Pesquisas indicam aumento na liberação de agrotóxicos no Brasil. Esta é a maior quantidade de toxinas liberadas para serem despejadas sobre nossas comidas nos últimos 14 anos. Além disso, outros fatores, como o preparo e o processamento de cada alimento, são indicados quando saem as estatísticas. A insegurança alimentar volta a ser realidade para cerca de 10 milhões de brasileiros. Entrevistamos Mónica Guerra, diretora do Comida do Amanhã para falar desses desafios. Mónica também explica a importância do Guia Alimentar, um documento oficial que dá recomendações para uma alimentação adequada e saudável para a população brasileira. A entrevista é apresentada em duas partes. Acesse a segunda parte aqui.
Fundação Heinrich Böll: O Ministério de Agricultura fez uma crítica ao Guia Alimentar e pediu a revisão da classificação dos ultraprocessados por ser “confusa e incoerente”. O órgão ainda citou que a classificação caracteriza em “evidente ataque sem justificativa à industrialização”. O que você achou desta colocação do Ministério?
Mónica Guerra: A nota técnica (nº 42/2020), publicada pelo MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento] na semana passada [16 de setembro], se centra em críticas à classificação nova feita com base no nível de processamento dos alimentos chamando-a de confusa, incoerente, arbitrária e não adequada para a promoção da alimentação saudável e adequada para a população brasileira. As críticas são bem orientadas e tocam precisamente no ponto que é mais sensível à indústria - a classificação por grau de processamento.
Entenda-se aqui que em nenhum momento o Guia Alimentar de 2014 se opõe ao processamento de alimentos, considerando inclusive que o processamento é importante para aumentar o tempo de conservação dos alimentos e ajudar a diversificar a dieta - o que o Guia se opõe é ao consumo de produtos alimentícios ultraprocessados, resultado de compostos e fórmulas industriais, que simulam ser um alimento mas que são na verdade composições que não nutrem nossos corpos e prejudicam nossa saúde - produtos que nosso organismo nem reconhece como sendo comida e por isso mesmo, adoece.
A indústria de produtos alimentícios tem assistido a um crescimento exponencial de seu mercado e suas vendas e tem cada vez mais, dentro dos seus quadros, equipes técnicas especializadas em avaliar e estudar todo o marco regulatório existente relativo à alimentação, que pressiona e busca negociações com o poder público para que seus interesses possam ser considerados e priorizados, segundo a própria indústria, para que exista harmonia entre o interesse privado e o interesse do consumidor. Percebendo o interesse e atenção crescentes em alimentação mais saudável e na garantia de bem-estar, a indústria de alimentos cada vez mais vem se aproximando da indústria farmacêutica, construindo aquilo que se chama de nutracêutica, onde alimentos e fórmulas são manipulados criando um limbo entre o que é alimento e o que é preparado farmacêutico - a estimativa é de que, já em 2017, essa indústria movimentava aproximadamente USD 180 bi.
Essa convergência é poderosíssima e pode significar um aumento na confusão geral e no entendimento do que é afinal, comida boa para todos, como afirmado na publicação Brasil Ingredient Trends, 2020: “pode haver uma complementação de atividades, na qual a indústria farmacêutica pode trazer, por exemplo, sua robusta experiência com os critérios regulatórios para apelos à saúde e a indústria de alimentos pode contribuir com sua vasta experiência em sistemas de embalagem, marketing e distribuição”.
O guia nos faz ver com toda a transparência que empresa nenhuma é produtora de alimentos, mas sempre e apenas processadora de alimentos. Alimento produzido pela indústria não é comida de verdade - suco de caixinha não é fruta. Essa é a maior e mais impactante contribuição do Guia alimentar de 2014 e ele é reconhecido globalmente precisamente por trazer essa clareza sobre a importância do processamento no entendimento do que é, ou não, alimentação saudável e adequada.
Um guia alimentar que informa sobre as melhores escolhas a serem tomadas é peça fundamental para assegurar que nessa busca de harmonia, a indústria não passe a ser ela mesma reguladora e que a segurança alimentar e o interesse e direito cidadão à informação e alimentação adequada e saudável sejam descaracterizados por interesses econômicos. E é aí que reside toda a polêmica e controvérsia - a atualização do Guia argumenta que é exagerada a classificação que escancara os perigos dos alimentos ultraprocessados. A revisão, como justificada na nota técnica apresentada pelo MAPA (lembremos que o Guia é formulado pelo Ministério da Saúde) acolhe assim as demandas da indústria de alimentos que advoga por marcos regulatórios que flexibilizam e promovam os seus produtos. A crítica colocada ao Guia parece beber da mesma fonte que bebe a resistência à revisão da rotulagem nos alimentos, que bebe da mesma fonte que permite isenção de taxas e impostos na indústria de refrigerantes e bebidas açucaradas.
A nota pode ser assim resultado da pressão do setor industrial para que diretrizes e políticas públicas respondam aos interesses econômicos da indústria alimentícia, junto com um trabalho de resgate de uma narrativa junto à população acerca da qualidade de seus produtos, que vem sendo cada vez mais questionados, e assistindo uma redução no consumo em diversos países. As alterações propostas descaracterizariam o objetivo do Guia, que é orientado para os interesses das pessoas e não do setor privado, da saúde da população e não do enriquecimento e mercado da indústria alimentar. Por ser cientificamente injustificada, e sem bases concretas de argumento, a colocação foi rapidamente rebatida por parte da NUPENS [Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública da Universidade de São Paulo] em uma nota que circula nas redes e no site do núcleo, e a própria ministra da Agricultura, Tereza Cristina, devolveu a nota técnica e solicitou revisão à Secretaria de Política Agrícola (que elaborou a nota) justificando que os argumentos não são consistentes e ainda apontando que temas e políticas com foco na nutrição da população são da responsabilidade do Ministério da Saúde.
No entanto, por ser uma classificação tão consolidada, com tanta maturidade e aprofundamento, e o Guia ser tão reconhecido e considerado, resultado do processo participativo que o construiu, vale reconhecer que o episódio e seus desdobramentos nos mostram a potência de engajamento e de legitimação de diretrizes, políticas e projetos públicos quando são cientificamente bem embasados e submetidos à participação e controle social. O Guia se mostra agora mais brasileiro e motivo de orgulho do que nunca.
Fundação Heinrich Böll: Nos últimos dias, o IBGE apresentou dados que mostram um novo aumento no número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, chegando a 10,3 milhões de pessoas. Que efeitos a revisão do Guia Alimentar pode trazer para a segurança alimentar da população? E quais medidas o governo Brasileiro deve fazer para retirar o Brasil do mapa da Fome?
Mónica Guerra: Os dados da POF [Pesquisa de Orçamentos Familiares] de 2017/2018 são efetivamente assustadores e preocupantes. Eles apontam que mais de 36% da população brasileira estava passando por algum grau de insegurança alimentar e que aproximadamente 5% da população estava efetivamente passando fome, o que representa mais de 10 milhões de pessoas.
Existe uma relação comprovada e testada nos maiores centros de saúde e nutrição do mundo, entre o consumo de ultraprocessados e uma série de doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, etc) e principalmente, com o aumento da gordura corporal e taxas de sobrepeso e obesidade. Sabemos também que fome e obesidade andam de mãos dadas e são duas consequências da má nutrição. Assim, por mais controverso que pareça, parte das pessoas que apontam insegurança alimentar na pesquisa do IBGE podem sim, estar dentro de um quadro de obesidade e/ou sobrepeso, até porque 55,7% da população brasileira tem excesso de peso, de acordo com o Ministério da Saúde.
A desnutrição está diretamente relacionada com a vulnerabilidade econômica e social, que fazmuitas vezes as famílias se verem obrigadas a trocar alimentos saudáveis por compostos alimentares mais baratos, não nutritivos. Muitas vezes também, por falta de informação, as pessoas são conduzidas a fazerem más escolhas alimentares, que as conduzem para estados de insegurança alimentar. O Guia alimentar apresenta, não só orientações sobre a escolha de alimentos mais nutritivos, mas também combinações possíveis e desejáveis entre alimentos para garantir uma dieta balanceada e levando em consideração os alimentos mais populares e acessíveis no país - o arroz, feijão, hortaliças mais comuns, frutas e verduras. Ao modificar o Guia são abertos precedentes para uma má orientação à população nas suas decisões individuais e coletivas sobre quais as melhores escolhas alimentares, ao mesmo tempo que pode ser primeiro passo de outras alterações em diretrizes e programas, por exemplo, relacionados aos alimentos e escolhas feitos na alimentação escolar.
O próprio Guia Alimentar cita, no seu 5º capítulo, alguns possíveis impedimentos para que as diretrizes e recomendações que aponta sejam seguidas, entre elas a falta de informação da população, dificuldade de acesso a alimentos saudáveis por falta de oferta ou alto custo ou ainda pela grande força da publicidade de alimentos não saudáveis. A alteração do Guia trará mais desinformação e aumentará esses riscos, principalmente num momento em que, no meio de uma gravíssima crise econômica e com um número crescente de pessoas em situação de insegurança nutricional, o produto alimentar mais barato e de fácil acesso pode ser o ultraprocessado. Para retirar o Brasil do Mapa da Fome existe uma série de políticas que precisam ser priorizadas - na verdade, o Brasil é um país com experiência de sucesso, que aprendeu no passado sobre o que fazer para sair do Mapa da Fome, como aconteceu em 2014, após três anos consecutivos com menos de 5% da população em situação de insegurança alimentar grave. Na altura, o conjunto de medidas e programas criados no contexto da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, somado com o Programa Fome Zero, foram fundamentais para que a população aumentasse o seu acesso ao alimento.
Sabemos que medidas que podem ser tomadas pelo governo para promover segurança alimentar e nutricional para todos são diversas, variam em escala e abordagem, devem ser coordenadas nacionalmente, mas com foco em implementação e monitoramento local, precisam ser desenhadas junto com a sociedade civil, através de estruturas como os Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional aos níveis municipais, estaduais (ainda em funcionamento) e nacional - que foi extinto no começo de 2019.
[As medidas] Precisam garantir uma renda básica para todos os cidadãos poderem ter acesso ao seu alimento, precisam olhar o sistema alimentar de forma holística e integrada, precisam olhar a segurança alimentar desde o campo até ao prato, entendendo que para que comida de verdade seja acessível, produzi-la precisa também ser viável: fortalecer a produção de alimentos por parte da agricultura familiar com apoio aos pequenos produtores para que garantam sua subsistência, precisa garantir assistência técnica no campo e fomentar mais a produção de comida do que a de commodities - o que aliás faz com que possamos entrar numa contradição que coloca o Brasil como um dos maiores exportadores de alimentos, mas com uma parte significativa da sua população passando fome.
Ao mesmo tempo [as medidas] precisam fortalecer e garantir recurso para programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) que é uma garantia de venda para o agricultor e assegura a alimentação dos mais vulneráveis com alimentos saudáveis. Fortalecer ainda programas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, principalmente em momentos como este que vivemos, assegurando que todas as crianças têm acesso a alimentos nutritivos, com repasse de merendas para as famílias garantindo que nenhuma criança fica desassistida de sua refeição.
Precisam promover e regulamentar que ao nível local, sejam desenhados e implementados planos de segurança alimentar e nutricional, seguindo diretrizes de boas práticas, que olhem tanto a produção local, encurtamento de cadeia, incentivo ao processamento de alimentos e criação de empregos na região, promoção de feiras livres e de produtores locais nos diversos territórios, principalmente os mais vulneráveis, incentivar a agricultura urbana, introduzindo a segurança alimentar e nutricional dentro do desenvolvimento urbano, entre várias outras medidas - educação alimentar, bancos de alimentos, centrais de abastecimento, sistemas de distribuição e logística eficazes, normas de vigilância sanitária inteligentes, entre outras.
O governo tem um papel também muito importante na garantia da segurança alimentar e nutricional através das compras públicas, podendo orientar a compra direto dos pequenos produtores e cuidando do equilíbrio alimentar e nutricional em equipamentos públicos, principalmente hospitais, escolas, etc.
São diversas as formas, diversas as combinações, mas a abordagem precisa sempre ser intersetorial, porque segurança alimentar é absolutamente transversal, precisa ser multidisciplinar porque toca em diversas atividades e acima de tudo, precisa ser participativo, feito com e para a população, porque afinal, o direito à alimentação adequada e saudável é assunto de Estado, garantido constitucionalmente, e por isso mesmo, prioritário na definição de políticas públicas.
O ‘Comida do Amanhã’ é um think tank que atua na promoção de alimentação saudável para todos, apoiando uma transição para sistemas alimentares mais justos, biodiversos, fundados nos pilares da sustentabilidade e acessíveis. Com essa missão, o projeto age em duas frentes principais - trazendo informação relevante e buscando comunicá-la de forma simples para que todos os cidadãos possam estar empoderados de conhecimento para fazerem melhores escolhas alimentares. O ‘Comida do Amanhã’ busca melhorar, debater e advogar por políticas públicas centradas no direito à alimentação saudável e sustentável, para que mais pessoas possam tomar melhores decisões - escolher uma alimentação mais saudável e sustentável e ter acesso a esse alimento.
Baixe aqui o “Isto não é (apenas) um Livro de Receitas - é um jeito de mudar o mundo”, publicado pelo Comida do Amanhã em parceria com a Fundação Heinrich Böll e Unirio.
*A entrevista foi realizada por e-mail.