“Quantos outros terão que morrer antes que esta guerra termine? ”Marielle Franco, Presente!

A execução de Marielle Franco, a vereadora do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e de seu motorista Anderson Gomes, no dia 14 de março mostra com o que estamos lidando no Brasil quando falamos de defender os direitos humanos. Marielle possuía uma múltipla representação: mulher, negra, favelada e lésbica. Os 46.502 votos a tornaram a quinta vereadora mais votada nas eleições de 2016 para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro e mostraram a ascensão de uma nova liderança. Ela conjugava a política feita de forma próxima ao eleitorado, participando das discussões com grupos e coletivos formados nos últimos anos, que representam a efervescência de uma nova sociedade civil. Não só no Brasil, mas que tomou as praças e ruas do mundo: Occupy Wall Street, os Indignados no Chile e Espanha, a Primavera Árabe, as Jornadas de Junho e a Primavera das Mulheres no Brasil. 

Marielle Franco em campanha
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Marielle Franco em campanha

Imediatamente após o assassinato de Marielle houve uma comoção mundial. Artistas de renome internacional se solidarizaram com aqueles que choravam e exigiam justiça; no Brasil e em várias partes do mundo manifestações públicas foram realizadas; destacados jornais abriram espaço para noticiar e analisar o que tinha acontecido naquela fatídica noite de março; um manifesto assinado por nomes como Edward Snowden, Noam Chomsky, Angela Davis, Chimamanda Ngozi Adichie entre outros exige a criação de uma comissão independente para investigar o assassinato; lideranças políticas brasileiras, até mesmo aqueles com os quais certamente Marielle discordaria frontalmente tiveram que se manifestar. Em que pese os demagogos da vez, por que tantas pessoas se manifestaram? O grito é por justiça e inclusão, contra as desigualdades e as discriminações, contra a concentração de riqueza que nos últimos anos criou bilionários pelo mundo. Ao mesmo tempo que a extrema-direita ganha força em muitos países, e muitos percebem e temem isso, os defensores de direitos, ou mesmo aqueles que detectam o acirramento de conflitos e discriminações são chamados à público para se manifestar. Marielle nos dá outra lição: é possível e necessário sermos solidários e aumentar nossa voz pelos mais pobres e despossuídos de direito, por situações de violação de direitos que nos envolvam ou a outras pessoas. 

Ao mesmo tempo Marielle e algumas outras poucas representam também um questionamento à esquerda brasileira. Qual é o real papel de representantes ligados às causas das minorias no jogo de poder dos partidos? Lidar com os questionamentos feitos pelas mulheres e pelos negros, em especial mulheres negras, nunca foi bem digerido pela esquerda. Em que pese a criação de núcleos temáticos dentro dos partidos e dos avanços nesse sentido, negros e mulheres nunca tiveram real poder nas tomadas de decisão desses atores. A figura de Marielle e seu espírito combativo e questionador provocava e chamava à responsabilidade lideranças dos partidos para abrir um debate real sobre a incorporação das pautas e aumento do número de candidatos desse setor da sociedade. A construção de um projeto de nação que tome como centro a inclusão de todos e todas e a justiça, diferentemente de um projeto de poder, não é tarefa fácil, e atualmente encontra-se em desuso na política mundial, servindo nem mesmo como horizonte de ação política.

Essa comoção e a representatividade de Marielle levou a que a máquina das fake news entrasse em ação. Tão famosas nas redes sociais hoje, se direcionaram para tentar destruir o legado da vereadora e manchar sua biografia. Para barrar as fake news uma comissão formada por advogados monitora as redes sociais e entregou a polícia cerca de 17 mil postagens difamatórias contra a vereadora. O Facebook retirou do ar páginas que disseminavam notícias falsas sobre Marielle e o YouTube retirou 16 vídeos com mesmo conteúdo. A impunidade na rede também foi questionada e as fake news tiveram uma resposta. O conteúdo dessas informações liga a figura de Marielle a um estereótipo fortalecido na sociedade de que favelados são ligados ao tráfico de drogas, coniventes com ações criminosas e pobres por opção, pois a meritocracia poderia retirá-los da pobreza.

A defesa da vida, como bem mais precioso, tornou-se uma bandeira de Marielle ao denunciar a ação criminosa de policiais que atuam nas favelas cariocas, promovendo a mortes de centenas de pessoas todos os anos. Marielle também era contrária a intervenção militar no Rio de Janeiro, convocada em fevereiro de 2018 pelo governo federal devido à crise de segurança pública do estado. E foi eleita uma das relatoras da comissão parlamentar que acompanharia a intervenção. Na semana de sua morte Marielle fez denúncias contra a morte de um jovem da favela do Jacarezinho e a truculência da ação de policiais na favela de Acari, com a frase emblemática: “quantos mais precisarão morrer para que essa guerra acabe?”.

A letalidade policial no Brasil é tema espinhoso, no qual poucos têm coragem de atuar.  Em 8 anos, 21.897 pessoas foram mortas pela polícia, ou seja, o uso excessivo da força é uma constante nas ações da polícia brasileira. Outro problema éo baixo número de casos de assassinatos solucionados pela polícia,em 90% as investigações não foram concluídas[1]. Ao mesmo tempo também é a que mais tem seus agentes mortos. Em 2016, 437 policiais foram vítimas de homicídio, mas a maioria das mortes (70%) acontece quando eles estão prestando serviço extra, o bico, para completar a renda[2].

O perfil das vítimas segue o padrão: serem homens negros jovens e moradores das periferias das cidades. Em 2016, 81,8% das vítimas tinham entre 12 e 29 anos e 76,2% eram negras. Mas todos esses dados recentes não são um mistério para pesquisadores, autoridades e população em geral. O Brasil é um país violento, seletivo em sua punição e com desigualdades abissais. Sempre quando mostramos esses números em congressos e atividades internacionais, as pessoas dizem, mas porque vocês não fazem alguma coisa? Por que se mata tanto? Por que não se pune? Não estamos numa guerra, apesar dos números serem bem próximos de uma. Vivemos numa democracia, com instituições funcionando, com separação dos poderes, com direitos políticos garantidos, com eleições amplas e acessíveis a todos/as os/as cidadãos. Então, a resposta não é simples.

E Marielle tomou para si a tarefa de fazer ecoar, dentro do Legislativo, a voz das milhares de vítimas e familiares que clamam por justiça, denunciar o conluio da polícia com as milícias, das relações permissivas entre parlamentares e grupos criminosos. De acordo com amigos e parentes, Marielle não estava sofrendo ameaças. Com pouco mais de um ano de mandato ela foi silenciada numa ação rápida, criminosa e profissional. Não foi algo feito por amadores, teve perseguição, munição desviada da polícia federal e execução bárbara.

 

Marielle ameaçava com seu corpo e sua história de vida. Servia como exemplo para meninos e meninas negras de que é possível se insurgir contra os destinos marcados e trilhar outros caminhos. Ao mesmo tempo criava naqueles sensíveis aos discursos de defesa de direitos e democracia de era possível fazer uma outra política. Foi esse chamado que fez com que milhares de pessoas fossem as ruas pelo Brasil chocados com o que tinha acontecido. Para muitos, apesar de sempre haver riscos quando se denuncia máfias, Marielle já teria passado a um novo patamar de segurança ao se tornar vereadora. Por isso, o crime também foi político, pois atinge a democracia, silencia a voz das 45 mil pessoas que tiveram sua representante executada.

O Brasil continua a ser um país de desigualdades abissais, que conjuga a impunidade com a indiferença de parte significativa da sociedade para questões que envolvam a defesa de direitos dos mais pobres. Mas assim como em vários momentos de sua história, a resistência surge de baixo e os exemplos são muitos.

Marielle representava potência. Perdemos uma liderança, perdemos uma amiga, Marielle iluminava os lugares, nos fazia lembrar que também somos fortes.

[1]Menezes, César &Leutz, Dennys. Maioria dos crimes no Brasil não chega a ser solucionada pela polícia. Jornal da Globo, 28 de abril de 2014. Disponível em http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2014/04/maioria-dos-crimes-…. Acesso em 26 de março de 2018.

[2]Carvalho, Marco Antônio. Com 4.224 ocorrências, mortes por policiais batem recorde em 2016.

http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,com-4224-casos-mortes-por-p…. Jornal O Estado de S.Paulo, 31 Outubro 2017. Acesso em 27 de março de 2018.