O trabalho de luto público tem se mostrado, no cenário atual brasileiro, uma importante ferramenta de luta e resistência contra a violência de Estado. Para a filósofa Judith Butler, o luto público é uma forma de garantir às vidas que foram perdidas o seu valor como vidas dignas de serem vividas. É somente através do luto público que uma vida que foi perdida pode ser sentida como uma perda de fato pela sociedade. Para a filósofa, a vida só tem o seu valor reconhecido se, quando perdida, for enlutada. Nas últimas semanas, temos vivido o luto de Marielle Franco, vereadora do Psol do Rio de Janeiro, assassinada a tiros e do motorista Anderson Pedro Gomes, também baleado e morto, no centro do Rio na noite de 14 de março.
Os dias que se seguiram a este triste episódio foram de profundo pesar e revolta. Nosso país e o mundo lamentam publicamente a perda não só de Marielle, mas de todas as negras e faveladas brasileiras que ela representa. Enlutamos, hoje, a vida negra, que há anos tem sido soterrada sob os escombros de um projeto colonial que se constrói sobre o medo e o terror incutido na população. O assassinato de Marielle revela a perversidade do poder que circula nas esferas mais íntimas da vida política atual, na qual, sob a chancela de um estado de excepcionalidade, emprega-se o uso da violência endereçado a uma população específica que resiste à violência de Estado há séculos.
Vale lembrar que a população em direção a qual a violência de Estado se dirige desde a sua fundação é a mesma população que hoje sofre o seu extermínio: a população negra. Sob o signo da violência, a escravidão que compôs uma história nacional de barbárie continua tendo seus efeitos ecoados nas políticas de extermínio da juventude negra e favelada do Rio de Janeiro disfarçadas de políticas de segurança pública quando, a bem da verdade, o público ao qual esta (in)segurança está garantida é muito bem marcado.
O assassinato de Marielle toca nas feridas de uma herança dolorosa deixada em nosso tecido social: a de que os negros deste país continuam sendo eliminados a sangue frio, de forma brutal e covarde. Marcado pela experiência brutal da escravidão, nosso país sempre lidou com a população negra como aquela cujas vidas são vidas matáveis, para resgatar o conceito do filósofo Giorgio Agamben. A vida negra no Brasil habita a zona de indistinção sobre a qual o poder de matar do Estado atua em sua máxima potência. É no limiar entre a vida e a morte que a população negra no Brasil sobrevive. O racismo institucional de nosso país remonta ao período da colonização em que negros africanos foram sistematicamente dominados em um sistema econômico que sustenta as estruturas políticas e sociais, fazendo-nos sentir os efeitos desse legado colonial até os dias de hoje.
A perda de Marielle ilustra as marcas de tais feridas sociais que custam a cicatrizar, pois sua atuação política revela o incômodo que o negro causa ao ocupar espaços de institucionalidade e desafiar estruturas profundamente enraizadas em nossa sociedade. É quando o negro toma parte daquilo que lhe foi negado e ocupa o lugar que foi, historicamente, privilégio de poucos que vemos a Casa-Grande tremer. Em um país cujas estruturas sociais, políticas e econômicas foram atravessadas pelo imaginário de que o lugar do negro é na senzala - e hoje o que vemos é a estrutura racial brasileira manter a população negra em posições subalternas - a presença de Marielle na institucionalidade brasileira faz a Casa-Grande tremer. Marielle Franco não só colocou o dedo na ferida desse passado colonial que compõe a vergonhosa história nacional, como se tornou uma esperança no cenário político atual.
Em um país onde a população negra sempre fora considerada vida matável, o negro quando rompe com os grilhões da dominação e atinge os espaços de poder, é covardemente eliminado como se o recado dado fosse o de que ali não é o seu lugar. Entretanto, como podemos notar nestes duros e intragáveis dias de luto pela perda de Marielle, uma mensagem em sua homenagem que se alastrou e que antecipa, de muitas formas, o espírito dos tempos que estão por vir é: “quiseram te enterrar, mas não sabiam que era semente”.
O luto pela perda irreparável de Marielle e Anderson tem se transformado, no Brasil e no mundo, em uma luta na qual o recado dado é que não permitiremos que o estado de exceção se alimente de nosso medo. Embora tenham sido dias de muita dor, as demonstrações de amor e solidariedade de milhares de pessoas por memória e justiça à Marielle revela a potência deixada por sua semente plantada no processo democrático brasileiro.
O luto público por Marielle já é, por si só, uma expressão forte de seu legado. Lamentar publicamente a sua perda faz parte do que a filósofa Jeanne Marie Gagnebin definiu como sendo um processo de elaboração do passado de modo a garantir que os nossos mortos não caiam no esquecimento histórico. No caso brasileiro, são muitos os mortos esquecidos pela sociedade e que sequer são lembrados como vidas que eram dignas de terem sido vividas, ou como diria Butler, vidas vivíveis de fato.
Quantas pessoas negras são assassinadas diariamente em nosso país sem sequer serem lembradas ou terem suas vidas sentidas pela sociedade como uma perda de fato? Quantas vidas negras foi preciso matar para formar um Estado-nação construído sobre uma história de violência e barbárie? Ou ainda, ecoando as últimas palavras da vereadora: “quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.O luto público que fazemos hoje não é só pela Marielle, mas também por todos a quem foi negado um lugar em nossa sociedade. Enlutar a perda de Marielle é, também, enlutar a perda daqueles que nunca tiveram seu valor social e histórico reconhecido em nosso país.
O assassinato de Marielle dói, pois mexe nas feridas sociais nunca cicatrizadas de nossa história nacional. No entanto, em um país onde os mortos são soterrados no esquecimento, só o luto público é capaz de mantê-los vivos, pois eles nunca morreram de fato e continuam a semear luta e resistência. Como já havia dito Walter Benjamin, “os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” Convencidos de que, no Brasil, o inimigo que enfrentamos é o racismo que persiste em decidir quem deve morrer e quem deve viver, é preciso que façamos o luto público de nossos mortos para que eles não sejam vencidos pela história. E o que as ruas do país e do mundo têm mostrado nas últimas semanas é que Marielle vive e a Casa-Grande que se cuide porque os que vêm nessa luta são muitos.