A inclusão de uma perspectiva de gênero no Acordo de Paz da Colômbia: passado, presente e futuro.
Historicamente, a ausência de mulheres e a presença de estereótipos de gênero prejudiciais nas negociações de paz levaram à criação de programas de reintegração que ignoram as necessidades, capacidades e realidades das mulheres (ver: Mackenzie, 2012; Coulter, 2006). A exclusão das mulheres dos processos de paz faz com que os direitos das mulheres, o papel das mulheres na guerra e na paz e a violência sexualizada sejam subestimados e muitas vezes negligenciados igualmente por muitos governos e grupos armados. Este artigo foca no papel das mulheres nas negociações que levaram ao acordo de paz da Colômbia, reconhecido internacionalmente como o acordo de paz mais inclusivo da história.
Ele destaca a importância de aplicar uma perspectiva de gênero nas negociações de paz e reitera a necessidade de trazer todas as vozes à mesa. Além disso, ao destacar o papel da Suécia e da Noruega em facilitar a inclusão de uma perspectiva de gênero no processo de paz da Colômbia, ele chama a atenção à importância do apoio internacional na forma da política externa de outros países para garantir que as vozes das mulheres sejam ouvidas e priorizadas nas negociações e na implementação de acordos de paz.
Criação de um subcomitê de gênero
Quando as negociações para o acordo de paz colombiano começaram em 2016 apenas uma mulher, Victoria Sandino, uma ex-combatente do exército das Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) e atual congressista, estava sentada à mesa. “Naquela época havia doze mulheres em uma delegação de trinta membros da guerrilha”. Sandino descreve como ela se envolveu no processo e abriu as portas para mais mulheres: “Tenho experiência em comunicação social e jornalismo, por isso pediram meus conselhos sobre estratégias de comunicação. Eu exigi que a secretaria das FARC tornasse as mulheres Farian mais visíveis no processo[1]. Eles me deram uma posição na mesa de negociação, que me possibilitou criar uma janela para que as mulheres pudessem ter mais visibilidade ”. Ela acrescenta: “outro fator essencial foi que o movimento de mulheres colombianas também estava exigindo a participação das mulheres nos diálogos em Havana".
Uma agente feminista que defendeu vocalmente a participação substantiva das mulheres no processo de paz foi Sisma Mujer, uma organização feminista colombiana reconhecida por uma contribuição significativa para que a inclusão fosse um critério para o acordo de paz. Claudía Mejía, diretora da Sisma, explica como a sociedade civil influenciou o processo: "o movimento das mulheres colombianas está unido no objetivo da paz [e] foi um dos mais preparados para a chegada da paz". Nossa maior demanda era que a paz tinha que ser alcançada através de negociações ”.
Mejía descreve ainda como, em muitos aspectos, o movimento feminista colombiano foi adiado durante os anos de conflito armado, “para focar na aplicabilidade do estado das políticas públicas e decisões em favor das mulheres vítimas do conflito armado. Então, quando o processo de negociação começou, estávamos prontas e preparadas com a prática histórica, um arcabouço teórico e o apoio da ação coletiva”. Segundo Mejíá, a comunidade internacional também teve um papel importante: “Há outro elemento que precisa ser considerado, que é a comunidade internacional - os diálogos de paz vieram em um momento em que a comunidade internacional elevou o padrão de igualdade de gênero”.
Um dos padrões e ferramentas mencionados por Mejía que liga a igualdade de gênero ao conflito internacional é a Resolução Marco (S/RES/1325) do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) sobre Mulheres, Paz e Segurança, adotada em 2000. Esta resolução foi uma ferramenta essencial para o movimento de mulheres na Colômbia. Ela promove ações em quatro áreas específicas: no aumento da participação das mulheres nos processos de paz e na tomada de decisões, no treinamento para a manutenção da paz de uma perspectiva de gênero, na proteção das mulheres em conflitos armados e situações pós-conflito, e na introdução transversal de gênero nos sistemas de informação e implementação de programas das Nações Unidas. Depois de mais de quinze anos, não há dúvidas de que a Resolução 1325 ajudou a melhorar a participação das mulheres como agentes ativos na promoção da paz e segurança, inclusive na Colômbia.
Armadas com a Resolução 1325, Sandino, Mejíá e outras começaram a pressionar o governo e as FARC para ampliar a inclusão das mulheres na conversa. O primeiro sucesso foi quando mais duas mulheres, Nigéria Rentería e María Paulina Riveros, foram convocadas para se juntarem a Sandino como negociadoras. Logo depois disso o Subcomitê sobre Gênero foi estabelecido. Descrevendo o objetivo e propósito do Subcomitê, María Paulina Riveros, delegada do Governo, declarou na época que: "O trabalho do Subcomitê partirá da complexidade de uma abordagem de gênero e superará os modelos tradicionais ou culturais baseados em valores. Somente mulheres, com experiências diversas, todas elas, partindo de suas condições particulares e sobrepostas, serão a origem e o fim de nossa tarefa".
Opositores do processo de paz mobilizam grupos religiosos para votar contra o acordo.
No final, seus esforços foram recompensados. Na construção do acordo de paz, o governo colombiano reconheceu a importância de resolver as assimetrias e desigualdades de gênero ao reconhecer e garantir os direitos das mulheres nas zonas rurais, melhorar a participação política das mulheres e abordar os direitos das vítimas no final do conflito armado. Ele também reconheceu a necessidade de uma linguagem inclusiva e não discriminatória no Acordo. No entanto, o resultado da votação pública em 2 de outubro de 2016, que rejeitou o acordo de paz entre o governo e as FARC, apresentou um obstáculo decisivo, que afetou diretamente a participação das mulheres e a incorporação da perspectiva de gênero no processo de paz e nas discussões públicas mais amplas.
Vários setores rejeitaram o acordo de paz argumentando que essa abordagem era uma "ideologia" que desestabilizava os valores familiares, tentava causar uma transgressão dos papéis tradicionais de gênero e promovia a homossexualidade. “O peso do gênero nos argumentos que levaram as pessoas a votar 'não' no plebiscito surpreendeu a todos, inclusive ao governo, especialmente aqueles que emergiram de setores religiosos mais amplos”, afirma Claudia Méjía. "Isso demonstrou que não estávamos conversando com um setor substantivo da sociedade. É por isso que sempre promovo a necessidade de "diálogos improváveis": ou falamos com todos os setores, ou continuaremos a nos surpreender com a resposta das pessoas. Convencer pessoas religiosas de que o acordo de paz era contra a Bíblia foi a coisa mais perversa que essas pessoas fizeram - elas posicionaram a Bíblia contra a paz, contra a possibilidade de parar de matar uns aos outros".
No entanto, na mesa de negociações, não houve debate. A perspectiva de gênero deveria e seria fundamental no acordo final. Mejía aponta: "depois do plebiscito, a abordagem de gênero ainda permaneceu no Acordo porque os padrões de igualdade estão incontestavelmente na Constituição. Se uma vítima de violência sexualizada é uma mulher transgênero, você não vai [ajudá-la] porque ela é trans[gênero]? Você pode pensar o que quiser sobre essa realidade, mas a Constituição diz que somos todos iguais, então todas as pessoas precisam [ser ajudadas]". Depois da votação Laura Cardozo, assessora de gênero da equipe das FARC, relatou que a equipe se concentrou em apresentar o acordo de maneira diferente, fazendo mudanças na linguagem: "Tivemos que fazer mudanças na linguagem para que pudéssemos concordar com ambas as partes. Tivemos que tratar das reclamações, mas tínhamos que ter certeza de que o foco político nas mulheres e na população LGBTI fosse preservado". Como resultado, "gênero" foi largamente substituído por "mulheres".
O papel dos governos da Suécia e da Noruega no alcance da inclusão da abordagem de gênero no acordo
Como assessora de gênero para as FARC e consultora pessoal de Victoria Sandino, Laura Cardozo chegou à mesa patrocinada pelo governo norueguês. Na verdade, o governo da Noruega patrocinou três especialistas em gênero para ajudar nas negociações: Magalys Arocha Domínguez, de Cuba, Hilde Salvesen, da Noruega e Camila Riesefeld, da Suécia. Essas especialistas facilitaram várias reuniões, incluindo uma reunião em 2015 com mulheres das FARC e outras ex-guerrilhas de todo o mundo, incluindo El Salvador. “As salvadorenhas nos disseram que depois do processo de paz elas planejaram um retorno à vida civil em termos mistos e imparciais, mas, quando se tornaram um partido político, as ex-guerrilheiras foram deixadas para trás. Elas começaram a assumir os papéis tradicionais de gênero, enquanto os homens eram candidatos a cargos políticos”, relata Cardoza. “Vinte anos depois da assinatura do acordo de El Salvador, as mulheres ex-combatentes demandam que o partido deve ter secretarias de gênero e demandam políticas conjuntas".
O apoio da comunidade internacional não parou por aí. Como responsável pela implementação do acordo, o Governo da Suécia contribuiu com mais de SEK 67 milhões, equivalente a 6,6 milhões de euros, durante o processo de paz. O Fundo Conjunto Sueco-Norueguês de Apoio à Sociedade Civil Colombiana (FOS) foi criado para apoiar organizações colombianas em projetos que promovam a paz, fortaleçam o trabalho de reparação de vítimas, defendam os direitos humanos e fortaleçam a democracia na consolidação da paz.
Juanita Millán, a única mulher do exército que participou da negociação e do Mecanismo de Monitoramento e Verificação, acredita que: "o papel dos governos da Noruega e da Suécia foi fundamental para o fortalecimento das capacidades técnicas em questões de gênero. Foi possível convidar muitos especialistas que assessoraram o Subcomitê de Gênero e também apoiaram processos sociais para fortalecer as capacidades dos coletivos de mulheres. Por exemplo, o financiamento da Cumbre de Mujeres por la Paz, um evento que reuniu mulheres rurais, vítimas, mulheres vítimas de remoção e agentes feministas,
entre outros, para começar a defender o processo de paz".
Para Laura Cardozo e Victoria Sandino, o apoio de países como Suécia e Noruega foi um sucesso ao oferecerem apoio técnico e treinamento para as mulheres Farian, além de facilitar reuniões com outras ex-mulheres guerrilheiras de outros países, para aprender com suas experiências durante os processos de paz. É necessário que países como a Suécia, que são responsáveis pela implementação do Acordo, exijam que uma perspectiva de gênero seja mantida em todas as etapas. Isso inclui garantir que instituições do Estado mantenham essa perspectiva, especialmente para garantir que as mulheres vítimas do conflito recebam reparações, que não haja repetição de violações de direitos humanos e para garantir o acesso à terra. Para o movimento de mulheres na Colômbia, o apoio internacional tem sido essencial para reconhecer a violência múltipla vivida pelas mulheres em meio a conflitos e a importância de uma perspectiva de gênero para uma paz estável e duradoura.
Que papel as mulheres desempenham na implementação do acordo para alcançar uma paz duradoura?
Falando sobre sua experiência no Subcomitê de Gênero, Juanita Millán acredita que ser uma mulher no exército deu a ela uma perspectiva diferente: "Sim, a perspectiva muda, porque o gênero não é visível para eles [os homens]. Se não estivéssemos ao lado deles, a perspectiva de gênero não teria entrado no Acordo. Como as prioridades são diferentes, por exemplo, para mim era uma prioridade incluir a violência de gênero como uma forma de violação do cessar-fogo, já os homens não viam isso como uma prioridade".
As mulheres também são as primeiras a serem afetadas por mudanças na dinâmica do poder durante e após o conflito. Segundo Claudia Mejía, o aumento nos ataques contra mulheres defensoras dos direitos humanos é assustador. No ano de 2017, os assassinatos em geral aumentaram em 30% e os assassinatos de mulheres aumentaram em 70%. Analisando este aumento da violência contra as mulheres, Sisma Mujer descobriu que: “uma das razões mais poderosas e estruturais por trás dessa violência é o repetido fracasso da guerra às drogas na Colômbia. Este fracasso causa mais mortalidades, processos e prisões, mas não conseguirá erradicar o tráfico ilegal de drogas”.
Há também um aumento nos atos de violência contra as mulheres quando mulheres ativistas começam a lutar contra o sistema. O movimento de mulheres vem acompanhando a violência contra as mulheres muito antes do início das negociações de paz. Em 2008 o Tribunal Constitucional emitiu o Auto 092, uma lei que inclui a defesa do movimento de mulheres vítimas e equipa o movimento feminista para propor uma jurisprudência. No entanto, quando as mulheres começaram a utilizar o Auto 092, os assassinatos de mulheres defensoras dos direitos humanos aumentaram rapidamente entre 2009 e 2010.
Em resposta, o movimento de mulheres estabeleceu modelos sensíveis ao gênero para a prevenção da violência como parte fundamental da agenda do movimento de mulheres. Nas palavras de Mejía: "[...] o componente mais substancial deste programa é a prevenção. Mas como evitar essas ameaças? A resposta está no fortalecimento da liderança das mulheres. Se você melhorar a participação das mulheres nos cenários de tomada de decisão em processos sociais e comunitários, os ataques a [mulheres] defensoras dos direitos humanos diminuem por uma razão simples: quanto mais fortes e visíveis as mulheres, mais difícil será atacá-las”.
Desafios para a implementação do acordo de paz
Agora, dois anos depois da assinatura do Acordo de Paz, muitas coisas mudaram na Colômbia. O governo do presidente Santos foi sucedido por um governo de idealistas da extrema direita que chegaram à Presidência prometendo pôr fim ao Acordo de Paz. Além disso, tem havido um progresso de lento a inexistente na implementação do Acordo. Relatórios de institutos como o grupo GPaz, um conselho de mulheres criado para monitorar a implementação do acordo, declaram que a criação de compromissos focados em gênero não ultrapassam 20%, e destacam os principais obstáculos: falta de orçamento para a implementação, pouca experiência técnica e treinamento de funcionários do governo, e uma ampla ignorância dos contextos rurais. A congressista Victoria Sandino reitera esses pontos, afirmando: "o decreto do fundo agrário diz que as mulheres devem ser priorizadas, mas não diz como realizar essa priorização, e é por isso que estamos pedindo um censo da população rural. Outra frustração é que tudo relacionado a diferenças sexuais e de gênero praticamente desapareceu durante a implementação".
Laura Cardozo também aponta que existem outros obstáculos imprevisíveis: "as mulheres das FARC são uma nova população para nós. Todos acharam ótimo que houvesse uma grande natalidade nas FARC depois da assinatura do acordo, mas ninguém pensa no que isso significa, nos problemas de sustentabilidade econômica, na alimentação, fraldas e roupas. Isso não foi incluído no orçamento do dinheiro da reintegração, nem foi contemplado na pensão médica".
Comentando sobre alguns dos aspectos positivos da implementação, Juanita Millán observa: "A política de reintegração lançada em julho de 2018 tem um enfoque de gênero bastante amplo e substancial. Os avanços na implementação de gênero são resultado da participação ativa de grupos de mulheres nos espaços para garantir o cessar-fogo, a implementação da construção da política de reintegração e o comitê técnico de gênero”.
Embora a implementação do Acordo de Paz continue com um progresso lento, o movimento das mulheres não perde a esperança. O Acordo estabeleceu uma nova rota para o país, com foco na melhoria de vida das mulheres. No futuro, a prioridade do movimento de mulheres na Colômbia é defender o acordo. Apenas com a manutenção do pacto é possível alcançar a paz na Colômbia, e apenas com o fim do conflito as mulheres terão condições mínimas de viver uma vida livre da violência.
Mais informações sobre o processo de implementação do Acordo de Paz na Colômbia em espanhol aqui.
[1] O termo das FARC “Farian” é usado para descrever membros ex-combatentes das FARC