Feminismo em resistência: crítica ao capitalismo neoliberal
Em julho de 2016, a sede da SOF encheu, com mulheres de diferentes gerações, para assistir a um filme sobre a história da segunda onda do movimento feminista nos Estados Unidos, seguido de uma roda de conversa sobre o feminismo a partir dos anos 1970 no Brasil. Com o privilégio de ouvir essa história em primeira pessoa, do singular e do plural, escutamos e refletimos atentas aos desafios das lutas das mulheres enfrentando a ditadura militar, aos relatos de reuniões clandestinas para discutir a luta por creche, além de muitos outros relatos de processos que marcaram a organização popular do feminismo, particularmente em São Paulo. Naquela ocasião, uma companheira de longa data refletiu, à luz do cenário político pós-golpe de 2016, que “para as mulheres, não tem piso”. Nada do que conquistamos está garantido. Ela chamava atenção para o alcance do retrocesso que, naquele momento, se anunciava.
O exercício de entender os desafios do presente recuperando as análises, estratégias e acúmulos políticos que nos trouxeram até aqui é parte de uma cultura política que reconhece os aprendizados, aprende com os erros e atua no presente construindo um horizonte de transformação. Em tempos de desinformação e tentativas de reescrever a história, reconstruir nossas memórias e difundi-las é parte da resistência.Como uma organização feminista em movimento, temos procurado compreender o que define esse momento de ofensiva violenta contra o qual resistimos. As bases da acumulação capitalista seguem se expandindo a todo vapor: a despossessão, o avanço sobre nossos corpos e trabalhos, as políticas de guerras em suas variadas expressões, cotidianas, militares, repressivas, híbridas – sempre racistas, sempre alterando drasticamente a vida coletiva.
No Brasil, os retrocessos político-institucionais são acelerados, assim como seus efeitos imediatos na precarização da vida. Nesse momento, no Brasil e em outras partes do mundo, há uma ascensão de forças de extrema-direita que dão os contornos de um capitalismo ainda mais autoritário e antidemocrático. Encontrar os caminhos para manter e ampliar a organização das mulheres em movimento, criar e reforçar alternativas para resolver as questões colocadas no dia a dia, sustentar a vida... todos esses são desafios permanentes, frente aos quais não há receitas prontas.
Os textos reunidos neste Caderno Sempreviva dialogam com esses desafios e com um processo permanente de reflexão coletiva, iluminando questões que nos parecem fundamentais para seguir em marcha. Pode parecer paradoxal nossa afirmação, no título desta publicação, de que o feminismo está em resistência neste momento de reconhecida capilarização na sociedade. Sem dúvida, o feminismo tem tido mais alcance e legitimidade, mais capacidade de convocatória e hoje influencia agendas, políticas e estratégias de marketing. Muitas das questões historicamente levantadas pelo movimento feminista, como o direito de viver uma vida livre de violência, a crítica à imposição da maternidade, a denúncia do assédio nos espaços públicos e no ambiente de trabalho, são hoje reconhecidas por mulheres de diferentes gerações. Mas, em nossa perspectiva, o feminismo não deve ser visto de forma isolada das lutas populares que resistem à ofensiva capitalista autoritária. Ao contrário, vemos o feminismo como parte das lutas populares, que em todo o continente têm as mulheres à frente. As mulheres indígenas estão à frente da defesa dos territórios e da natureza contra o avanço do agronegócio e das empresas transnacionais, que se encontram ainda mais legitimadas por governos autoritários; as mulheres negras conjugam luto e luta no enfrentamento permanente à violência racista da militarização das periferias; ao enfrentar a precarização da vida e a privatização dos serviços públicos de saúde e educação, as mulheres constroem comunidade e alternativas para garantir a sobrevivência. Diante de todos esses exemplos, é preciso recusar concepções e práticas que apartam o feminismo do anticapitalismo, como se fossem lutas distintas. A luta das mulheres vem mostrando que o feminismo é um elemento transversal; e que hoje, sem dúvida nenhuma, tem tido condições de abrir e indicar caminhos para fortalecer as resistências populares, e transformá-las em enfrentamento e superação. A partir de uma perspectiva anticapitalista, essa avaliação coloca muitas questões e desafios para o feminismo e a esquerda em geral.
Detalhes da publicação
Índice
Apresentação
Desafios feministas frente à ofensiva neoliberal
Nalu Faria
Os efeitos da agenda neoliberal no movimento de mulheres
Os anos 2000 e a retomada de uma agenda crítica:a construção da Marcha Mundial das Mulheres
O momento atual:ampliação a outro patamar e suas consequências
Um feminismo em disputa: entre cooptações e interdições
Um feminismo posicionado desde a luta das mulheres trabalhadoras
Construir o feminismo anticapitalista para derrotar o neoliberalismo
Neoliberalismo, conservadorismo e a liberdade das mulheres: notas sobre a questão da prostituição
Clarisse Goulart Paradis
Uma perspectiva feminista e popular para entender o atual momento nos Estados Unidos
Cindy Wiesner
Táticas e estratégias necessárias para o enfrentamento
O desafio de passar da mobilização para a organização
Poemas
Helena Zelic
Patrícia Arce
Política de Aniquilação