueles que foram beneficiados pela expansão da educação superior pública e políticas de ação afirmativa durante as últimas duas décadas irão se mobilizar para lutar por isso. Em última análise, estamos falando sobre um sentimento de pertencimento, sobre um entendimento da educação superior como um bem público que não apenas beneficia os estudantes, mas toda a sociedade. Esta perspectiva é bem apresentada na pesquisa realizada por William Bowen e Derek Bok (2000) nos EUA, revelando que o maior acesso de estudantes de grupos discriminados ao ensino superior traz benefícios não apenas para estes estudantes e suas famílias, mas também para a sociedade como um todo, através de sua participação no mercado de trabalho, e da participação em atividades comunitárias e filantrópicas, por exemplo. Esta parece ser uma pespectiva bem diferente daquela dos que estão atualmente no poder.

Referências:

Ação Educativa/Carta Capital, 2019. Educação em disputa: 100 dias de Bolsonaro. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacaoreportagens/educacao-em-disputa-100-dias-de-bolsonaro/

Acesso em 06/12/2020.

ANDIFES. 2019a. “V Pesquisa nacional de perfil socioeconômico e cultural dos(as) graduandos(as) das IFES: 2018.” Brasília: ANDIFES.

ANDIFES, 2019b. Nota da Andifes sobre a nomeação de reitores nas universidades federais. Disponível em: http://www.andifes.org.br/nota-da-andifes-sobre-nomeacao-de-reitores-nas-universidades-federais/  acesso em 02/12/2020.

Barone, Juliana. Como ficou o plano de Bolsonaro para afastar a influência da esquerda na educação. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/o-que-bolsonaro-fez-na-educacao-2019/

Acesso em 01/12/2020.

Bowen, William G., and Derek Bok. 2000. The Shape of the River: Long-Term Consequences of Considering Race in College and University Admissions. Princeton, N.J.: Princeton University Press.

Carlotto, M. C. Future-se: de pauta derrotada à agenda de longo prazo. In: Ximenes, Salomão; Cássio, Fernando (organizadores), 2019. Future-se? Impasses e perigos à educação superior pública brasileira. Santo André, SP: Fórum Permanente de Políticas Educacionais da UFABC: Universidade Federal do ABC, p. 131-136.

Cruz, Priscila F. da; Borges, João M.; Batista Filho, Olavo N. 2019. Educação Básica sob Bolsonaro: Análise da Conjuntura e um Olhar para o Futuro. São Paulo: Todos pela Educação. Disponível em: http://interessenacional.com.br/2019/10/14/educacao-basica-sob-bolsonaro-analise-da-conjuntura-e-um-olhar-para-o-futuro/ Acesso em 01/12/2020.

Heringer, Rosana, 2020. The future of affirmative action policies in Brazil. Cultural Anthropology (print ISSN 0886-7356; online ISSN 1548-1360). Society for Cultural Anthropology/ American Anthropological Association. Disponível em: https://culanth.org/fieldsights/the-future-of-affirmative-action-policies-in-brazil?x-craft-preview=rLbrXDZFkO&token=zvlJXMszrPM-y3Clv828jRQBQi-mN-dc Acesso em 30/11/2020.

Leher, Roberto, 2020. Esboço de análise sobre o Projeto de Lei do Future-se. São Paulo: Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em:

https://diplomatique.org.br/projeto-de-lei-do-future-se/  Acesso em 04-12-2020.

Oliveira, João Ferreira de, & Ferreira, Neusa Sousa Rêgo, 2018. Análise das propostas para Educação do programa de governo do candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL). Brasília: ANPED. Disponível em: https://anped.org.br/news/jair-bolsonaro-psl-analise-de-programa-de-educacao Acesso em 01/12/2020.

Paula, Maria de Fátima Costa de. 2017. Políticas de democratização da educação superior brasileira: limites e desafios para a próxima década. Avaliação (Campinas) 22, no. 2: 301–15.

Ristoff, Dilvo. 2014. “O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação.” Avaliação (Campinas) 19, no. 3: 723–47.

Salata, André. 2018. “Ensino Superior no Brasil das últimas décadas: Redução nas desigualdades de acesso?” Tempo Social 30, no. 2: 219–53.

Santos, Georgina G.; Sampaio, Sônia M. R. (orgs.), 2013. Universidade, responsabilidade social e juventude. Salvador: EDUFBA.

Torres, Michelangelo, 2019. Um balanço do primeiro ano da política educacional do governo Bolsonaro. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2019/12/21/um-balanco-do-primeiro-ano-da-politica-educacional-do-governo-bolsonaro/

Acesso em 01/12/2020.

Vargas, Hustana, and Rosana Heringer. 2017. “Políticas de permanência no ensino superior público em perspectiva comparada: Argentina, Brasil e Chile.” Archivos Analíticos de Políticas Educativas 25, no. 72.

 

[4] “Em 18 de junho, Abraham Weintraub anunciou sua saída do Ministério da Educação (MEC). Ele foi, pelo menos até o momento, o pior ministro da Educação que o Brasil já teve. Sua demissão, tardia, foi motivada por inúmeras razões incompatíveis com uma autoridade pública, mas não pelos motivos que terão as mais graves consequências para o País: seu absoluto despreparo e falta de compromisso com a busca efetiva por melhores resultados educacionais, como o Todos Pela Educação tem apontado há meses.”

Fonte: https://todospelaeducacao.org.br/noticias/weintraub-sai-o-pior-ministro-da-educacao-que-o-brasil-ja-teve/   Acesso em 01/12/2020.

[5] Segundo pesquisa Datafolha, divulgada em 9 de dezembro de 2019, o Ministro da Educação  Abraham Weintraub era o ministro mais mal avaliado do governo. Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2019/12/09/201905025f88dc7911d74b36b6fe0238d8c486a2amb2019.pdf Acesso em 07/12/2020.

[7] Vale lembrar que, em dezembro de 2019, Bolsonaro assinou a Medida Provisória (MP) 914 destinada a  mudar a maneira como são eleitos os reitores das universidades e institutos federais, tirando poderes dos Conselhos Universitários no processo de escolha dos dirigentes das instituições federais de ensino superior. Entretanto esta MP perdeu a validade em junho de 2020, pois não foi ratificada pelo Congresso Nacional.

[9] Em dezembro de 2020 estava em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6565, protocolada pelo Partido Verde (PV), visando garantir que o governo respeite as normais legais ao nomear reitores e vice-reitores de universidades federais. O único voto registrado até este momento é o do relator Edson Fachin, que se posicionou pela obrigatoriedade do respeito à lista tríplice – conforme disposto na Constituição Federal de 1988. Também foi ajuizada no Supremo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 759), sobre o mesmo tema. Nesse caso, o Conselho Federal da OAB pede que sejam anuladas todas as nomeações que não tenham respeitado o primeiro nome lista, em respeito aos princípios constitucionais da gestão democrática, do republicanismo, do pluralismo político e da autonomia universitária. Em 03/12/2020 foi lançada uma carta aberta assinada conjuntamente por 16 reitores escolhidos democraticamente e não nomeados, defendendo o respeito aos resultados das consultas realizadas nestas instituições. Fonte: Brasil de Fato, 07/12/2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/07/instituicoes-reagem-a-nomeacao-arbitraria-de-19-reitores-e-marcam-ato-para-esta-terca Acesso em 07/12/2020.

[10] As consultas foram feitas abrindo um email e um site para colaborações e sugestões no e-mail futureseconsulta@mec.gov.br ou pela plataforma digital do Future-se (http://www.participa.br/profile/future-se/ ).

[12] “À época do anúncio do contingenciamento, o ministro Abraham Weintraub afirmou que a medida havia sido adotada universidades por questões ideológicas, já que as instituições estariam cometendo “balbúrdia”. O tom gerou repercussão amplamente negativa e, mais tarde, ele declarou que o contingenciamento, na verdade, se deu pela falta de recursos da União”. Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/o-que-bolsonaro-fez-na-educacao-2019/

Acesso em 01/12/2020.

[17] Ibidem.